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POSICIONANDO UM PROBLEMA POLÍTICO-METODOLÓGICO

3. A verdade e seus entornos

Ao longo de toda sua obra, Foucault utiliza, na maior parte das vezes de modo insuficientemente distinto, tanto o termo verdade como outros vocábulos que indicam tudo aquilo que entorna a verdade – a saber: regimes de verdade, efeitos de verdade,

jogos de verdade, história da verdade, política da verdade, obrigações de verdade, modos de veridição etc. Esta indistinção nos dá margem à pergunta: Foucault estudaria a verdade ou tão-somente aquilo que circunda a verdade e lhe é, portanto, exterior? Uma política da verdade seria uma política de outra coisa que não da própria verdade, de outra coisa simplesmente tomada como verdadeira? As obrigações de verdade seriam obrigações de outra coisa que não da própria verdade? Os efeitos de verdade seriam efeitos da própria verdade, ou dos saberes e práticas supostos como verdadeiros, mas provavelmente não-verdadeiros? Em suma: é a verdade que esta aí, ou aí está outra

coisa que não a verdade?

Dar um encaminhamento a essas respostas constitui tarefa fundamental de um trabalho que opera com o pensamento de Michel Foucault, não para falar sobre as políticas da verdade relacionadas a um acontecimento específico que seja diferente do próprio acontecimento da verdade – o que ocorre com a imensa maioria dos trabalhos

filiados ao campo dos estudos foucaultianos. Não se trata aqui, todavia, de estudar qualquer coisa como as verdades da Psiquiatria , as verdades ambientais, as verdades da saúde pública, da biopolítica, dos mecanismos de segurança, as novas verdades das práticas governamentais, dentre tantas outras “verdades”. Para me expressar por ora nesses termos, diria que este trabalho tematiza as verdades da verdade – em uma palavra: o acontecimento sobre o qual se debruça a política da verdade é, aqui, a própria verdade. Precisamente por esta razão, as questões formuladas no parágrafo anterior são de tanta importância: se não é exatamente da verdade que fala Foucault, se a verdade não está aí nas políticas da verdade, nos regimes de verdade, nos efeitos de verdade, etc., não teria nenhuma razão de ser um trabalho sobre o dispositivo da verdade a partir

do pensamento de Michel Foucault. Isto porque faltaria precisamente o acontecimento

que daria imanência e faria funcionar este dispositivo.

Deixarei, contudo, uma solução para essa questão como tarefa a ser realizada nos tópicos quarto e quinto deste capítulo. Centremo-nos, neste momento, nos modos como são inscritas as relações entre a verdade e aquilo que entorna a verdade. Assim,

faço menção a alguns exemplos dessa indistinção, desta distinção obscura, pouco rigorosa ou, ainda, de rigor pouco perceptível na obra de Foucault.

Em A Verdade e as Formas Jurídicas, logo no início da primeira conferência, Foucault (2011c) menciona, como já referido, seu interesse em fazer uma “história

externa, exterior da verdade” (p. 11). Ao final da mesma conferência, a história que

menciona ter vontade de fazer não aparece mais como externa, mas simplesmente “história da verdade” (p.27). O curioso é que, para a realização desta história, seria necessário desembaraçar-se precisamente dos temas relativos a uma história interna da verdade: o sujeito do conhecimento, a ideia de uma inclinação espontânea do conhecimento à ordem e à unidade, a crença de que existe um conhecimento em si, ou índice de si mesmo etc. Essa história não se mostra, portanto, como história dos “regimes de verdade”, ou da “política da verdade”, mas sim uma história da própria “verdade”.

Em O Nascimento da Biopolítica, Foucault (2008a) também menciona seu interesse em fazer uma “história da verdade” (p.48), em vez de uma crítica à ideologia, ao erro ou ao falso. Logo em seguida, sem muita cerimônia, acrescenta que este trabalho consistiria em uma “genealogia dos regimes de veridição” (p.49, grifos meus). Novamente, em Segurança, Território e População, Foucault (2004a) reafirma a inscrição de seu trabalho no campo da verdade: “o que faço não pertence nem à história,

nem à sociologia, nem à economia. (...) É uma política da verdade” (2004a, p. 5). Na entrevista intitulada Não ao Sexo Rei, Foucault (1988) mais uma vez insiste no tema da verdade como central nas suas problematizações e novamente opera com esta ambiguidade entre a verdade, os efeitos de verdade e uma história da verdade.

Ora, meu problema sempre esteve do lado do outro pólo: a verdade. (...) Não quero fazer uma história política da proibição, mas a história política de uma produção de “verdade”9. (...) Que a história do Ocidente não seja dissociável da maneira pela qual a “verdade” é produzida e assinala seus efeitos, eles [os historiadores] logo compreenderão. (...) A história da “verdade” – do poder próprio aos discursos aceitos como verdadeiros – está totalmente por ser feita” (p.230-231, grifos meus).

Poderia aqui citar inúmeros exemplos como estes, e o leitor que acompanhar as rotas deste estudo certamente se defrontará com vários deles. Creio, todavia, que um dos exemplos mais elucidativos aparece na entrevista concedida em 1977 a Alexandre Fontana e transcrita na coletânea Microfísica do Poder, intitulada Verdade e Poder (FOUCAULT, 1988). Deter-me-ei de forma um pouco mais aprofundada neste caso, por julgá-lo bastante elucidativo para uma série de outras passagens semelhantes na obra de Foucault.

Com o intuito de se distanciar das temáticas ligadas à ideologia, à repressão, às proibições ou àquilo que está oculto e mascarado, Foucault (1988) dirá que aquilo que lhe interessa são “os efeitos de verdade no interior de discursos que não são nem verdadeiros e nem falsos” (p.7). Por discursos que não são nem verdadeiros e nem

falsos, entendamos: discursos a que eu não atribuirei valor de verdade. O que é de seu

interesse, tal como dito aqui, não é a verdade como verdade em si mesma, aquilo que a verdade simplesmente é, mas sim o que ela causa, ou o que acontece em razão de seu acontecimento. Ocorre que, ao passar para o registro da causa, outra movimentação será feita e outra posição será tomada: não importa se o que causa é intrinsecamente verdadeiro. Interessa tão-somente se aquilo que causa é tomado por verdadeiro. Isto rapidamente nos levaria à conclusão de que, se o que importa é simplesmente o que é tomado por verdadeiro, não importa, em todo caso, se é verdadeiro – em consequência, o campo analítico de Foucault seria simplesmente o do tomado por, e não exatamente o do verdadeiro.

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Ao escrever entre aspas o termo “verdade”, mais uma vez Foucault poderá suscitar a dúvida: trata-se da verdade, ou daquilo que os outros chamam de verdade (mas que não é a própria verdade)?

Esta conclusão teria sua razão de ser, caso não nos ativéssemos a uma das principais confusões presente no campo dos estudos foucaultianos e na própria obra de Foucault: verdadeiro ora significa intrinsecamente verdadeiro, ora significa o que é

tomado por verdadeiro. O primeiro sentido é aquele que surge quando o autor fala em

discursos que não são nem verdadeiros, nem falsos (leia-se: “intrinsecamente verdadeiros” e “intrinsecamente falsos”). (FOUCAULT, 1988). A mesma problemática, portanto, é reposta quando falamos em efeitos de verdade: estaremos falando de efeitos daquilo que é intrinsecamente verdadeiro, ou de efeitos daquilo que é simplesmente

tomado como verdadeiro? Esta pergunta situa a problemática da verdade em Foucault

nas proximidades de um impasse: se for pensada simplesmente em termos daquilo que é tomado por verdadeiro, e se aquilo que é tomado por verdadeiro for considerado outra coisa que não a verdade, teremos aqui um movimento de repetição progressiva e infinita que tenderia ao apagamento da própria problemática da verdade. Uma espécie de partição interna e progressiva, que levaria à dissolução daquilo que é partido e daquilo de onde se parte. Os efeitos de verdade não seriam efeitos da verdade, mas efeitos de

efeitos de verdade. Por sua vez, esses efeitos de efeitos de verdade não seriam efeitos de

efeitos da verdade, mas sim efeitos de efeitos de efeitos da verdade... E assim sucederia este vendaval em uma espiral centrífuga, cujo movimento foge de um centro ausente: eis aqui o traço diagramático que apagaria a problemática da verdade como um

acontecimento no pensamento de Foucault. Isto poderia ser sintetizado da seguinte

forma:

1) O que importa para Foucault é unicamente os efeitos da “verdade”.

2) Ora, mas essa “verdade” não é outra coisa, se não tudo aquilo que é “tomado por verdade”.

3) Logo: importa para Foucault tão-somente os efeitos daquilo que é tomado por verdade – o que é algo bem distinto da própria verdade.

A tese que ora apresento rejeitará o conteúdo e o movimento expresso por essas três proposições. Para isso, peço ao leitor que me acompanhe para olharmos um pouco mais de perto este problema.

Em diversas outras circunstâncias, como aquelas mencionadas anteriormente e como algumas que ainda o serão – mas, ainda, como tantas outras que o leitor poderá encontrar por conta própria caso lhe seja de interesse – Foucault enfatiza que seu

interesse recai sobre a verdade, que é da verdade que ele fala e que é sobre a própria verdade que ele quer se debruçar. Ainda nesta mesma entrevista em que Foucault (1988) mencionou que seu interesse recai tão-somente sobre os efeitos de verdade, ele acrescentará o seguinte:

A verdade é deste mundo; ela é produzida graças a múltiplas coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua ‘política geral’ de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiro; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro. (p.12, grifos meus)

Aí, percebamos: são postos no mesmo plano a verdade e aquilo que funciona

como verdadeiro. O que pode dar margem para dissensos, contudo, é: por que ainda é

necessário Foucault (1988) dizer que lhe interessa não a verdade, mas aquilo que é tomado como verdadeiro, se já havia dito que a verdade já é desse mundo? Ora, aquilo que é tomado como verdadeiro não deveria ser considerado por Foucault (1988) como indistinto daquilo que é verdadeiro? Ou haveria um outro critério para dizer o que é efetivamente verdadeiro, critério esse que seria distinto daquele que discerniria aquilo que é tomado por verdadeiro?

Penso que essa ambiguidade de Foucault decorre da tendência, cujas razões não nos faltam, a entender verdadeiro como intrinsecamente verdadeiro e, portanto, distinto de o que é tomado como verdadeiro. Este ponto foi explorado por Nietzsche (1873) em seu pungente e bélico texto intitulado Sobre a Verdade e a Mentira num sentido

Extramoral. Conforme trabalharei no terceiro capítulo deste trabalho, Nietzsche (1873)

já percebera esta força do verdadeiro ao intrinsecamente verdadeiro, ou à verdade em si como um movimento de esquecimento do caráter metafórico e antropomórfico da verdade. Por milênios a fio, contudo, este esquecimento passou a constituir a marca, o signo e o brasão da verdade. Não será, portanto, com míseros golpes de escrita que esse esquecimento será percebido enquanto tal. Daí ser a linguagem um espaço estratégico, e não puramente transparente, de enunciação; e, com isso, ser também um espaço marcado pelas ambiguidades que os utopistas por uma linguagem transparente, ávidos e cegos pela vontade de verdade, poderiam facilmente chamar de incoerência ou

contradição. Assim, as ambiguidades de Foucault são perspectivadas aqui não como

Deste modo, acredito que, em virtude desta nada virtuosa tendência que temos em relação à verdade, Foucault (1988) precisa sempre fazer referência a esse “como se

fosse” do verdadeiro. Contra esta força para o intrinsecamente, Foucault (1988) ora

lança o como se fosse, ora simplesmente diz que o próprio verdadeiro, ou a própria verdade, é deste mundo. A isto correspondem dois movimentos mencionados:

1) Afirmar que trabalha no registro dos regimes de verdade, ou do como se fosse da verdade (e não de uma verdade em si mesma, exterior aos acontecimentos do mundo).

2) Insistir em dizer que é da verdade mesma que ele fala, porque a verdade não é outra coisa se não isto de que ele fala quando estuda a Psiquiatria , a Economia Política, as práticas sexuais na Grécia antiga, as práticas de confissão cristã etc.

Estas são, portanto, duas estratégias com o mesmo fim de estabelecer no campo da imanência as relações entre verdade/saber – poder/governo – sujeito/subjetivação. Assim, segundo esta compreensão, haveria uma relação de imanência entre verdade e

regimes de verdade – a verdade não seria, pois, de “outro mundo”.

Ora, mas este entendimento seria uma constante no pensamento de Foucault? Não seria algo circunstancial, específico e singular assumido nesta entrevista? Não teríamos outras razões para crer que Foucault considera que nos regimes de verdade estão em jogo outras coisas que não a própria verdade? Ou, ainda, não seria o caso de assumir simplesmente que Foucault nada disse e nunca pretendeu dizer coisa alguma sobre a própria verdade? Neste sentido, lembremos as últimas palavras de Foucault (2011a) no Collège de France e primeiras deste capítulo: “a verdade só é possível sob a forma do outro mundo e da outra vida” (p.289). O que aconteceu com a verdade no Curso de 1984? Por que Foucault (2011a), naquele momento, fez com que ela transcendesse esse mundo? Isto ocorre porque distintas coisas que estão sendo nomeadas de “verdade”? Porque houve uma mudança de posição quanto à verdade? Ou o que temos aqui é uma evidente contradição?

Ao contrário, penso que a frase “só pode haver verdade na forma do outro mundo e da outra vida” (p. 289, grifos meus) refere-se a algo bem distinto. Quer dizer: só pode haver verdade em um mundo que não seja este mundo, em uma vida que não seja esta vida. Ora, mas o que interessa ao pensamento de Foucault senão este mundo e esta vida? O que lhe faz problema, o que move o seu pensamento, o que o inquieta e

(re)volta, (re)torna e (re)vigora sob a forma de seus belos movimentos de escrita senão as questões do presente, da atualidade, do contemporâneo? “A verdade só é possível na forma do outro mundo”, “a verdade só é possível na forma da outra vida” – isto parece dizer: de tudo isto que acontece, nada revela o que quer que seja sobre a verdade; de tudo isto que eu falo, nada ainda disse e nem poderei dizer sobre a verdade. A história, o que se viu, (h)istor10 não me dá nada como a verdade. Isto ocorre, no entanto, por uma característica intrínseca da verdade? Mais uma vez, penso que não: isto ocorre pelo fato de que a própria invenção da verdade carrega as marcas de sua transcendência – invenção singular, acontecimento nada necessário: é neste mundo que a verdade é de

outro mundo.

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