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O realismo imanente e o espaço branco do dispositivo da verdade: considerações arqueológicas

POSICIONANDO UM PROBLEMA POLÍTICO-METODOLÓGICO

6. O realismo imanente e o espaço branco do dispositivo da verdade: considerações arqueológicas

Em um texto de apresentação ao curso Do Governo dos Vivos intitulado

Foucault e a Anarqueologia dos saberes, Avelino (2010a) fará uma consideração de

ordem teórico-metodológica que considero fundamental para situar a forma de existência da verdade, tal como inscrita pelo dispositivo da verdade. Ela consiste na adoção de um realismo epistemológico.

No anarquismo e na anarqueologia dos saberes16 existe um tipo de realismo não-sociológico, mas epistemológico que confere à verdade a mesma realidade e a mesma concretude que normalmente apenas são atribuídas aos fatos. (...) Por isso a noção de “relativismo epistemológico” resulta incompatível com a anarqueologia na medida em que supõe um ecletismo ingênuo destinado a reconhecer a verdade habitando em toda parte (p.26).

Dizendo de forma explícita: por realismo epistemológico entendamos a perspectiva que não mais estabelecerá uma distinção entre a verdade e os fatos; que não mais poderá dizer que, de um lado, temos os fatos e, de outro, a verdade ou as proposições com valor de verdade; e que, por fim, conceberá a verdade como um fato/acontecimento como qualquer outro. A verdade é real. A verdade é um acontecimento.

Assim, uma vez concebida pelo que Avelino (2010a) chamou de realismo epistemológico, a verdade não reside mais em um lugar de isolamento que, de fora, é responsável pela correspondência, pela coerência, pela adequação ou pela organização útil das multiplicidades. É precisamente essa partição entre verdade e fatos, entre

verdade e acontecimentos, entre verdade e mundo; ou, se quisermos, é precisamente

esta transcendência da verdade que constitui uma recusa por parte do realismo epistemológico. E é exatamente para compreender o alcance deste realismo epistemológico, dessa assunção de que a verdade é real, que dedicaremos todo o segundo capítulo desse trabalho às Teorias da Verdade (correspondencialista, coerencial, pragmática e da redundância) que operam com uma noção transcendente de

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As temáticas relacionadas à anarqueologia, enquanto recusa ao poder da verdade, serão devidamente aprofundadas no quarto capítulo deste trabalho.

verdade17. Para o realismo epistemológico, a verdade não é aquilo que permite uma conexão adequada e constitui signo da isomorfia entre fatos e proposições mediante a expressão do sentido (teoria correspondencial da verdade); não é mais o que faz referência a um modo coeso de organização de enunciados tendo em vista uma totalidade (teoria coerencial da verdade); também não mais simplesmente consiste naquilo que agencia as multiplicidades sob o signo da utilidade, da economia ou da razoabilidade (teoria pragmática da verdade); e nem, muito menos, aquilo que nada é, nada acrescenta e nada faz (teoria da redundância).

Instaura-se, mediante este realismo epistemológico, um plano de imanência onde as multiplicidades agenciadas sob o signo da verdade coabitem com as demais multiplicidades que comumente aparecem como aquilo que chamamos de fato (ou acontecimento, ou realidade – o que, no caso, é indiferente). O realismo epistemológico traça um plano de consistência, tal como referido por Deleuze e Guattari (2011) em Mil

Platôs, que é exterior às multiplicidades e que, agrupando-as, não faz nenhuma

distinção binária entre fatos e verdade.

O plano de consistência é o fora de todas as multiplicidades. A linha de fuga [que traça o plano] marca, ao mesmo tempo, (...) a possibilidade e a necessidade de achatar todas estas multiplicidades sobre um mesmo plano de consistência ou de exterioridade, sejam quais forem suas dimensões (DELEUZE e GUATTARI, 2011, p.25, grifos meus).

Isto quer dizer que a verdade é da mesma materialidade dos fatos (ou acontecimentos). Ela não plana no mundo inteligível platônico, não é dada por intuição intelectual do puro ente pensante cartesiano, não constitui uma condição a priori de toda e qualquer experiência e nem mesmo esté presente como horizonte de todo e qualquer proferimento linguístico.

Penso, contudo, que é importante distinguir o realismo epistemológico não somente das perspectivas que operam com a verdade na transcendência, mas também de outra perspectiva: o relativismo epistemológico. Chamarei de relativismo epistemológico aquela perspectiva que supõe que todo gesto, todo ato, toda fase da vida, todo sujeito, toda cultura, toda sociedade possuem suas “verdades”. Por ocasião desta suposição, o relativismo epistemológico toma a verdade não como objeto específico no

real (caso do realismo epistemológico), mas como horizonte onipresente do real. Dessa

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O significado das noções de transcendência e imanência será trabalhado logo no primeiro tópico do próximo capítulo.

forma, não consegue discernir a especificidade do poder da verdade, das manifestações de verdade, ou mesmo da aparição da verdade – e, com isso, exprime uma grande dificuldade para discernir as formas de dominação/sujeição agenciadas pela ação que empresta força ao verdadeiro. Constitui, pois, uma posição fundamentalmente apaziguadora, compreensiva, harmonizadora e, no limite, uma posição que simplesmente deixa tudo como está.

Esta perspectiva, todavia, é comumente imputada aos pensadores filiados às Filosofias da diferença, ao pós-estruturalismo e ao chamado “pós-modernismo”. Pelo fato de esses campos teóricos-políticos anunciarem uma recusa dos universais, uma crítica ao sujeito e uma destituição da razão, essa posição poderia soar como refém de um relativismo e um pluralismo fraco e apologético da harmonização entre as diversidades. Isto ocorreria caso não estivéssemos atento a uma diferença fundamental: o modo de relação com a verdade. O relativismo a que me reporto não é, portanto, qualquer relativismo, nem muito menos um relativismo em geral, mas sim um relativismo em relação à verdade. Um dos móveis deste trabalho é precisamente a percepção da necessidade de marcar uma diferença, uma oposição ou um choque fundamental entre o campo dos estudos foucaultianos (e das Filosofias da diferença) e aquele referente aos estudos compreensivos, relativistas, culturalistas, particularistas e pacifistas. Entendo, portanto, que um melhor esclarecimento acerca das relações políticas do pensamento com a verdade constitui uma ferramenta fundamental para estabelecer esta diferença18.

Se o relativismo epistemológico constitui o correspondente teórico do relativismo político-cultural19, o realismo epistemológico constitui a condição teórica

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A larga extensão, a multiplicidade das linhas e a complexidade dos traçados e dos jogos de forças presentes no dispositivo da verdade, tais como aparecem na obra de Foucault, poderiam fazer com que crêssemos que Foucault fosse uma espécie de relativista em relação à verdade, na medida em que parece vê-la em qualquer lugar, em qualquer momento, em quaisquer relações de poder. A perspectiva, todavia, em que se situa Foucault é inteiramente distinta – trata-se de acompanhar as linhas desse dispositivo em sua materialidade. Portanto, se há a impressão de uma onipresença da verdade, mesmo na obra de Foucault, isto se deve à sua tentativa de analisar um dispositivo múltiplo, flexível e aparentemente onipresente como o dispositivo da verdade. Isto não se deve nem a uma característica da própria verdade e nem ao que seria uma concepção que Foucault tem acerca da verdade – ao contrário, isto se deve ao modo de fabricação deste dispositivo bem como à vontade de Foucault em acompanhar a trama se sua fabricação.

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Duschatzsky e Skliar (2001), no texto O nome dos outros. Narrando a alteridade na cultura e na Educação, entendem algo semelhante a este posicionamento como um mito da consistência interna, ou mito da consistência cultural. Nas palavras dos autores: “a partir desta perspectiva, as culturas representam comunidades homogêneas de crenças e estilos de vida (...) como se por acaso as culturas se estruturassem independentemente de relações de poder e hierarquia. (...) O mito da consistência interna supõe que cada cultura é harmoniosa, equilibrada, auto-satisfatória. (...) Essa ideia descansa na suposição de que as diferenças são absolutas, textuais, plenas e que as identidades se constroem em únicos

necessária para a anarqueologia – a saber: a recusa ao poder da verdade. Somente

especificando as formas de aparição, de manifestação e de produção da verdade é possível resistir à verdade. Ao contrário, se a verdade é aquilo que reside de forma indistinta, igual e democrática em cada coisa, tem-se uma dissolução da singularidade do acontecimento verdade – o que, sob a perspectiva de um realismo epistemológico, só pode operar no sentido de uma aceitação ou obediência às reais manifestações da verdade.

No relativismo epistemológico, o que percebemos é, todavia, uma máxima expansão do dispositivo da verdade – mas essa máxima expansão é correlata ao desaparecimento do dispositivo. Mediante essa máxima expansão, a onipresença da verdade faz-se de tal forma que tende ao esvaziamento de sua própria força, pois se a verdade está em todo canto, o que ela faz exatamente? Esta expansão consiste, em síntese, em duas atitudes no plano político:

1) um movimento que tende a atribuir verdade a toda formação cultural, a todo valor, a todo período histórico, a toda crença humana.

2) uma atitude de legitimação, aceitação e respeito a todas essas verdades, agora ditas insistente e eloquentemente no plural.

No realismo epistemológico, temos um movimento duplamente inverso. Trata- se, ao contrário, de discernir e, com isso, restringir a ação do dispositivo da verdade. Mostrar que a verdade é algo muito específico que, se foi deveras estendido como utopia de todo corpo político-social ou como presença fixa em todo ato linguísitico ou de pensamento, isto se deve não a uma característica essencial da verdade, mas a uma

característica contingente das formas de extensão deste dispositivo. Com isso, temos

novamente duas atitudes de reverberação no plano político:

1) um movimento de especificação do dispositivo da verdade no sentido de um discernimento das circunstâncias em que a verdade é dita, das formas de identificação e reconhecimento de um discurso verdadeiro, e dos modos de qualificação daqueles que estão encarregados de dizer a verdade.

referenciais sejam agora étnicos, de gênero, de raça, de religião, classe social etc. Nesse contexto a diversidade cultural se transforma (...) em uma categoria ontológica (2001, p.127)”.

2) uma atitude de recusa, não-aceitação e denúncia de arbitrariedade e contingência perante aquilo que se enuncia enquanto uma verdade (anarqueologia).

Em síntese: onipresença e aceitação da verdade no relativismo epistemológico e

político-cultural; especificação dos modos de fabricação da verdade e recusa do poder da verdade na anarqueologia. Se, no entanto, falarei nos capítulos posteriores na

existência de uma onipresença da verdade no próprio contexto do realismo epistemológico, esta onipresença constitui tão-somente uma estratégia deste dispositivo, e não uma propriedade da verdade ou da realidade.

Por estas vias, é possível distinguir ainda uma terceira perspectiva que seria um

transcendentalismo epistemológico, o qual, evidentemente, remonta a Kant e aos neo-

kantianos. Curiosamente, esta perspectiva teria elementos em comum tanto com o

realismo epistemológico (por achar que a verdade não é qualquer coisa, mas tem que ser

distinguida) e com o relativismo epistemológico (por respeitar e acatar a verdade). Apesar disto, esse transcendentalismo epistemológico distingue-se de ambas as outras perspectivas nos próprios pontos em que se aproxima. Sua diferença com o realismo epistemológico diz respeito ao fato de que o discernimento em relação à verdade seria possível a priori, ao passo em que a diferença com o relativismo epistemológico diz respeito ao fato de que essa obediência à verdade não se refere às verdades locais, parciais, particulares e contingentes, mas à(s) verdade(s) universal(is).

Estas distinções são importantes para discernir o caráter imanente do dispositivo da verdade tal como aparece no pensamento de Foucault em relação, por exemplo, ao pragmatismo linguístico (em seu aspecto antirrealista), tal como poderia ser assumido mediante a perspectiva traçada por Wittgenstein (1989) em suas Investigações

Filosóficas. Mediante uma analítica do dispositivo da verdade não se pretende

exatamente configurar, nomear, ou batizar diferentes estados de coisas, práticas linguísticas ou formas de vida mediante o uso do termo verdade. Não se trata, pois, de apontar para um conjunto de possibilidades, mas seguir as linhas de um dispositivo concreto. Portanto, uma analítica do dispositivo da verdade há que supor um certo conjunto de práticas reais que constituem as linhas desse dispositivo. Assim, de modo algum este empreendimento pretende rebatizar a verdade, mudar a significação que lhe foi historicamente emprestada, e nem mesmo de flexibilizá-la ou relativizá-la, em um movimento de esvaziamento do conceito, da noção, ou da palavra verdade. Ao contrário, caso quiséssemos dizer aforisticamente palavras inaugurais para acelerar os

motores rumo ao empreendimento da análise deste dispositivo, assim poderíamos dizer:

isto mesmo que vocês chamam de verdade, é isto mesmo que é a verdade! A verdade é isto mesmo que aparece na produção de enunciados jurídicos, científicos, religiosos e políticos como verdade – ela não é nada diferente disto! Assim, tudo isto deverá ser

descrito em termos do funcionamento de um dispositivo específico, o dispositivo da verdade.

Para entendermos, contudo, o tipo de questão que gostaria de colocar em relação à singularidade da forma de existência da verdade, recorro neste momento à

Arqueologia do Saber. No segundo capítulo sobre as “unidades discursivas”, Foucault

(1997b) esboça uma diferença fundamental entre uma questão acerca da possibilidade

de construção de novos enunciados e uma pergunta pela singularidade estratégica e efetiva de um enunciado.

Eis uma questão que análise da língua coloca a propósito de qualquer fato de discurso: segundo que regras um enunciado foi construído e, consequentemente, segundo que regras outros enunciados semelhantes poderiam ser construídos? A descrição de acontecimentos do discurso coloca uma outra questão bem diferente: como apareceu determinado enunciado, e não outro no seu lugar? (FOUCAULT, 1997b, p.31).

Chamo atenção à diferença entre essas duas questões porque o que me interessa, neste estudo, é não uma pergunta pelas possibilidades de inscrição da verdade, mas pela efetividade do acontecimento verdade. A efetividade desse acontecimento, todavia, não é algo que possa ser analisado sem que seja situada sua função estratégia e o jogo de seu aparecimento, mas também aquilo que seu acontecimento faz desaparecer mediante sua ocupação em um espaço singular no campo discursivo. Se não há, na Arqueologia do

Saber, uma tematização mais específica das formas de governo dos homens ou dos

mecanismos de dominação e sujeição, já existe aí toda uma concepção de que a singularidade de um enunciado, de um campo de enunciações ou de uma formação discursiva20 constitui uma peça estratégica em toda uma política dos saberes.

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Na Arqueologia do Saber, Foucault (1997b) assim define a noção de formação discursiva: “no caso em que se puder descrever, entre um certo número de enunciados, semelhante sistema de dispersão, e no caso em que entre os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se puder definir uma regularidade (uma ordem, correlações, posições e funcionamentos, transformações) diremos, por convenção, que se trata de uma formação discursiva – evitando, assim, palavras demasiado carregadas de condições e consequências, inadequadas, aliás, para designar semelhante dispersão, tais como ‘ciência’, ou ‘ideologia’, ou ‘teoria’, ou ‘domínio de objetividade” (p.43).

Não se busca, sob o que está manifesto, a conversa semi-silenciosa de um outro discurso: deve-se mostrar por que não poderia ser outro, como exclui qualquer outro, como ocupa, no meio dos outros e relacionado a eles, um lugar que nenhum outro poderia ocupar. A questão pertinente a uma tal análise poderia ser assim formulada: que singular existência é esta que vem à tona no que se diz e em nenhuma outra parte? (FOUCAULT, 1997b, p.31 e 31, grifos meus).

A Arqueologia deve, portanto, atar um nó entre a singularidade e a

exterioridade do acontecimento discursivo. Para tal, é evidentemente imprescindível

nos livrarmos de uma tendência fortemente agenciada pelo campo das práticas “psi” em identificar o singular ao interior, bem como o homogêneo ao exterior. Na Arqueologia

do Saber existirá toda em recusa em situar-se no registro das origens silenciosas, das

unidades dormentes e constantes, das continuidades invisíveis, das equilibrações submersas, das totalizações que não se deixam aparecer. Ela não pretende, pois, “liberar do texto essas experiências pré-discursivas” (FOUCAULT, 1997b, p.54). Ao contrário: há que permanecer no nível da superfície discursos, nem além e nem aquém dela. É este o sentido que Foucault (1997b) parece querer dar ao seu apologético anúncio de que é preciso renunciar tanto às palavras quanto às coisas. Isto parece querer dizer: devemos abrir mão dos esforços extenuantes em querer ver aquilo que está por trás das palavras, aquilo que repousa silenciosamente sob o incessante zumbido e fervura do discurso, aquilo que são as próprias coisas enquanto tais. Mas isso de modo algum significa dizer que, se não temos as coisas, temos pelo menos as palavras: “elidir o momento das ‘próprias coisas’ não é remeter à análise linguística da significação (...) as palavras estão tão deliberadamente ausentes como as próprias coisas” (FOUCAULT, 1997b, p.55). Foucault não é Wittgenstein: as palavras não são as coisas que nos restam.

Em uma palavra, quer-se, na verdade, renunciar às “coisas”, “despresentificá- las”; conjurar sua rica, relevante e imediata plenitude, que costumamos considerar como lei primitiva de um discurso que dela só se afastaria pelo erro, esquecimento, ilusão, ignorância ou inércia das crenças e das tradições ou, ainda, desejo, inconsciente talvez, de não ver e de não dizer; substituir o tesouro enigmático das “coisas” anteriores ao discurso pela formação regular dos objetos que só nele se delineiam; definir esses objetos sem referência ao fundo das coisas (FOUCAULT, 1997b, p.54).

Isso não significa, de forma alguma, um abandono ou um rompimento com a realidade, como de início poderíamos pensar. O que se recusa é a ideia de que há uma

realidade mesma, esta delirante noção que passou a nos ser tão natural: a de que existem coisas mais reais do que outras. Recusando, todavia, esse caráter ao mesmo tempo

profundo, duro, imóvel e silencioso da “realidade mesma” não estarei fazendo rompimento algum com a realidade que levasse à adoção de uma perspectiva antirrealista. Ao contrário, o que pretendo é justamente levar o realismo até suas últimas consequências.

Por realismo, geralmente, entende-se a posição filosófica ou metafísica que supõe existirem coisas no mundo, independentemente da linguagem ou do pensamento. Tendo esta definição, poderíamos formular uma definição de antirrealismo fazendo alusão à posição oposta, a saber, àquela que diz não existirem coisas no mundo independentemente da linguagem ou do pensamento. Pois bem, essa significação de realismo e de antirrealismo esconde aquilo que constitui o motor de funcionamento das perspectivas realistas tal como assumidas por autores como Wittgenstein (2001), Habermas (2004) ou Putnam: elas supõem que a linguagem ou o pensamento não fazem parte, ou são relativamente autônomas em relação a essas “coisas no mundo”. Precisamente por não fazerem parte dessas “coisas”, é possível elaborar – ainda que vaga e aproximadamente, de forma não definitiva e nem consensual – uma noção mínima de correspondência, adequação, representação; ou, ainda, afirmar que a realidade resiste ou choca com nossos conceitos. Assim, mediante essa perspectiva sempre é possível afirmar: a proposição x é mais próxima da realidade do que a proposição y, exatamente porque a proposição x e a y nem estão na realidade e nem são uma realidade.

Chamarei, portanto, este pretenso realismo de realismo transcendente. A ele, oporei um realismo imanente, com o qual passo a operar no decorrer de todo este trabalho. A recusa a este realismo transcendente deve-se ao fato de que nunca é realista o suficiente, uma vez que estará sempre a supor que existem coisas reais e coisas não reais. Ora, mas o que é uma coisa não real? É aí que o realismo faz retornar a profundidade nua, muda e dura das coisas mesmas (FOUCAULT, 1997b) e apela ao pré-filosófico e pré-discursivo: há que apelar à intuição, ao bom senso, à imagem do pensamento, àquilo que “todo mundo sabe, ninguém pode negar” (DELEUZE, 2009) – eis o momento em que essa vontade de “realismo” foge da Filosofia. Assim, esse “realismo” irá supor que existem descrições mais próximas da realidade e descrições menos próximas – com isso, diz muito mais do que simplesmente apontar para a existência de coisas foras da mente, do discurso, ou independente do sujeito. Assim, um antirrealismo dirá, então, que não existem descrições mais próximas e descrições mais distantes da realidade. Ora, mas não é somente isso que ocorre, pois por alguma razão

essa assunção vem estranhamente associada à ideia de que não há uma relação entre o sujeito/a linguagem/o pensamento e qualquer forma de realidade.

Assumo, portanto, um realismo imanente, que sobreponho ao realismo

epistemológico acima mencionado. Isto ocorre na medida em que pretendo levar às

últimas consequências a atitude inicial do realismo transcendente e a atitude final do antirrealismo: existem coisas independentes do pensamento e da linguagem sim, e essas coisas fazem parte da realidade. Mas a linguagem e o pensamento não podem servir de régua para ajustar a realidade – e isso precisamente porque também são realidades,

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