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Sobre a clandestinidade do pensamento de Foucault

POSICIONANDO UM PROBLEMA POLÍTICO-METODOLÓGICO

7. Sobre a clandestinidade do pensamento de Foucault

Dizer que o tema da verdade ocupa uma centralidade no pensamento de Foucault, muito embora considere que seja um ponto insuficientemente dito, explorado ou aprofundado, não constitui originalidade deste estudo. Com efeito, é importante

destacar dois trabalhos que se debruçaram especificamente sobre a temática da verdade no pensamento de Foucault – são eles Foucault e a Crítica da Verdade (CANDIOTTO, 2010) e Anarqueologia (LARRAURI, 1999). Estas são, portanto, duas referências de valia para auxiliar a pensar a temática que ora proponho investigar, de modo que, por essa razão, estarei em alguns momentos fazendo referência a essas obras.

Considero, contudo, que ambos os trabalhos deixam à sombra um problema sobre o qual entendo ser de suma importância lançar luzes. Conforme referi anteriormente, ele consiste em uma análise do jogo de forças presentes entre uma história interna da verdade (o campo das Teorias da Verdade, da Filosofia Analítica, da Filosofia da Ciência e da Epistemologia) e uma história externa da verdade. Mas não um jogo de forças que esteja desde já confortavelmente situado em solo foucaultiano. Trata-se de ir um pouco além: infiltrar-se neste domínio como um espião clandestino que joga o jogo da verdade fazendo aparecer à superfície as armas do inimigo, e mostrando quão frágeis elas podem vir a ser. Há, portanto, uma atitude clandestina que considero fundamental no pensamento de Foucault – o que é assinalado em diversos momentos por Larrauri (1999), mas que, infelizmente não parece ter sido muito bem percebida por Candiotto (2010). Malgrado Larrauri (1999) ter explorado de uma forma fundamental esta atitude clandestina de Foucault e dar dado vida à anarqueologia como uma posição de recusa, de resistência e de enfrentamento ao poder da verdade, não há neste trabalho uma problematização filosófica mais sistemática, aprofundada e detalhada do jogo de forças que há entre uma história interna e uma história externa da verdade. Quando há essa problematização, ela, todavia, não ousa operar um desprendimento do território foucaultiano e desbravar com maior cuidado o território inimigo.

No caso do trabalho de Candiotto (2010), considero que, além de estar ausente este trabalho de infiltração, não há uma concepção muito clara do aspecto clandestino e subversivo acerca do modo como Foucault agencia o problema da verdade. Há uma excessiva ênfase na filiação de Foucault à tradição iluminista e crítica que remonta a Kant22, expresso inclusive no próprio título do trabalho – Foucault e a Crítica da

Verdade, bem como nos diversos momentos em que o autor estabelece demasiadas

aproximações entre a atitude crítica foucaultiana e um certo espírito iluminista. Apesar,

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Para Candiotto (2006), “A Aufklärung é reativada por Foucault ao modo de prática histórico-filosófica: tratar de indagar até que ponto os discursos de verdade sobre o indivíduo, elaborados pelas Ciências Humanas e pela Filosofia, são indissociáveis de mecanismos constringentes de poder e de sujeições determinadas” (p. 76).

contudo, de pontuar uma diferença entre a atitude crítica kantiana e a atitude crítica foucaultiana, ainda assim considero que se trata de uma obra que enfatiza demasiadamente uma continuidade, uma sucessão, uma reativação do empreendimento kantiano por parte Foucault:

São constitutivas da atitude crítica [foucaultiana] a transformação incessante do pensamento, a dobra da curva do inteligível, o elogio da diferença. A crítica na qual sua Filosofia se inscreve é política e ética, gesto filosófico, ontologia histórica e tensão corajosa entre discursos e práticas. Relevante na atitude crítica é a reativação da Aufklärung como questão pertinente que incita a desconfiar de familiaridades próximas e de certezas demasiado evidentes. O pensador detém-se na questão que envolve a verdade daquilo que somos, pensamos e fazemos. (CANDIOTTO, 2010, p.156).

Entendo que seria necessário se ater com maior cautela aos pormenores e ao caráter estratégico desta aproximação. Talvez mais em seus móveis inconfessáveis e na singularidade deste acontecimento do que no jogo autoral e imaginário dos precursores, das predecessões e das grandes filiações. Esta pertença, tão enfatizada por Candiotto (2010) e muito mais problematizado do que aclamado por Foucault, poderá dar margens a aproximações bastante simplificadoras, caso não atentemos para uma divisão fundamental no seio da Filosofia Crítica, no terreno do Iluminismo, no solo da

Aufklãrung. E, ainda, poderá minar toda a potência subversiva, transgressora e

clandestina de Foucault mediante um derradeiro reconhecimento de sua pertença, no final das contas, à tradição Crítica e Iluminista. Vejamos as palavras finais do texto O

que é o Iluminismo?, extraído da aula do dia 5 de janeiro de 1983, ministrada por

Foucault por ocasião do curso O Governo de Si e dos Outros.

Diríamos que em sua grande obra crítica, Kant colocou, fundou esta tradição da Filosofia que coloca a questão das condições sobre as quais um conhecimento verdadeiro é possível e, a partir daí, toda uma parte da Filosofia moderna desde o século XIX se apresentou, se desenvolveu como uma analítica da verdade. Mas existe na Filosofia moderna e contemporânea um outro tipo de questão, um outro modo de interrogação crítica: é esta que se viu nascer justamente na questão da Aufklãrung ou no texto sobre a revolução; “O que é nossa atualidade? Qual é o campo atual das experiências possíveis?”. Não se trata de uma analítica da verdade, consistiria em algo que se poderia chamar de analítica do presente, uma ontologia de nós mesmos e, me parece que a escolha filosófica na qual nos encontramos confrontados atualmente é a seguinte: pode-se optar por uma crítica que se apresenta como uma Filosofia analítica da verdade em geral, ou bem se pode optar por um pensamento crítico que toma a forma de uma ontologia de nós mesmos, de uma ontologia da atualidade, e é desta forma de Filosofia que de Hegel à Escola de Frankfurt, passando por Nietzsche e Max Weber, fundou uma forma de reflexão na qual tento trabalhar (FOUCAULT, 1994, p. 8-9, grifos meus).

Aqui Foucault (1994) situa dois caminhos possíveis para a reflexão filosófica: uma analítica da verdade ou uma analítica do presente, e faz sua escolha pelo segundo caminho. O que se opõe ao presente, ou dele se distancia, não é o passado e tampouco a história, mas a verdade. Aquele que se ocupa de uma analítica da verdade não tem exatamente o presente, o atual, o contemporâneo, o que acontece hoje ou agora (FOUCAULT, 1994) como questão importante. Por outro lado, aquele que se ocupa do presente tomaria maior distância de tudo aquilo que diz respeito mais estritamente à verdade. Assim, antes de aproximar de imediato o pensamento foucaultiano à

Aufklärung kantiana, convém perceber que, diferentemente de Kant e de uma série de

outros agenciamentos filosóficos filiados ao Iluminismo, Foucault percebe uma rachadura entre a temática da verdade e a temática do presente.

Portanto, a temática da verdade será, ao mesmo tempo, central e marginal no pensamento de Foucault. Se convém, por um lado, insistir na inserção do pensamento foucaultiano nas temáticas da verdade, temos que perguntar em que consiste essa inserção, de que modo ela ocorre, qual seu significado e para que fins ela é feita; ou mesmo, se assumirmos que existe uma filiação de Foucault com a atitude da

Aufklãrung, as perguntas acima são igualmente importantes.

Para compreender essa suposta inserção dos escritos foucaultianos na tradição do Esclarecimento, retornemos agora ao movimento metodológico esboçado por Foucault (2008a): aproximar-se de um campo de saberes, práticas e acontecimentos e ir contra o movimento que nele acontece. A aproximação, mediante a temática da verdade, com toda a tradição Iluminista e Crítica23, que remonta a Kant, não poderia constituir uma tentativa de produzir um movimento em choque com aquele que ela realiza? Sua inclusão neste campo do pensamento filosófico não poderia ter como móvel uma

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Sobre este ponto, Deleuze (1996) assinala: “Foucault recusa toda a restauração dos universais de reflexão, de comunicação, de consenso. Pode-se dizer, a esse respeito, que as suas relações com a escola de Frankfurt, e com todos os sucessores desta escola, são uma longa sequência de mal-entendidos de que Foucault não é responsável. E assim como não há universalidade de um sujeito fundador, ou de uma razão por excelência que permita julgar os dispositivos, assim não há também universais de uma catástrofe onde a razão se alienaria, onde de uma vez por todas se afundaria” (p.3). Em outros trabalhos (BENEVIDES e SEVERIANO, 2012; Benevides e SEVERIANO, 2011) procurei, contudo, mostrar como há não somente um conjunto de temáticas afins, mas também uma série de encaminhamentos semelhantes dado por ambas as perspectivas – as Filosofias da Diferença e a Escola de Frankfurt – no que diz respeito a uma crítica às novas formas de governo e dominação dos homens. Esta afinidade, contudo, cede lugar a uma enorme distancia quando se trata do problema da verdade.

vontade de implodi-lo, sabotá-lo ou traí-lo? Não seria Foucault mais um espião infiltrado na tradição crítica do que um defensor que busca salvaguardá-la24?

No texto escrito um ano após as palavras mencionadas na aula de 5 de janeiro de 1983, Foucault (2008b) traz os ecos desta atitude em seu texto O Que São as Luzes? Temos, nesta ocasião, o delineamento de duas atitudes em relação à Aufklärung:

a) desvencilhar o acontecimento da Aufklärung das temáticas um tanto imprecisas ligadas ao humanismo;

b) escapar da “chantagem intelectual e política de ser a favor ou contra a

Aufklärung” (FOUCAULT, 2008b, p.347).

Aqui será estabelecido um conjunto de deslocamentos que constituem, em certa medida, uma torção até a reversão da pergunta kantiana acerca do que é o

Esclarecimento. Eles nos levarão de uma crítica transcendental dos limites da razão humana a uma ontologia de nós mesmos. A ligação entre elas é expressa por Foucault

(2008b) nos seguintes termos: “no que nos é apresentado como universal, necessário, obrigatório, qual a parte do que é singular, contingente e fruto de imposições arbitrárias?” (p.347).

Há, certamente, uma dobradiça que permite operar essa reversão da Aufklärung: a noção de liberdade. Deixando, todavia, uma discussão mais aprofundada das temáticas relacionadas à liberdade para o segundo tópico do segundo capítulo deste trabalho, penso que, neste momento, se faz importante evidenciar como esse conjunto de deslocamentos operados por Foucault (2008b) possui a marca de uma infiltração com finalidades de subversão daquilo que outrora constituía a estrutura limitativa de um campo de reflexão.

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“Deixemos com sua piedade aqueles que querem que se guarde viva e intacta a herança da Aufklãrung. Esta piedade é claramente a mais tocante das traições. Não são os restos da Aufklãrung que é preciso, é a questão mesma desse acontecimento e de seus sentidos (...) que é preciso manter presente” (FOUCAULT, 1994, p.8). Quer dizer: não se trata de retornar aos valores clássicos do Iluminismo, como autonomia, racionalidade, universalidade, e fazê-los funcionar na atualidade. A atitude foucaultiana consiste, sim, em situar a atividade filosófica como uma atividade que implica uma tomada de posição em relação ao “nós”, na medida em que esta posição é sempre singular e na medida em que este “nós” refere-se não ao universal, mas ao contemporâneo. (FOUCAULT, 1994). Para uma análise acerca do modo como a referência constante ao pronome nós vem, por outro lado, sustentando uma série de práticas discursivas totalizantes, universalistas e com pretensões consensuais, ver o texto De onde falamos ‘nós’?Uma análise da produção da diferença a ser incluída. (BENEVIDES, 2011)

Trata-se, em suma, de transformar a crítica exercida sob a forma de uma limitação necessária em uma crítica prática sob a forma de ultrapassagem possível. (...) Neste sentido, essa crítica não é transcendental e não tem por finalidade tornar possível uma metafísica: ela é genealógica em sua finalidade e arqueológica em seu método. Arqueológica – e não transcendental – no sentido de que ela não procurará depreender as estruturas universais de qualquer conhecimento ou de qualquer ação moral possível; mas tratar tanto dos discursos que articulam o que pensamos, dizemos e fazemos como acontecimentos históricos. E essa crítica será genealógica no sentido de que ela não deduzirá da forma do que somos o que para nós é impossível fazer ou conhecer; mas ela deduzirá da contingência do que nos fez ser o que somos a possibilidade de não mais ser, fazer ou pensar o que somos, o que fazemos ou pensamos. (FOUCAULT, 2008b, 347-348).

Em síntese, eis aqui o movimento de reinscrever a liberdade não no contexto de uma reflexão sobre os limites da razão, mas sim no âmbito arqueológico de fazer aparecer aquilo que somos naquilo que somos como acontecimento e no âmbito

genealógico de tomar esse acontecimento por uma contingência que nos permitirá ser

outro em relação ao que somos. Isso implicará, como veremos no contexto em que estiver lidando com as temáticas ligadas à anarqueologia e à confissão (capítulos IV e VII), uma atitude de recusa à verdade daquilo que somos. Saindo da reflexão dos limites para uma aceleração rumo à ultrapassagem, não teríamos aí uma filiação agenciada sob o signo de qualquer coisa como uma clandestinidade?

Esta posição, esta movimentação, esta forma de ocupação deste lugar, ou este modo de filiação às temáticas e ao acontecimento da Aufklãrung por parte de Foucault trarão, portanto, a marca de uma clandestinidade. Avelino (2010a), na tentativa de estabelecer uma aproximação entre Foucault e o pensamento anarquista, traz também à tona esse traço clandestino do pensamento de Foucault que será melhor compreendido no contexto da atitude anarqueológica. Ele consiste em pensar essas movimentações em semelhança com aquelas realizadas por um “agente clandestino que joga o jogo da Razão em vista minar a autoridade da Razão (Verdade, Honestidade, Justiça e assim por diante)” (FEYERABEND, 1993, p. 19, grifos meus).

Eis, então, todo um movimento de filiação que tem, pela via da verdade, a marca de uma clandestinidade. Mas retomo aqui a questão: por que a verdade, e não outra

coisa? Ora, a rachadura fundamental da Aufklärung não seria exatamente entre uma

analítica da verdade e uma analítica do presente? E Foucault não colocou seu próprio pensamento nas trilhas de uma analítica do presente? Eis aqui, portanto, o sentido desta infiltração que responderá às duas questões acerca da clandestinidade e da

singularidade da verdade postas, respectivamente, ao final dos tópicos 5 e 6: trata-se de jogar com a verdade o jogo do presente. A verdade é, portanto, a peça singular no jogo

clandestino de Foucault; mas o que é feito dela nesse jogo?

Em A Verdade e as Formas Jurídicas, Foucault (2011c) sublinha com letras

garrafais o parágrafo 333 – O que significa conhecer. Non ridere, non lugere, nequi

detestari, sed intelligere!25 – do livro A Gaia Ciência, de Nietzsche (2012). Lancemos,

por ora, uma maior atenção sobre ele. Referindo-se ao Tractatus Politicus de Spinoza, Nietzsche (2012) dirá que o conhecimento não surge a partir de uma quietude, de uma desativação ou de um apagamento dos impulsos rir, lamentar e detestar, tal como considerou o primeiro filósofo. Ao contrário, intelligere – inteligir, entender, compreender – só ocorre mediante uma ativação desses instintos: rir, lamentar, detestar. Nietzsche (2012) irá considerar aí três movimentos:

a) cada instinto deve se organizar unilateralmente;

b) deve haver um combate entre cada uma dessas forças unilaterais;

c) daí deverá surgir algo como “um meio-termo, uma tranquilização, uma justificação para os três lados, uma espécie de justiça e de contrato” (p.195).

O que dessa movimentação, no entando, sabe o filósofo? Nietzsche (2012) diz que este é precisamente aquele que mais se engana sobre a natureza do conhecer. Este engano, este erro, esta equivocada representação sobre o que é o conhecimento, qual sua fonte e como é seu funcionamento é de inteiro compartilhamento com o que ordinariamente pensamos acerca do conhecimento: “achamos que intelligere é algo conciliatório, justo, bom, essencialmente contrário aos impulsos; enquanto é apenas

uma certa relação dos impulsos entre si” (NIETZSCHE, 2012, p.196).

Lendo Nietzsche, Foucault faz acréscimos, extrações, trações, traçados e torções. Faz Nietzsche dizer o que não disse, racha suas palavras. E existe aí uma rachadura, ou uma torção, que me parece fundamental. Logo na primeira conferência daquelas cinco que compõem A Verdade e as Formas Jurídicas, Foucault (2011c) menciona que esses três instintos – “o rir, o deplorar e o detestar (ódio)” (p.21, grifos meus) – têm em comum o fato de manterem longe o objeto de conhecimento: “de conservar o objeto à distância, de se diferenciar dele ou de se colocar em ruptura com ele, de se proteger pelo

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riso, desvalorizá-lo pela deploração, afastá-lo e eventualmente destruí-lo pelo ódio” (idem, grifos meus). A ênfase dada por Foucault (2011c) à destruição, à maldade e, principalmente, ao ódio, como os móveis principais do conhecimento, fica ainda mais explícita na seguinte passagem:

Atrás do conhecimento há uma vontade, sem dúvida obscura, não de trazer o objeto para si, de se assemelhar a ele, mas ao contrário, uma vontade obscura de se afastar dele e de destruí-lo, maldade radical do conhecimento. Chegamos assim a uma segunda ideia importante. A de que esses impulsos – rir, deplorar, detestar – são todos da ordem das más relações. Atrás do conhecimento, na raiz do conhecimento, Nietzsche não coloca uma certa afeição, de impulso ou de paixão que nos faria gostar do objeto a conhecer, mas, ao contrário, impulsos que nos colocam em posição de ódio, desprezo, ou temor diante de coisas que são ameaçadoras ou presunçosas (p.21, grifos meus).

O conhecimento conhece contra um mundo caótico, desordenado, desgovernado, onde nada como a verdade existe. Nietzsche (2012) dissera: “Guardemo- nos de dizer que há leis da natureza. Há apenas necessidades: não há ninguém que comande, ninguém que obedeça, ninguém que transgrida” (p. 126). Foucault (2011c) acrescentou: “o conhecimento, além de não estar ligado à natureza humana, nem mesmo é aparentado, por um direito de origem, com o mundo a conhecer” (p. 17). Ao querer imprimir unidade, sentido, ordem, lei, comando, governo e verdade ao mundo, o conhecimento, portanto, “só pode ser uma violação das coisas a conhecer, e não percepção, reconhecimento, identificação delas ou com elas” (FOUCAULT, 2011c, p.18).

Ao final deste capítulo, é de minha vontade arriscar algumas palavras certamente um pouco esdrúxulas, extravagantes e que extrapolam a frieza e a sobriedade de um espaço analítico. Existe algo da ordem não somente de uma clandestinidade e transgressão, mas da ordem de um ódio, de um vontade de destruição, ou de uma maldade inconfessável que acompanha o pensamento de Foucault desde suas propedêuticas análises sobre a loucura e a doença mental – tal como em Doença Mental

e Psicologia e História da Loucura (FOUCAULT, 2000; 2010c) – até suas

considerações sobre as práticas cristãs de obediência à verdade (exomologêsis e

exagoreusis) e os mecanismos médico-jurídicos que, para obterem a verdade na

confissão, jogam fazendo mal ao sujeito – como podemos ver no curso de 1980 Do

Governo dos Vivos, mas também em um curso ministrado por Foucault (2010c) em

justice. Mas não somente nessas ocasiões – refiro-me a todo um período de seu

pensamento de vai de 1954 a 1981. As temáticas relacionadas às disciplinas e à produção do campo médico-psi, em sua minúcia tateante e maldosa (FOUCAULT, 1997a), ao biopoder e aos dispositivos da sexualidade em suas estratégias de regulamentação da população, em sua representação irônica que conferem à liberdade e em sua apologia à “vida” (FOUCAULT, 2009b), à governamentalidade neoliberal, à naturalização das práticas de governo e ao empresariamento da sociedade (FOUCAULT, 2008a), ao poder psiquiátrico em seu caráter grotesco e ubuesco de um discurso que diz a verdade, que faz rir e que faz matar (FOUCAULT, 2012a; 2002), os dispositivos de segurança, a polícia discursiva e o racismo de Estado (FOUCAULT, 2010d; 2004a) – mas também as temáticas relacionadas à edificação das Ciências Humanas e à produção do Homem como o ponto de articulação entre o empírico e o transcendental, ponto esse na iminência do desaparecimento como um rosto de areia à beira-mar (FOUCAULT, 2007a); ao jogo esquivo e medroso da autoria, do comentário, da exegese, da interpretação e da estada no verdadeiro que conduz as multiplicidades do discurso a uma dormência grave, morna e originária (FOUCAULT, 2011b; 2008b, 2009a), às sínteses dialéticas e histórico-transcendentais que recobrem o novidade e o acontecimento dos enunciados nos grandes períodos, nas continuidades, nas grandes temáticas ou nas metanarrativas que nada mais são do que a expressão e desdobramento da atividade magna da consciência do sujeito (FOUCAULT, 1997b) – ora, tudo isso não

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