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IMPENSADO NO DISPOSITIVO DA VERDADE

3. Os portadores de verdade e o enunciado

dizer: o que as teorias da justificação fazem são, do ponto de vista delas mesmas, teorias da verdade, porém não são genuínas teorias da verdade desde a perspectiva de Kirkham (2003) e França (2008). Isso ocorre na medida em que “o programa epistemológico depara-se com a necessidade de mostrar de que modo nossas crenças poderiam ser justificadas como provavelmente verdadeiras” (FRANÇA, 2008, p.33, grifos meus). Isto significa que tratar das condições de acesso à verdade, tarefa cabível a uma epistemologia ou teoria do conhecimento, é algo diferente de lidar com questões acerca da natureza, da essência, do significado e da definição da verdade, ou mesmo daquilo que se faz ou se diz quando se afirma uma verdade. Assim, todo projeto com pretensões epistemológicas estaria inscrito no âmbito que os autores supracitados entenderam como projetos de justificação. As consequências desta assunção serão problematizadas no decorrer deste capítulo.

3. Os portadores de verdade e o enunciado

Um ponto de fundamental importância não foi, todavia, ainda explicitado: a que coisas exatamente podem ser lançadas o predicado “é verdadeiro”? A frases, a objetos, a proposições, a fatos, a enunciados, a pensamentos? O que exatamente porta uma verdade? Segundo Kirkham (2003), qualquer coisa, em princípio, pode ser designada como verdadeira ou falsa. França (2008) dá alguns exemplos de portadores de verdade: “proposições, afirmações, ideias, atos-de-fala, atos de pensamento, crenças, asserções, juízos e teorias” (p.30). A eleição do portador de verdade está relacionada com o programa filosófico ao qual estamos inseridos. Costa (2005) faz uma delimitação mais específica quanto a este aspecto, apontando quatro candidatos a portadores de verdade37: 1) pessoas ou coisas; 2) sentenças assertivas; 3) proposições; 4) crenças. Sigamos um pouco o fio condutor de suas argumentações.

Segundo Costa (2005), as pessoas ou coisas podem ser portadores de verdade, mas somente sob a forma de portadores derivados. Na afirmação “Sócrates é verdadeiro” quero dizer, com isso, simplesmente que Sócrates diz a verdade. Portanto, a

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Quanto a este ponto, em diversas obras, mas fundamentalmente em A Coragem da Verdade, Foucault (2011a) faz referência ao modo como a uma série de outros elementos que não estes citados por Costa (2005) pode ser atribuído um predicado de verdade, a exemplo do discurso verdadeiro, do amor verdadeiro e da vida verdadeira. Essas formas de inscrição da verdade nesses registros serão mencionadas no quinto capítulo desse trabalho.

verdade residiria não exatamente em Sócrates, mas naquilo que ele diz. Dizemos “Sócrates é verdadeiro” por mera derivação semântica. Quanto às coisas/objetos, em sua candidatura a portadores de verdade, Costa (2005) nos dá um exemplo da afirmação “Este diamante é verdadeiro”. Mediante ela quer-se dizer que o diamante, por ser autêntico e não falso, faz com que as pessoas digam a verdade sobre ele (como, por exemplo, que ele vale vinte mil dólares)38.

Seriam, então, as sentenças assertivas (frases) – a saber: aquilo que se diz – os portadores de verdade por excelência? Conforme Costa (2005), se podemos atribuir verdade ou falsidade a uma sentença, ainda assim ela não é exatamente o original portador de verdade. Isso porque tanto, por um lado, o seu valor de verdade (ser verdadeira ou ser falsa) pode ser alterado a depender da ocasião em que ela é proferida; como, por outro lado, porque as sentenças podem ser alteradas, ao passo em que aquilo que nelas atribuímos verdade deve permanecer inalterado. Quanto ao primeiro caso, Costa (2005) exemplifica que a afirmação “Sinto dores nesse momento!” será falsa se proferida por mim (pois, juntamente com o autor, eu não sinto dores nesse momento), mas deverá ser verdadeira caso seja expressa por alguém que acabou de receber um tiro no braço. Quanto ao segundo caso, tomemos o exemplo das sentenças: “Está chovendo”; “It’s raining”; “Il pleut”. Segundo Costa (2005), isso ilustra uma circunstância em que, apesar de a sentença ter mudado, aquilo que é dito mediante essas

sentenças permanece o mesmo e possui, portanto, o mesmo valor de verdade (se na

cidade em questão estiver chovendo, as afirmações serão verdadeiras; se lá não estiver chovendo, será falsa).

Por esta via, Costa (2005) descobre um princípio de invariância da verdade, que se refere ao que a sentença diz, ao seu sentido, àquilo que por ela se entende ou se pensa, princípio este que pode ser expresso da seguinte forma: “o que é verdadeiro (ou falso) permanece verdadeiro (ou falso); esse princípio equivale à exigência da invariância do portador de verdade, posto que ele é aquilo mesmo que dizemos ser verdadeiro ou falso” (COSTA, 2005, p.1). As sentenças assertivas, portanto, representam meramente a aparência, a capa, o invólucro daquilo que é dito verdadeiro.

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Claro que, a rigor, é possível que se diga uma não-verdade acerca de um diamante verdadeiro. É possível que, de um diamante verdadeiro, se diga: “Este diamante não é verdadeiro, mas sim falso; ele não vale nada!”, caso o indivíduo que possua o diamante seja assaltado por um ladrão que o obrigue a entregar o diamante. Portanto, a atribuição verdadeiro, para o diamante, tem a ver com uma maior probabilidade de que se diga a verdade sobre ele, mas não implica que necessariamente isto ocorra em todos os casos. Igualmente, podemos admitir que alguém que chamamos de verdadeiro tenha dito uma mentira em algum momento da sua vida.

Por essa razão, elas podem mudar, ao passo que aquilo a que é atribuído verdade – o núcleo duro – não pode acompanhar esse movimento de mudança. O portador de verdade, portanto, é indiferente tanto ao caráter verdadeiro ou falso da sentença proferida sobre ele (dizer que algo é verdadeiro ou falso não terá implicação alguma com a verdade ou falsidade desse algo), como ao fato de a sentença ter sido ou não proferida (dizer ou não dizer que algo é verdadeiro em nada se relacionará com a verdade desse algo).

Mediante esse princípio de invariância da verdade, percebe-se que uma crença (a última candidata a portador de verdade) não pode ser senão um portador de verdade derivado. Pela palavra crença, costumamos entender duas coisas: o ato de crer e o

conteúdo da crença39 (COSTA, 2005). O portador de verdade, como bem podemos perceber, encontra-se mais próximo do conteúdo da crença do que do ato da crença. Nesse sentido, aquilo em que se crê pode ser verdadeiro ou falso, independentemente do

ato de crer. As crenças (o ato de crer) não impedem a verdade, mas a verdade é

inteiramente indiferente às crenças. Esse ponto também já foi percebido por França (2008): crenças podem sim ser verdadeiras, desde que o seu conteúdo seja verdadeiro; da mesma forma, proposições científicas podem ser falsas se aquilo que elas dizem for falso.

Esse caminho leva Costa (2005) a admitir que o único portador de verdade por excelência é a proposição. Quanto a isto, o autor faz questão de frisar: não é o estado de coisas no mundo, não são os fatos, não são as entidades extra-humanas e extra- linguísticas que são os originais portadores de verdade. Seguindo a tradição fregeana, Costa (2005) prefere chamar de pensamento40, e não de proposição, o portador de verdade original. O autor se distancia de Frege, entretanto, no seguinte ponto: só é verdadeiro um pensamento que foi de fato pensado, pois um pensamento que não foi ainda pensado não é nem verdadeiro, nem falso. Costa (2005) expressa isto claramente na seguinte passagem:

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Exemplo de crença como ato: “A crença em Deus é muito comum no Brasil” (quer dizer: “o ato de crer em Deus é comum no Brasil”). Exemplo de crença como conteúdo: “Deus é uma crença muito comum no Brasil” (temos aqui uma frase não sobre o ato de crer, mas sobre Deus como conteúdo da crença). 40

Ao contrário do modo como estamos acostumados a lidar com este conceito, pensamento aqui faz referência a um conteúdo ou sentido objetivo presente nas asserções. Segundo Oliveira (2001), “para Frege, o pensamento, enquanto conteúdo de um ato de pensar, não é um elemento corrente da consciência, ele não pertence ao conteúdo da consciência em contraposição a tudo aquilo que ele denomina ‘representação’, isto é, sensação, imagens etc. O pensamento é objetivo, enquanto as representações não. Assim o pensamento pertence a todos porque todos têm acesso a ele” (p.60).

Contudo, o fato empírico representado pela lei da alavanca ou o fato representado pelo teorema de Pitágoras, esses fatos duradouros e talvez eternos, não são os portadores de verdade e sim aquilo que é por eles representado em exemplares de pensamentos. Exprimindo isso de forma paradoxal: não é verdade que os corpos sempre tiveram densidade específica antes de Arquimedes, nem que a soma dos quadrados dos catetos fosse o quadrado da hipotenusa antes de Pitágoras, mas é verdadeiro o pensamento de que os corpos sempre tiveram densidade específica, mesmo antes de Arquimedes, e que a soma do quadrado dos catetos sempre resultaram no quadrado da hipotenusa. Nenhuma verdade ou falsidade existiria se não existissem mentes para pensá-las (p.3, grifos meus).

Com isto, Costa (2005) acredita se livrar de duas alternativas igualmente problemáticas mediante a suposição de que os pensamentos pensados são os autênticos portadores de verdade: a alternativa platônico-realista, que entende que os pensamentos constituem entidades objetivas de sentido41 e realidades existentes por si, e a alternativa

psicológica, que fará da atribuição de verdade algo inteiramente dependente da

existência atual de um sujeito que esteja pensando o pensamento verdadeiro. Tendo em vista estes esclarecimentos quanto à concepção de que o pensamento é o portador de verdade original – e, por conseguinte, de que pessoas, coisas, asserções e crenças seriam portadores de verdade derivados – Costa (2005) distingue quatro tipos de teorias da verdade: a teoria correspondencial, a teoria coerencial, a teoria da redundância e a

teoria pragmática. Tomarei estas quatro Teorias da Verdade como material analítico

para uma Arqueologia do impensado no dispositivo da verdade, haja vista ser esta a subdivisão uma das mais utilizadas no campo. Antes disso, contudo, penso ser necessário um esclarecimento acerca do nível analítico operado por Foucault em sua Arqueologia.

No momento de fazer referência sobre qual o objeto da Arqueologia, Foucault (1997b) nos responde: “Enunciados” (p.89).

À primeira vista, o enunciado aparece como um elemento último, indecomponível, suscetível de ser isolado em si mesmo e capaz de entrar em um jogo de relações com outros elementos semelhantes a ele; como um ponto sem superfície, mas que pode ser demarcado em planos de repartição e em formas específicas de grupamentos; como um grão que aparece na superfície de um tecido de que é o elemento constituinte; como um átomo do discurso. (FOUCAULT, 1997b, p.90).

Os enunciados, estrategicamente não definidos até um momento significativo da

Arqueologia do Saber, são inicialmente diferenciados de três outras unidades de análise

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Nesta alternativa encontraríamos toda a atitude anti-psicologista do sentido que caracterizaria o pensamento de Frege, Russell, Carnap e do primeiro Wittgenstein.

identificadas por Foucault (1997b): a proposição, a frase e os speech acts (ou atos-de- fala). O que temos nessas três unidades de análise são, todavia, elementos demasiadamente rígidos, que de modo algum podem se sobrepor ao enunciado tendo em vista o seu caráter mais tênue, capilar, fluido.

Nos três casos, percebe-se que os critérios propostos são demasiados numerosos e pesados, que não deixam o enunciado em toda sua extensão, e que se, às vezes, o enunciado assume as formas descritas e a elas se ajusta exatamente, acontece também que não lhes obedece: encontramos enunciado sem estrutura proposicional legítima, encontramos enunciado onde não se pode reconhecer nenhuma frase; encontramos enunciados mais do que speech acts [atos-de-fala] podemos isolar, como se o enunciado fosse mais tênue, menos carregado de determinações, menos fortemente estruturado, mais onipresente, também, que todas essas figuras; como se seus caracteres fossem em número menor e menos difíceis de serem reunidos; mas como se, por isso mesmo, ele recusasse toda possibilidade de descrição.

Segundo Deleuze (2005), há toda uma topologia dos enunciados que não se deixa configurar sob as malhas de uma dialética das frases (sempre submetida à contradição) e nem sob as grades de uma tipologia das proposições (submetida, por sua vez, à abstração). O enunciado, portanto, desconhece a contradição e a abstração, mas também tanto as hierarquias quanto as estruturas. Não há enunciado sobre enunciados, e os enunciados existem não como possibilidades lógicas ou gramaticais, mas como

positividades imanentes. Positividades, porém, que não se apóiam no núcleo duro e

estável das coisas, na âncora firme da percepção real, na rocha imóvel da realidade mesma. Eis o caráter desconcertante do enunciado arqueológico – o enunciado é como um sonho42: nele, tudo é real.

Não há possível e nem virtual no domínio dos enunciados; nele tudo é real, e nele toda realidade está manifesta: importa apenas o que foi formulado, ali, em dado momento, e com tais brancos e tais lacunas. (...) [Mas o enunciado] é inseparável de uma variação inerente pela qual nunca estamos em um sistema, jamais paramos de passar de um sistema a outro (mesmo no interior de uma língua). O enunciado não é lateral nem vertical, ele é transversal, e suas regras são do mesmo nível que ele (DELEUZE, 2005, p. 15-17, grifos meus).

Essa tenacidade do enunciado faz com que aquilo que ele enuncie penetre em registros onde a proposição, a frase e os atos-de-fala não conseguem adentrar. Importa para este estudo evidenciar essa finura do enunciado em relação às proposições e aos

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“Os enunciados de Foucault são como sonhos: cada um tem seu objeto próprio ou se cerca de seu mundo” (DELEUZE, 2005, p. 20).

atos-de-fala – o que mostrará um contraste entre o nível de uma Arqueologia dos enunciados e o que ocorre nos dois projetos assumidos por Kirkham (2003) e França (2008) como genuínos projetos de teoria da verdade: os projetos metafísico (onde o que está em jogo são as proposições) e os projetos atos-de-fala (onde o que está em jogo é o que se diz e/ou o que se faz quando ocorre um assentimento). Mostrarei, contudo, como o conteúdo desses projetos aparece reinscrito nos termos das Teorias da Verdade (correspondencialista, coerencial, da redundância e pragmática).

Vejamos inicialmente o exemplo dos atos-de-fala. Foucault (199b) aqui argumenta pela impossibilidade de identificar um enunciado a um ato-de-fala. Os atos- de-fala, na medida em que prescindem tanto da intenção do indivíduo que fala quanto dos resultados/efeitos provocados por aquilo que foi dito, descrevem “a operação que foi efetuada pela própria fórmula, em sua própria emergência: promessa, ordem, decreto, contrato, compromisso, constatação” (FOUCAULT, 1997b, p.94).

Destes atos-de-fala referidos, tomemos aqui o exemplo da promessa. Na condição de ato-de-fala, uma promessa implicará enunciados que não enunciam exatamente uma promessa. Ao perceber que o sujeito para quem se prometeu alguma coisa não está muito confiante naquilo que prometemos, podemos em um determinado momento enunciar: “mas você está duvidando de mim?”. Este enunciado pode, portanto, constituir uma estratégia para a promessa, mas não há aí o atravessamento de um só e mesmo ato ilocutório (no caso, a promessa) em tudo aquilo que se enuncia em uma promessa. Ora, mas a unidade ato-de-fala não deveria ser justamente aquilo que decorre simplesmente da articulação entre os enunciados? Onde está exatamente a promessa em um conjunto de enunciados? Quando se está prometendo, quando se está chantageando, quando se está realmente manifestando uma mágoa pela falta de confiança e quando se está seduzindo neste jogo tênue dos enunciados? Se percebermos que é um tipo de articulação conveniente dos enunciados que produz os critérios de individualização para formar as pretensas unidades chamadas atos-de-fala, como não perceber nessa individualização algo que precede os próprios enunciados e tenta imprimir em seu desenrolar sutil, tênue, malicioso e ambíguo as marcas grossas dos atos-de-fala?

Certos atos ilocutórios só podem ser considerados como acabados em sua singular unidade se vários enunciados tiverem sido articulados no lugar que lhe convém. Esses atos são, pois, constituídos pela série ou soma desses enunciados, por sua necessária justaposição; não se pode considerar que

estejam inteiramente presentes no menor deles, e que se renovem com cada um (FOUCAULT, 1997b, p.95, grifos meus).

No que diz respeito ao caso da proposição, gostaria de proceder uma análise um pouco mais minuciosa, precisamente pela diversidade de formas de conceber a relação entre o verdadeiro e o conteúdo proposicional nas distintas Teorias da Verdade. De antemão, no entanto, podemos ter em mente a ideia que a mesma recusa em situar o enunciado no nível dos atos-de-fala estará presente na tentativa de identificar enunciado e proposição.

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