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O impensado na Teoria Correspondencial da Verdade

IMPENSADO NO DISPOSITIVO DA VERDADE

4. O impensado nas Teorias da Verdade

4.1. O impensado na Teoria Correspondencial da Verdade

A Teoria Correspondencial da Verdade é explicitamente assumida por Costa (2005) como a mais “plausível”. Tendo sido primeiramente anunciada por Platão no diálogo Sofista, foi sintetizada na Metafísica de Aristóteles da seguinte maneira: “dizer do que é, que é, e do que não é, que não é, é dizer o verdadeiro; dizer do que é, que não é, e do que não é, que é, é dizer o falso” (ARISTÓTELES apud COSTA, 2005, p.9). Trata-se, portanto, de fazer com que uma dada afirmação corresponda a um fato, um evento, ou um estado de coisas no mundo. O ato de corresponder aparece aqui mediante

a expressão “dizer do”. Segundo França (2008), essa correspondência pode ser entendida de duas formas: como congruência43 ou correlação44. A diferença entre estas é a seguinte: enquanto no primeiro caso, para haver correspondência, é necessário que o portador de verdade seja “uma cópia perfeita do estado de coisas ao qual se refere” (FRANÇA, 2008, p.46), no segundo caso o que existe é uma relação arbitrária, fruto de uma série de convenções determinadas por contingências históricas de uma dada comunidade. Para defender-se de possíveis críticas que encontrariam na

correspondência uma espécie de mistério, de relação obscura, ou mesmo de filiação

mística entre fatos/eventos/objetos e uma proposição/pensamento, Costa (2005) defende-se, fazendo uma inversão de posições, a saber, atribuindo esse misticismo precisamente àqueles que acreditam existir um abismo entre eles – o que tornaria impossível qualquer relação de correspondência entre fatos/eventos/objetos e proposições/pensamentos. Esta inversão é também bem expressa nas palavras de Schlick (1996):

É minha humilde opinião que podemos comparar qualquer coisa com qualquer coisa se assim escolhermos. Você crê que as proposições e os fatos estão demasiado distantes um do outro? São demasiado diferentes? Que há uma misteriosa propriedade das proposições que as impede de serem comparadas com qualquer outra coisa? Isso me parece mais uma concepção mística (p.186).

Santos (1991), em seu texto de modesto título A essência da proposição e a

essência do mundo, insiste em um ponto representativo de um fundamental acordo entre

Frege, Russell e o primeiro Wittgenstein – a saber: a tese da independência do sentido de uma proposição em relação ao seu valor de verdade. Para haver correspondência, é necessário, portanto, segundo estes filósofos, que haja primeiramente sentido. O autor expressa isto nos seguintes termos:

Quando se atribui verdade ou falsidade a uma proposição, parece óbvio que o alvo da atribuição não é a matéria fônica ou gráfica do símbolo, mas o produto da vinculação dessa matéria a um sentido. Dizer que uma proposição pode, em princípio, ser verdadeira ou falsa é dizer que ela, por exprimir um sentido, pode ser, em princípio, verdadeira ou falsa. Que ela exprima um sentido não pode, pois, depender de ser efetivamente verdadeira ou falsa. É porque uma combinação de sinais diz que as coisas são ou não são assim ou assado que ela vem a ser verdadeira ou vem a ser falsa, e não vice-versa (SANTOS, 1991, p.20).

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Aqui podemos novamente citar as perspectivas de Russell e do primeiro Wittgenstein. 44

Assim, para que ocorra aquilo que Wittgenstein (2001), em seu Tractatus

Lógico-Philosophicus, chamou de afiguração – para que a linguagem afigure o mundo

– deve haver uma isomorfia lógica entre a proposição e o mundo. Há uma afinidade entre o mundo e as proposições, desde que as proposições sejam dotadas de sentido. Wittgenstein (2001) entende o sentido da seguinte forma:

Só as proposição têm sentido; é só no contexto da proposição que um nome tem significado. A cada parte da proposição que caracteriza o sentido dela, chamo uma expressão. (...) Expressão é tudo o que, sendo essencial para o sentido da proposição, podem as proposições ter em comum umas com as outras. A expressão assinala uma forma e um conteúdo. A expressão pressupõe as formas de todas as proposições em que pode aparecer. É a marca característica comum de uma classe de proposições. Ela é, pois, representada pela forma geral das proposições que caracteriza. E nessa forma, com efeito, a expressão será constante, e tudo o mais variável. (p.153-155, grifos meus).

Ter um sentido constitui uma atribuição sem meios-termos; o sentido inscreve- se, pois, no campo de uma disjunção exclusiva: ou uma proposição tem sentido ou ela não tem sentido. Essa possibilidade, como refere Wittgenstein (2001), é dada pela

expressão, se por expressão entendermos precisamente aquilo que, estando uma

proposição, pode também aparecer de forma idêntica em outras. Ela consiste em uma espécie de elo comum atomístico entre as proposições: se eu afirmo “escrevi ontem à noite na cidade do Rio de Janeiro”, há aí elementos de expressão que se repetem na proposição “escrevi ontem à noite”, e também na proposição “escrevi no Rio de Janeiro”, ou mesmo expressões com sentido que podem aparecer em outras proposições: “ontem à noite” e “escrevi na cidade”. O sentido, uma vez dado pela expressão, depende da possibilidade de repetição de uma identidade em outra proposição.

Não ocorre, todavia, tanto para Wittgenstein, como Russell e Frege que algumas proposições tenham sentido para alguns e para outros não, em alguns contextos e em outros não, em algum tempo e em outro não. E nem, muito menos, que elas tenham

mais ou menos um sentido. Por essa via, a atribuição de sentido a uma proposição

implica uma espécie de compreensão não-conceitual: não podemos justificar por conceitos porque uma frase como “A neve é branca” tem sentido, ao passo em que outra, como “A madrugada ou gera, mas tanto Rússia de amarelo”, não tem.

Revisitando as palavras de Wittgenstein (2001), o que exatamente significa o “essencial da proposição” e sua dependência do fato de “poder ter algo em comum com

outras”? Onde está exatamente o comum? O que significa “poder” nesse “poder ter algo em comum”? Quais são os mecanismos que instauram essas fronteiras entre o que pode ser comum e o que não pode? A compreensão do sentido, tal como entendida no campo das Teorias Correspondencialistas da Verdade, constitui menos um avanço de um movimento conceitual do que um retorno à compreensão não-conceitual de que falavam Deleuze e Guattari (2010). O não-conceitual, todavia, não é o plano de imanência como um modo de relação entre os conceitos, mas sim um conceito: a expressão do sentido, que tem como unidade a proposição. Assim, essa compreensão não-conceitual da expressão do sentido fará com que o pensamento pare, dobre e retorne à representação e às evidências. Reinstaurada a transcendência, o pensamento está pronto para a verdade – pois precisamente para esta disposição para a verdade, para este posicionamento afim à valoração de verdade, é que se tem qualquer coisa como uma proposição, um sentido, ou uma expressão.

Seria mesmo o sentido, ou a expressão, algo que é obtido tão-somente pela estrutura interna da proposição? Não haveria aí nenhuma referência a uma realidade mesma como a instância final de caução, como a mão que bate o martelo para a decisão pelo sentido ou não-sentido de uma expressão? Atenhamo-nos a um curioso exemplo dado por Foucault (1997b) em A Arqueologia do Saber: “Incolores ideias verdes dormem furiosamente”. O não-sentido dessa proposição nos é dado de imediato? Não precisamos nada pensar para decidir por seu não-sentido? Com Foucault, todavia, perguntamos: que coisas supomos (e pensamos não pensar) para decidir pelo seu não- sentido?

De fato, dizer que uma frase como essa [“Incolores ideias verdes dormem furiosamente”] não tem sentido supõe que já tenhamos excluído um certo número de possibilidades: admitimos que não se trata de um texto poético, que não se trata de uma mensagem codificada, ou da fala de um drogado, mas de um certo tipo de enunciado que deve estar relacionado, de modo definido, a uma realidade visível (FOUCAULT, 1997b, p.103).

Assim, parece possível afirmar que é uma certa noção intuitiva e, portanto,

impensada de conexão entre o que visto e o que é enunciado que vai determinar, no

final das contas, a possibilidade de uma proposição corresponder à realidade e ter, portanto, um valor de verdade (ser verdadeira ou falsa). O que não é aqui pensado são precisamente os mecanismos de distribuição do visível e do dizível – é esse impensado que faz com que o encaixe das palavras e das coisas se manifeste sob a luz da evidência.

É este impensado que nos fará dizer: as cores não dormem, o que é incolor não pode ser verde, as cores não têm um temperamento, não é possível dormir furiosamente – e nos fará dizer tudo isso como se houvesse uma transparência e um encaixe atemporal entre o que se diz e o que se vê, entre o que se enuncia e o que está no mundo.

Este tema é bem trabalhado por Foucault (2006), em O Nascimento da Clínica, mediante um questionamento da existência de qualquer “distribuição originária do visível e do invisível” (p.VIII). Nessa obra, Foucault (2006) dá o exemplo de um relato do médico Pomme que, no século XVIII, narra que viu “porções membranosas semelhantes a pedaços de pergaminho molhado... se desprenderem com pequenas dores e saírem na urina” (FOUCAULT, 2006, p.V). Pomme viu pequenas dores (que acompanhavam porções membranosas) saírem na urina. Mas é possível ver uma dor? Uma dor está dentro ou fora do campo do visível? Não seria mais oportuno dizer que Pomme teria visto não as dores saindo, mas algo concreto, real, visível que ele simplesmente imaginou ser o correlato físico da dor?

Mas que experiência fundamental pode instaurar essa evidente separação aquém de nossas certezas, lá onde nascem e se justificam? Quem pode nos assegurar-nos de que um médico do século XVIII não via o que via, mas que bastaram algumas dezenas de anos para que as figuras fantásticas se dissipassem e que o espaço liberto permitisse chegar aos olhos o contorno nítido das coisas? (FOUCAULT, 2006, p.VI-VII).

Esta mesma temática da distribuição do visível aparece no texto Isto não é um

cachimbo, escrito por Foucault (2009a) em 1968. Mediante esse texto escrito por

Foucault em referência ao quadro de Magritte, podemos indagar: é possível responder à pergunta “o que é isto?” a partir daquilo que o atualmente visível se oferece a nós? E o que é exatamente o isto no campo do visível? Qual o momento em que ele aparece no visível e onde exatamente aparece? E, igualmente, quando e onde deixa de aparecer? São dificuldades de ordem semelhante a esta que levam uma série de autores ao abandono de uma noção de verdade como correspondência entre proposições/expressões e o mundo para adotar uma perspectiva coerentista acerca da verdade. Se as Teorias Correspondencialistas da Verdade pecam por supor tanto uma distribuição originária do visível e do invisível como um dado lógico e universal, como também uma possibilidade de encaixe entre o visível e o dizível, não seria então oportuno pensar a verdade não sob o signo da correspondência externa, mas sim da coerência interna entre os enunciados?

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