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O dispositivo da verdade: sobre a inscrição político-metodológica da existência da verdade

POSICIONANDO UM PROBLEMA POLÍTICO-METODOLÓGICO

5. O dispositivo da verdade: sobre a inscrição político-metodológica da existência da verdade

Uma pergunta parece ter sido estancada na co-incidência da exposição acerca das temáticas foucaultianas que rondam e rodeiam a verdade. Sua expressão mais simples: o que é verdade para Foucault? Suas formulações mais sofisticadas: quando Foucault fala nas formas aletúrgicas, na manifestação da verdade, na obediência à verdade, na vontade de verdade, o que significa, em sua concepção, o termo verdade? Que definição Foucault nos dá do termo verdade para que possamos compreender o que ele diz sobre a verdade?

Gostaria, aqui, antecipar a essa resposta uma atitude metodológica fundamental para situar o pensamento de Foucault em relação, não somente à temática da verdade, mas também ao conjunto de saberes, práticas e acontecimentos dos quais o filósofo político francês se aproximou em seus 30 anos de escrita. E por atitude metodológica devemos entender menos uma compreensão, um entendimento, ou uma tese do que uma

decisão. Em O Nascimento da Biopolítica, Foucault (2008b) expõe esta atitude

metodológica como uma “decisão da inexistência dos universais para indagar que história se pode fazer” (p.5-6, grifos meus). O que significa aqui “decisão da inexistência”, ou decisão pela inexistência? Como é que se pode simplesmente decidir pela não existência de alguma coisa? Isto parece ficar um pouco mais claro em uma passagem da obra Do Governo dos Vivos, onde Foucault (2010a), ao exemplificar o seu modo de proceder com a temática da loucura, indica sua atitude metodológica em relação a outros temas de investigação, como a sexualidade, a delinquência, o Estado e a verdade.

Com outras palavras, trata-se de não partir de nenhum universal que diria: eis a loucura. Não se trata de partir de nenhuma posição humanista dizendo: eis o que é a natureza humana, eis o que é a essência humana, eis o que é a liberdade humana. É preciso tomar a loucura por um “x” e se apossar da prática, da prática somente como se não soubesse nada, e fazer de tal modo sem nada saber sobre o que é a loucura (FOUCAULT, 2010a, p. 63, grifos meus).

Da verdade eu nada sei. “O que é a verdade?” – é exatamente isto o que eu não sei, é isto que me falta, é isto o que eu não posso responder! “O que eu entendo por verdade?” – bom... por ela eu nada entendo! Precisamente porque nada sei, porque o saber disso me falta e porque por ela eu nada entendo é que posso interrogar a história para que esta me diga “o que é a verdade”. E tudo aquilo que a história me dirá, tudo aquilo que virá da história como história da verdade será a verdade. E, ainda assim, mesmo depois disto ela não me pertencerá, dela não serei o dono – o que aparecerá não será a minha concepção de verdade, não será a verdade, segundo o que eu penso, não será aquilo que eu defini como verdade, nem previamente para a pesquisa, nem posteriormente como síntese da pesquisa. A verdade, a sexualidade, a loucura, o indivíduo, o Estado ou a doença mental... eles não existem para mim! Decido que, para mim, eles não existem! E isto quer dizer: não explicarei nada a partir deles, pois o que

quero fazer é explicá-los13, explicar o que eles são, isto é, como se formaram, como foram inventados – eis, em linhas gerais, a atitude que agenciamos juntamente com Foucault na tematização da verdade.

Esses universais, contudo, uma vez reduzidos à demérita condição de não- existentes a serem investigados, passam a ter uma inscrição no real, uma positividade, uma existência. Trata-se de construir “um dispositivo de saber-poder que marca efetivamente no real o que não existe” (p.27). Se não existe algo como “A Sexualidade”, o dispositivo da sexualidade se orientará para marcá-la no real (FOUCAULT, 2009b); se não há algo positivo como “O Estado”, um conjunto de práticas orientadas pelo dispositivo de segurança atuará para que o Estado exista nas práticas de governo (FOUCAULT, 2004a); se não existe “O Indivíduo”, haverá um “dispositivo panóptico” (FOUCAULT, 1997a, p.171) que o produz e lhe dá realidade;

se não existe, portanto, algo como “A Verdade”, eis que um dispositivo da verdade ocupar-se-á de seus modos de inscrição no real.

Foucault (1988), em Verdade e Poder, ao falar sobre a posição específica ocupada pelo intelectual no contexto das lutas políticas de nossa época, diz que esta se encontra ligada às “funções gerais do dispositivo da verdade” (FOUCAULT, 1988, p.13, grifos meus). Avelino (2010b) recupera a noção de dispositivo da verdade. Em seu artigo Governamentalidade e Anarqueologia em Michel Foucault, refere-se à necessidade de uma análise política de um dispositivo da verdade para compreender a formação dos regimes de verdade:

Por regime de verdade, Foucault quer indicar a existência de um dispositivo da verdade segundo o qual os discursos não apenas funcionam como verdadeiros, mas também os mecanismos, as instâncias e os modos para distinção entre o falso e o verdadeiro são definidos; os procedimentos e as técnicas para obtenção da verdade são produzidos; o estatuto daqueles que dirão a verdade é definido. Investigar regimes de verdade é descrever o funcionamento político desse dispositivo (s/p, grifos meus).

No decorrer deste capítulo, os objetivos das análises aqui expressas estarão relacionados ao mapeamento da formação do dispositivo da verdade. Estas formações serão melhor especificadas no que se segue. Por enquanto, convém somente acrescentar que este trabalho pretende traçar uma analítica do dispositivo da verdade. Assim, a

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Sobre isso, Deleuze e Guattari (2010) já diziam que quando se explica pelos universais (em vez de explicar os universais), ocorre uma confusão entre os conceitos e o plano de imanência, de modo que o conceito passa a representar o plano da imanência. Com isso, instaura-se a transcendência.

noção de dispositivo da verdade implicará a adoção de duas atitudes político- metodológicas:

1) Decidir que a verdade não existe.

2) Perguntar como é possível que a verdade – que não existe – passe a existir a partir do dispositivo da verdade.

O que não existe deve, então, ser tomado em uma significação nada ampla, e de

modo algum existencial ou ontológica, mas de uma maneira política bastante sui

generis. Isto não somente pelo fato de que se trata de uma suposição, uma decisão, uma

aposta, uma atitude, mas porque diz respeito a um enfrentamento a determinadas formações de saber/poder. Trata-se, portanto, de uma decisão político-metodológica. Há, nela, um “nominalismo metodológico”14 (FOUCAULT, 2008a, p.33) movido por uma política de combate aos saberes instituídos, aos acontecimentos e às práticas que encobrem a invenção das existências, que não cessam de esconder de várias formas os mecanismos inconfessáveis de suas fabricações, de suas invenções. O significado perspectivo-político dessa não existência é bem expresso na seguinte passagem:

O método consistia em dizer: suponhamos que a loucura não exista. Qual é, por conseguinte, a história que podemos fazer15 desses diferentes acontecimentos, dessas diferentes práticas que, aparentemente, se pautam por esse suposto algo que é a loucura? (FOUCAULT, 2008a, p.5, grifos meus).

Prestemos atenção a um ponto crucial desta citação. Os acontecimentos, as práticas – e acrescento: os saberes – que serão objetos dessa história que podemos fazer, dessa história que Foucault tem vontade de fazer, não são quaisquer acontecimentos, práticas e saberes. São acontecimentos, práticas e saberes que se pautam por esse

suposto algo, quer dizer: que supõem a existência prévia, a existência não inventada, a

condição a priori, a origem – ou aqueles acontecimentos, práticas e saberes que tomam

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Esse nominalismo é também referido em A Vontade de Saber, em um importante momento em que Foucault (2009b) marca a perspectiva assumida em sua analítica do poder: “Sem dúvida, devemos ser nominalistas: o poder não é uma instituição e nem uma estrutura, não é uma certa potência de que alguns sejam dotados: é o nome dado a uma situação estratégica complexa em uma sociedade determinada” (p.103).

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Esta atitude em nada se relaciona com o que Foucault (2008a) chamou de “redução historicista” (idem), uma vez que esta última explica tão-somente as diferentes formas de expressão, de realização ou de desdobramento dos universais invariantes – a sexualidade, a loucura, o Estado, o sujeito etc. Não é, no caso da redução historicista, a própria sexualidade, a loucura, o Estado ou o sujeito que têm uma origem como invenção, mas sim suas formas contingentes de aparecimento.

este suposto algo = x como próprio o plano de imanência ou como “o não-pensado no pensamento” (DELEUZE e GUATTARI, 2010, p.73). Este impensado do pensamento constitui, portanto, uma espécie de lugar para onde constantemente se move o pensamento de Foucault. São eles os saberes, práticas e acontecimentos que supõem que a “sexualidade” é um dado inerente e constitutivo da natureza/cultura/condição humana; que acreditam que sempre fomos, somos e sempre seremos “sujeitos”, “homens” ou “seres humanos”; que creem que a “loucura” é alguma coisa, tem alguma irredutibilidade, ou explica alguns comportamentos; que tomam o “Estado” como categoria a priori da/para a Ciência Política e como uma realidade em si; e que, por fim, se pautam pela “verdade” como o não inventado, o sempre existente, o independente de toda e qualquer coisa, aquilo que fala por nós ou pelo eu (seja sob nosso consentimento ou à nossa revelia, seja dita toda ou não-toda); ou como a instância que repousa tranquilamente, sob o signo da correspondência ou da coerência, sobre o subsolo onde borbulham os movimentos que tentam traçar nossas condições epistêmicas, nosso acesso ao conhecimento, ou a justificação de nossas crenças; ou, ainda, como o horizonte de todo o pensamento, de todo ato linguístico ou de toda prática, aquilo que sempre queremos mesmo quando dizemos não querer, aquilo que sempre reativa performativamente sua existência no nosso ato de negação de sua existência. Eis, portanto, um movimento curioso realizado por Foucault ao longo de toda sua obra:

1) Decidir que algo = x não existe;

2) Aproximar-se de um campo de saberes, práticas e acontecimentos que acreditam que este algo = x exista;

3) Ver como esses saberes, práticas e acontecimentos efetivamente inscrevem no real aquilo que passa a existir (verdade, sexualidade, Estado, loucura, indivíduo etc.).

Trata-se de ir contra o movimento realizado por todo esse outro campo e admitir o seu poder de produzir realidades. Mediante a visualização deste movimento que constitui uma forte marca do pensamento de Foucault, e tendo em vista que o universal, o algo = x, ou o impensado em questão é aqui a verdade, duas questões podem ser colocadas: de que forma a verdade passa a existir? O que move este empreendimento de infiltração, mobilizado por Foucault, em um campo de acontecimentos, práticas e saberes para voltar-se contra ele? Seguirei o próximo tópico encaminhando a primeira questão e deixarei a segunda questão para ser respondida no tópico subsequente.

6. O realismo imanente e o espaço branco do dispositivo da verdade: considerações

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