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O impensado na Teoria da Redundância da Verdade

IMPENSADO NO DISPOSITIVO DA VERDADE

4. O impensado nas Teorias da Verdade

4.3. O impensado na Teoria da Redundância da Verdade

Ainda seguindo o mapa das Teorias da Verdade, faço referência agora à Teoria da Redundância e ao modo como a verdade nela atua como o impensado no pensamento. A Teoria da Tedundância, desenvolvida por Ramsey (1991) em The

Nature of Truth, assumirá que a tentativa de explicar o significado do predicado “é

verdadeiro” deve ser feita no campo do que ele chamou de linguagem comum53, evitando qualquer caráter obscuro, profundo ou oracular de frases como “A

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Neste momento, esses enunciados interessam tão-somente como um exemplo ou um exercício para pensar o impensado na coerência, na medida em que esta coerência assume o papel de representar a verdade, tal como nas teorias coerenciais da verdade. Uma análise mais detalhada dos mecanismos de confissão e de formulação de uma imagem negativa do poder será realizada no sétimo capítulo, ao passo em que uma análise das técnicas de si nas práticas de exomologêsis será realizada no sexto capítulo. 53

Mais uma vez aqui, se faz presente uma compreensão não-conceitual, intuitiva e impensada acerca dos limites entre a linguagem comum e a linguagem poética, obscura, mística, não só feita por Ramsey (1991), mas inclusive sustentada pelo próprio Wittgenstein (1989), nas Investigações Filosóficas, a partir de uma oposição entre um uso comum da linguagem e um uso filosófico. Com isso, esclarece-se a obscura atitude de Ramsey que o situa, conforme bem percebem Kirkham (2003) e França (2008), no contexto de um projeto assertivo do tipo estrutura profunda: 1) purificar o significado legítimo do predicado “é verdadeiro”; 2) afirmar que o predicado “é verdadeiro” não tem significado.

simplicidade da vida é a verdade”, “Só o tempo dirá a verdade”, ou “A verdade se manifesta quando menos esperamos”. Livrando-se, por decreto, deste empecilho, Ramsey (1991) considera que a afirmação “é verdade” nada acrescenta a proposição alguma. Isto quer dizer que afirmar “É verdade que Porto Alegre á a Capital do Rio Grande do Sul” consiste exatamente na mesma coisa que afirmar que “Porto Alegre é a Capital do Rio Grande do Sul”, pois esta última afirmação não implica em nenhuma alteração na descrição do conteúdo da proposição. A atribuição de verdade consiste, portanto, em uma redundância em relação ao significado ou conteúdo de uma asserção. E é precisamente neste sentido que o predicado “é verdadeiro” é considerado não somente redundante, mas vazio. Desta forma, Ramsey (1991) aproxima-se da tese

deflacionária, que diz: “não existe tal propriedade chamada verdade que possa ser

atribuída a um portador de verdade. Portanto, verdade e portador de verdade são termos vazios, não denotam nem uma propriedade, nem uma entidade” (FRANÇA, 2008, p.29). Sobre esse caráter redundante da afirmação “é verdade”, Foucault (1997b) faz uma interessantíssima observação na Arqueologia do Saber, justamente no momento em que procura mostrar como uma proposição não consegue funcionar na sutileza do enunciado; ou, ainda, mostrar como o enunciado, dizendo aquém da estrutura, do sentido e da exigência de portar um valor de verdade, diz mais do que a proposição. Aqui o autor exemplifica e faz referência ao fato de que as proposições “ninguém ouviu” e “é verdade que ninguém ouviu” não possuem diferença alguma, ao passo em que os enunciados “ninguém ouviu” e “é verdade que ninguém ouviu” são distintos. Atentemos para a argumentação de Foucault (1997b):

“Ninguém ouviu” e “é verdade que ninguém ouviu” são indiscerníveis do ponto de vista lógico e não podem ser consideradas como proposições diferentes. Ora, enquanto enunciados, estas duas formulações não são equivalentes nem intercambiáveis. Não se podem encontrar em um mesmo lugar no plano do discurso, nem pertencer exatamente ao mesmo grupo de enunciados. Se encontramos a fórmula “Ninguém ouviu” na primeira linha de um romance, sabe-se, até segunda ordem, que se trata de uma constatação feita seja pelo autor, seja por um personagem (em voz alta ou sob a forma de um monólogo interior); se encontramos a segunda formulação “É verdade que ninguém ouviu, só podemos estar em um jogo de enunciados que constitui um monólogo interior, uma discussão muda, uma contestação consigo mesmo, ou um fragmento do diálogo, um conjunto de questões e respostas (p.91).

Foucault (1997b) nos diz nesta passagem que, do ponto de vista do enunciado, o “é verdade que” acrescenta qualquer coisa como um “monólogo interior”, uma

“discussão muda”, uma “contestação consigo mesmo”. É precisamente essa caracterização do enunciado “é verdadeiro” que se encontra encoberta, dormente e indiferente na estrutura da proposição. Aqui uma interrogação é inscrita e deverá repousar no ar enquanto não for encaminhada, ainda por este trabalho, uma saída por outras vias: por que Foucault entende que, no plano do enunciado, o acréscimo “é verdadeiro” sinaliza esses elementos que apontam para uma relação consigo mesmo?

Retornando à Teoria da Redundância da Verdade, um caso em específico chamou a atenção de Ramsey (1991). Trata-se da afirmação: “Tudo o que ele diz é verdadeiro”. Sua saída para solucionar essa aparente impressão de que “é verdadeiro” aí teria um significado positivo foi extrair a forma lógica da proposição, da qual estaria ausente o predicado “é verdadeiro”. Retirar da forma lógica da proposição a afirmação “é verdadeiro” consistiria em precondição para defender a tese de que essa afirmação é redundante. A forma lógica desta proposição (“tudo o que ele diz é verdadeiro”) aparecerá, então, da seguinte forma: para todo p, se ele afirma p, então p. Segundo Costa (2005), apesar da tentativa, Ramsey (1991) não teria propriamente conseguido se livrar do predicado “é verdadeiro” situando o foco sobre a asserção da proposição (o

afirma, na expressão: “se ele afirma p”). Seu argumento é o seguinte:

A conclusão que chegamos é que aquilo que a teoria da redundância evidencia não é que a atribuição de verdade a uma proposição pode ser eliminada, mas que ela pode ser substituída por uma asserção ou judicação de uma proposição. Mas asserir uma proposição é o mesmo que atribuir-lhe publicamente a verdade. E judicar uma proposição é o mesmo que pensar que ela é verdadeira (COSTA, 2005, p.5, grifos meus).

Para repor a pertinência do predicado “é verdadeiro” como um predicado de acréscimo (e, portanto, de sentido), Costa (2005) precisou supor que toda enunciação/asserção implica uma atribuição de verdade ou, mais ainda do que isso, que toda asserção é uma atribuição de verdade. Somente, portanto, à custa de uma identificação entre asserir e atribuir verdade; somente mediante a suposição apresentada como autoevidente de que dizer algo é o mesmo que dizer que esse algo é verdadeiro; enfim, somente nesse ato de reinstalação da transcendência pela verdade é que Costa (2005) pôde apresentar sua crítica a Ramsey (1991). Aqui chegamos a uma curiosa movimentação: Ramsey afirma que asserir algo como verdadeiro é o mesmo que simplesmente asserir algo, ao passo que Costa (2005), buscando se lhe opor, considera que asserir algo é o mesmo que asserir algo como verdadeiro. Estariam Costa (2005) e

Ramsey (1991) efetivamente dizendo coisas diferentes? Ou permaneceriam no mesmo lugar? Mediante, portanto, uma notável mesmidade no movimento de ambos, temos aqui manifesta, talvez de forma mais explícita do que nos casos anteriores, como a redundância da verdade tem relação com o fato de esta ser inscrita, do ponto de vista da proposição (e não do enunciado), como o impensado no pensamento – já que, desde esse ponto de vista, asserir algo é o mesmo que asserir algo como verdadeiro, e asserir algo como verdadeiro é o mesmo que asserir algo.

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