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A GENEALOGIA DA MENTIRA DA VERDADE

4. A verdade-mentira e o nosso-outro-mundo

Não, não há!

O que caracteriza a vontade de verdade é exatamente uma impotência para a criação: o mundo-verdade é o mundo que anula qualquer criação nossa, instaurando uma coincidência entre o que é e o que deve ser. Retornemos à vontade de verdade: ela constitui expressão do “desejo de um mundo em que tudo seja durável” (NIETZSCHE, 2011, p.362). Esse mundo durável é aquele afastado dos sentidos, aqui considerados como os agentes do ludíbrio, da ilusão, da mentira, do suborno, da chantagem, da insegurança. Os sentidos levam à destruição do que é – apartemo-nos dos sentidos, pois eles são aquilo que não é! Mas isso não quer dizer algo diferente de: eles são aquilo que

não deve ser! E a felicidade – ah, a felicidade! – “somente pode ser garantida pelo que é” (NIETZSCHE, 2011, p.363, grifos meus). A felicidade, portanto, residiria não

naquilo que devém, mas se inscreve no sendo. Assim, nossa vontade de felicidade não hesita muito em atar as mãos com o que quer que possa expandi-la, fortalecê-la, dar a ela um lugar. Assim, essa vontade dirá: “o mundo tal qual deveria ser, existe; este mundo, o mundo em que vivemos, é um erro – este mundo que é o nosso não deveria existir” (idem).

Esta vontade de felicidade, esta força-fé no ser sendo não é, todavia, primária em relação à “falta de fé no devir, [à] desconfiança em relação ao devir, [ao] desdém de todo o devir...” (NIETZSCHE, 2011, p.363). O móvel primário para que possamos investir e concentrar uma força-fé nesse mundo que é, nesse mundo do ser, nesse

mundo-verdade é, pois, algo como uma desconfiança, um temor, um medo, uma

esclarose. Ora, é exatamente aqui que a vontade de verdade diz: ‘o mundo-verdade já é, ele já existe, ele já está aí!’. Na indistinção entre o que deveria ser e o que já é, na inexistência de um intervalo, de uma diferença, de um desencaixe, jaz precisamente a sepultura de toda a criação.

Que espécie de homens raciocina assim? Uma espécie improdutiva e sofredora, uma espécie fatigada da vida. Se imaginarmos uma espécie contrária de homens, ela não terá necessidade da crença no “sendo”; melhor ainda, desprezará o “sendo” como algo de morto, de fastidioso, de indiferente... A crença que o mundo que deveria ser é, existe verdadeiramente, é uma crença de improdutivos que não querem criar um mundo tal qual deveria ser. Admitem que de antemão existe, buscam os meios para atingi-lo. “Vontade do verdadeiro” – é a impotência da vontade de criar. (NIETZSCHE, 2011, p.363, últimos grifos meus).

Ora, caso articulemos esta última citação com aquela outra que encerrou o tópico anterior, poderemos extrair preciosas pistas para pensar a relação entre verdade,

mentira, realidade e criação.

1) A verdade não existe – portanto, não é algo que devemos procurar e descobrir. Ao contrário, é algo que tem que ser criado, produzido, inventado.

2) Ora, os homens efetivamente inventaram uma coisa a que chamaram de “verdade” – uma força de conservação, de estabilização e de duração da espécie humana.

3) Por outro lado, essa operação que cria a verdade é um processo infinito, implica uma reposição contínua e constitui uma vitória em si, como uma determinação ativa e sem finalidade.

4) Essa coisa que não existe, essa coisa que foi inventada para a conservação, essa coisa que constitui uma determinação ativa como vitória sem finalidade – pois bem, ela constitui signo precisamente de uma impotência: a impotência de criar. Mas ela não é justamente o que deve ser criada?

Como articular esses quatro aspectos da verdade, sem que esta nos pareça um monstro mutante, ou um conjunto de traços absolutamente disformes? Serão esses aspectos da verdade que estarão associados àquilo que anteriormente chamei de

verdade-mentira: trata-se de um movimento que tende a ser circular, mas que não faz

encontrar o ponto de partida do desenho do círculo com seu ponto de chegada. Em um movimento de astúcia e covardia, desvia dele um pouco mais para cima, ensejando um novo movimento circular que também não reencontra um ponto de fechamento: tudo ocorre em um processo infinito de reposição contínua. É uma espiral que segue do chão para o céu, um movimento que vai afunilando-se na tensão entre fechar um círculo e

encontrar um centro – trata-se de uma espiral ascendente que nem fecha o círculo e

nem acha um ponto central. Talvez essas palavras nos tragam alguma imagem da roda- viva do dispositivo da verdade. É aí que encontramos o desenho-movimento daquilo que estou a considerar como o domínio fundamental da genealogia, o que consiste propriamente na estratégia, na força, no poder da verdade-mentira. Este será precisamente o outro mundo – não naquilo que tem de radicalmente outro, mas no que tem inevitavelmente de mundo.

Esse mundo-verdade é, portanto, o outro mundo. Enquanto outro, ele é algo diferente de este; enquanto mundo, é diferente de nada. Segundo Nietzsche, todavia, (2011): “a oposição entre o mundo-aparência e o mundo-verdade reduz-se à oposição entre o ‘mundo’ e o ‘nada’” (p.375). Resta vazio a nós, todavia, qualquer critério que possa distinguir esses dois mundos: logo, se a crítica faz tombar o mundo-verdade, igualmente dissolverá o mundo-aparência. Temos, portanto, tão-somente o nosso

mundo, que é exatamente este mundo: “não possuímos categorias segundo as quais

apenas um mundo-aparência, mas esse seria tão-somente o nosso mundo aparência)” (NIETZSCHE, 2011, p. 371, grifos meus).

Aqui é possível estabelecer uma importante conexão no pensamento do Nietzsche escritor de A Vontade de Potência: há nesta obra um realismo imanente que tem uma significação antropocêntrica. Se há um antropocentrismo no pensamento de Nietzsche, tal como argumentam Heidegger (2007) e Lima (2012), esse antropocentrismo deverá estar há léguas daquilo que os realistas transcendentes chamam, de um modo um tanto impreciso e impensado, de antirrealismo. Pois, se em Nietzsche não há o mundo-verdade, o mundo-aparência e nem o outro-mundo, é precisamente porque há somente o nosso mundo verdade, o nosso mundo-aparência e, por fim, o nosso outro-mundo. Mediante tal pronome possessivo – nosso –, não se faz aqui referência à questão ascética pela dependência da existência do mundo em relação à nossa linguagem, à nossa lógica, aos nossos esquemas conceituais. Encontramos esse tipo de questão em filósofos contemporâneos como Wittgenstein, Habermas, Putnam, Dummett, Kripke etc. Para Nietzsche (2011), contudo, a designação do mundo como

nosso mundo não é feita para retirar a realidade do mundo, mas para incluir o domínio

humano no mundo. O nosso não se refere tanto à relação lógica de dependência de

existência quanto à relação de dominação efetivamente existente. É, portanto, nosso

aquilo que dominamos, não aquilo que existe por causa de nós – o que constituem assunções inteiramente diferentes.

Tendo feito esses esclarecimentos, é possível indagar: por que o mundo-verdade não é considerado o nosso mundo, mas sim o outro mundo (que não é nosso)? Segundo Nietzsche (2011), isto já seria um signo de algo como uma decadência, uma incapacidade de autoafirmação: um povo orgulhoso de si, convicto de suas próprias ideias, alegre com suas conquistas e feliz com sua vida, não haveria de reconhecer qualquer coisa como verdadeiro em outro (outro povo, outro mundo, outro lugar, outra vida). Assim: “considerar este mundo como o mundo das aparências e o outro como o da verdade – é já um sintoma” (NIETZSCHE, 2011, p.377). Nietzsche (2011) já notara todo o sofrimento que ainda treme na frieza dos silogismos lógico-metafísicos em torno do mundo-aparência e do mundo-verdade. Eis aqui sua Psicologia da Metafísica:

Este mundo é aparente: logo existe um mundo-verdade; este mundo é condicionado: logo existe um mundo absoluto; este mundo é cheio de contradições: logo existe um mundo sem contradições; este mundo está em seu devir: logo existe o mundo que é. (...) Se A existe, necessariamente existe sua ideia contrária, B. É o sofrimento que inspira essas conclusões: no fundo

são somente os desejos de semelhante mundo; da mesma forma, o ódio ao mundo que faz sofrer expressa-se pelo fato de se imaginar um outro, um mundo mais precioso. (NIETZSCHE, 2011, p.366).

Trata-se, portanto, não de um outro mundo = x, um outro mundo indeterminado, qualquer, que aponte novas possibilidades ainda inusitadas, inimaginadas e não vividas. Se o mundo-verdade é o outro mundo porque não é o nosso mundo, o outro mundo é o mundo-verdade porque não é um mundo qualquer = x. Neste sentido, podemos pensar, a partir do pensamento de Nietzsche (2011), alguns ganhos que obtemos ao erigir o mundo-verdade como o outro mundo desconhecido e o mundo-aparência como este

mundo conhecido.

1) O conhecimento deste mundo: este mundo já é conhecido! Não mais nos

surpreendemos com o que nos espera, pois já traçamos suas rotas, já escavamos suas terras, já navegamos por seus mares, já conhecemos os passos dessa estrada e sabemos aonde darão. A experiência desentortou os labirintos que sempre nos levaram aos descaminhos errantes: sabemos agora por onde andar!

2) O mundo-desconhecido: o mundo-verdade é um mundo desconhecido! Não é este mundo que já conhecemos e dele já estamos cansados, exaustos e

fatigados: o mundo-verdade é o mundo da surpresa e do encantamento, o mundo que se alimenta e se desenha como miragem pela nossa sede de aventura! Ele é o inexplorado, o intocado, o radicalmente outro, o que não sabemos o que é!

3) O mundo-utópico: este lugar desconhecido e inexplorado constitui

precisamente o território sobre o qual podemos projetar nossos sonhos, nossos desejos e nossas vontades que encontram obstáculos cuja força nos deixa por vezes tão impotentes neste mundo. Mas temos agora o mundo da esperança e da promessa! Este é também o mundo da verdade! Não desistamos: há um lugar que não sabemos qual é, mas é porque existe este lugar que sabemos o que fazer!

4) O não-mundo: por fim, quando a fadiga infinita, o cansaço sem tréguas, a

angústia sem morada, desesperança sem lar e o desespero sem par não forem aplacados por todos esses princípios ortopédicos, ainda temos uma espécie de extrema-unção – a verdade não está no mundo, a verdade nunca esteve no mundo, a verdade só reside fora do mundo! Que alívio: o mundo é uma mentira! A verdade não é o mundo, a verdade é o não-mundo.

Todas essas seduções do mundo-verdade podem, contudo, ser desfeitas uma a uma. Isto não porque se possa apresentar um conceito de verdade distinto dele, mas por aquilo que o próprio mundo-verdade também contém em si. Temos, portanto, proposições que entram em conflito sem que, com isso, uma anule a outra. Cabe à genealogia da mentira da verdade, como uma importante etapa de uma analítica do dispositivo da verdade, expor a formação deste conflito:

1) Não conhecemos este mundo: precisamos, para isso, de uma série de

instrumentos que nos permitam alcançar a verdade, já que a possibilidade do erro, do engano e da ilusão sempre está presente neste mundo.

2) O mundo-verdade não é o desconhecido: todos nós queremos a

verdade, temos a capacidade de distinguir o verdadeiro do falso, a verdade é o mais fácil, aquilo que é mais nítido em nós, aquilo que vemos com clareza, aquilo que ninguém pode negar.

3) O mundo-verdade não é o mundo-utópico: a verdade mesma é

desinteressada – não há providência pré-ontológica e pré-ética que situe a verdade em afinidade natural com o mundo, ou como algo que causará necessariamente o bem. A verdade não depende da esperança que o sofrimento humano transforma em promessa.

4) O mundo-verdade não é um não-mundo: a verdade é precisamente o

que é mais real; ou, ainda, ela é o todo do mundo. Ela é o mundo tal como ele é verdadeiramente, o mundo tal como mundo. Ao contrário:

o erro, a mentira, a ilusão é que constituem irrealidades, negações, ausências. É a não-verdade que é o não-mundo.

Em síntese: há toda uma impotência para criar que encontra na vontade de verdade a matéria prima para a construção do outro mundo. Não há outro mundo! E por “não há outro mundo”, devemos entender algo inteiramente diverso da afirmação de que há uma coisa que não existe, ou que não é real (o “outro mundo”) – o que constituiria uma pedra de escândalo para um realismo imanente. Portanto, estaríamos longe de compreender a crítica de Nietzsche ao “outro mundo” caso a compreendêssemos como uma forma de niilismo. Ora, o próprio Nietzsche (2011) nos dá uma definição absolutamente clara do niilismo: “o niilista é o homem que julga que o mundo, tal como

é, não deveria existir, e o mundo, tal qual devera ser, não existe” (p.364, grifos meus).

O niilista, para Nietzsche, é aquele que, por alguma razão, não investe uma força-fé em coisa alguma. Isto, contudo, poderá ser sinal tanto de uma força crescente quando de uma fraqueza crescente. Temos, portanto, dois tipos de niilismo.

1) Niilismo fraco: uma incapacidade de crer, uma incredulidade como

falta de investimento, uma preguiça no engajamento, um relaxamento das forças.

2) Niilismo forte: uma vontade que não tem mais necessidade da crença

para se afirmar, um querer que afirme a si mesmo sem que precise interpretar, compreender ou dar sentido às coisas.

Prestemos atenção, entretanto, a uma passagem que poderá nos dar boas pistas acerca da relação entre o niilismo, a vontade de verdade e a crítica à vontade de

verdade:

[1º] Aquele que não é capaz de pôr sua vontade nas coisas, que é sem força de vontade, sabe pelo menos dar um sentido às coisas, isto é, à crença de que elas encerram uma vontade. [2º] É uma medida para indicar o grau de força de vontade, o saber até que ponto podem as coisas carecer de sentido para nós, até que ponto suportamos viver num mundo sem sentido (NIETZSCHE, 2011, p.364).

Conforme referido anteriormente, a vontade de verdade constitui uma impotência para criar: mediante a afirmação de que o mundo que deveria ser (ou que deverá ser) já é e já está aí, a vontade que move esta afirmação ausenta-se da criação do mundo e age tão-somente em sua antecipação. Há um niilismo aí na medida em que se assume que este mundo não deveria existir. Talvez seja possível afirmar, porém, que há também um niilismo em uma crítica à vontade de verdade tal como empreendida por Nietzsche, na medida em que esta diz que o mundo tal como deverá ser, ou tal como deveria ser, não existe. É, portanto, no seio deste niilismo de uma crítica da vontade de verdade que gostaria de prosseguir as análises deste capítulo. Pois é possível afirmar a inexistência desse outro mundo (que não é um nosso outro mundo) de duas formas:

a) Por uma dificuldade em crer, em investir nele uma força-fé.

b) Porque ele não é mais necessário para afirmar uma vontade de criação.

Gostaria, pois, de insistir na adoção de um niilismo (b) forte no que diz respeito a esta crítica da vontade de verdade. Assim, essa afirmação de uma não existência assume de imediato um sentido político (e não ontológico), tal como pensado a partir de uma perspectiva foucaultiana e já explicitado nos primórdios desse trabalho. Certamente, aqui encontramos já bons encaminhamentos para as palavras terminais de Foucault (2011a) no Collège de France, palavras que são também as inaugurais deste trabalho: “a verdade só é possível sob a forma do outro mundo e da outra vida” (p. 289,

grifos meus). Eis, aqui, o grande desafio deste trabalho naquilo que ele manifesta neste

capítulo: uma genealogia do nosso outro mundo como uma genealogia da mentira da

verdade. Uma analítica do dispositivo da verdade desprovida desta genealogia seria

algo semelhante a um canhão vazio, repousando imponente e impotente, assustador e inofensivo, sobre um espaço branco, sem as cinzas da pólvora que trazem as marcas de um disparo cujo acontecimento deixa adivinhar.

5. Foucault e a genealogia da verdade: notas sobre a onipresença, a ausência, a

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