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Platão: o conhecimento como reminiscência, a verdade e o ato de pensar

IMPENSADO NO DISPOSITIVO DA VERDADE

6. A Filosofia como inclinação natural ao verdadeiro

6.1. Platão: o conhecimento como reminiscência, a verdade e o ato de pensar

Segundo Platão, conhecer é recordar. Isso quer dizer que o ato pelo qual nos livramos das impressões e imprecisões do mundo sensível, das aparências e das ilusões para adentrarmos o reino do conhecimento acerca das essências das coisas depende de uma reminiscência de um estado anterior. Este é precisamente o estado em que a alma humana comungava com o mundo das ideias, o mundo das essências, o mundo inteligível. O conhecimento, assim, só possui alguma garantia perante o jogo incessante da mudança tendo em vista este estado anterior da alma humana, de modo que ele mesmo constitui um signo de sua imortalidade. A imortalidade da alma humana será, ainda, pressuposto necessário não somente para o mundo da Ética, da Moral e da Política, mas antes de tudo para o próprio plano da possibilidade do conhecimento humano. Será, portanto, essa comunhão da alma humana com o mundo das ideias que dará a devida unidade requerida pelo conceito e impossibilidade de ser ofertada no mundo empírico, onde reinam a multiplicidade incessante de objetos e a diversidade inesgotável das palavras. Para Platão, portanto, a Filosofia só acontece no momento em que a palavra se transforma em conceito.

Se por um lado, como nos esclarece Foucault (2011d) em A Hermenêutica do

Sujeito, para Platão a temática filosófica acerca do acesso à verdade estava concatenada

com as temáticas ligadas à espiritualidade (e, portanto, às transformações pelas quais o sujeito teria que sofrer em seu próprio ser para ter acesso à verdade), isto não significará que inexista aí um tipo de afinidade entre a alma humana e o conhecimento verdadeiro. Pelo contrário, essa afinidade será reafirmada em toda a Filosofia platônica. Essas transformações não implicam, portanto, mudanças na natureza da alma humana, mas sim mudanças para aproximar o sujeito da verdadeira natureza de sua própria alma. Isto

aparece muito claramente na concepção assumida por Platão de que a alma humana possui uma afinidade não com aquilo que é composto, mas sim com as coisas que, por não serem compostas, são permanentes e imutáveis.

Portanto, nada estará em maior afinidade com a alma humana do que a verdade. Assim, a superação do empirismo no Teeteto não implica o estabelecimento de nenhum abismo entre a realidade e a verdade, posto que a verdadeira realidade, a realidade em si mesma, é precisamente aquilo que os sentidos mascaram no jogo perpétuo do ser-e-não- ser. Assim, a Ontologia – o conhecimento da essência do Ser – será possível somente mediante uma Metafísica59: esta é a situação em que a realidade em si, o conhecimento, a verdade e a alma humana dão-se as mãos, unificando-se e harmonizando-se na transcendência.

Seguem-se, aqui, quatro características fundamentais do verdadeiro para Platão, conforme apresentado por Foucault (2011a) em A Coragem da Verdade. Elas serão de suma importância não somente porque indicam os principais traços da verdade para o primeiro Filósofo, mas porque podemos nitidamente perceber os efeitos de sua propagação em diversas outras produções filosóficas.

1) O verdadeiro é completamente visível e reluzente, nada esconde, nada dissimula: é transparente e é oferecido ao olhar em sua totalidade. Portanto tudo o que é da ordem da simulação, do disfarce, do ocultamento e do obscurantismo diz respeito ao não-verdadeiro.

2) O verdadeiro é puro, isento de toda mistura, de toda multiplicidade, de toda heterogeneidade, de todo abigarramento, de todo acréscimo daquilo que é outra coisa que não a verdade. Assim, será considerado não-verdadeiro o que for impuro, misto, múltiplo – que tenderá a ser significado como caótico e confuso.

3) O verdadeiro é reto – e isto quer dizer: sem dobras, sem curvas, sem desvios, sem tropeços, sem hesitações. Mas o verdadeiro é reto porque não se inclina, porque não tem inclinações, porque não é penso, porque não pende para outra que não esteja nele mesmo, porque é justo e conforme ao dever. Portanto, será não-verdadeiro aquilo

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Na Metafísica de Aristóteles essa inclinação natural ao verdadeiro também aparece de modo explícito. Isto é enunciado logo na primeira frase: “O homem busca por natureza chegar ao saber” (ARISTÓTELES apud LEFRANC, 2005, p.267).

que aludir às inclinações, às dobras, aos titubeios, às indecisões, às dúvidas, às incertezas.

4) O verdadeiro é imutável, imóvel, inalterável, incorruptível e idêntico a si mesmo. Assim, tudo o que for variável, mutante, perene, modificável, móvel, passível de dissolução, de corrupção, de desfazimento, de metamorfose e de transformação será da ordem do não-verdadeiro60.

Procurarei, na sequência, opor termo a termo esses quatro traços da verdade àquilo que caracteriza a atitude de pensar, tal como poderíamos formular a partir do pensamento de Foucault, mas também de algumas características da Filosofia de Deleuze. Isto poderia ser feito nos seguintes termos:

1) Pensar não é manifestar, expor, lançar luz, clarear o que estava escuro. A singularidade do ato de pensar arrasta-o para um tipo de solidão e diferença completamente estranhos e avessos aos imperativos de visibilidade e publicização.

2) Pensar não é manter-se na pureza das coisas que só se reconhecem na identidade redonda de si mesmo. Pensar é conectar-se com as multiplicidades, é misturar-se e ser outro, é habitar fora de si mesmo, é fazer-se heterogêneo.

3) Pensar não é seguir uma linha reta – o pensamento é penso! Ele é torto, duvidoso, possui inclinações, pende para alguns lados, desiste do caminho por onde seguia, atualiza-se e se reconhece no incessante eco da pergunta trôpega: o que é

pensar?

4) Pensar é não é se manter naquilo que se é. Pensar é arrastar e dissolver as arestas que sustentam a imagem, o desenho e as marcas de identificação daquilo que é o próprio pensar: pensar é transformar o que é pensar, pensar só ocorre quando se tiver destituído e destruído o que se pensava e sobre o que é o pensamento e sobre o que é.

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Retornaremos a essas significações acerca do verdadeiro em Platão por ocasião do quinto capítulo deste trabalho.

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