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IMPENSADO NO DISPOSITIVO DA VERDADE

1. Imanência, transcendência e o impensado

Para compreendermos melhor o estatuto deste espaço branco arqueológico de onde fala Foucault – e, consequentemente, aquilo que anteriormente nomeei de realismo

imanente em oposição a um realismo transcendente –, recorrerei aqui aos conceitos de imanência e transcendência tal como pensados por Gilles Deleuze e Félix Guattari.

Reservadas as devidas diferenças entre ambas as perspectivas, procurarei, neste capítulo, agenciar os conceitos deleuzianos e guattarianos na medida em que possibilitarem uma melhor compreensão deste espaço no pensamento de Michel Foucault. Passo, portanto, a esta análise mediante a explicitação da diferença e da relação entre o jogo dos conceitos e o traçado do plano de imanência.

Em O que é a Filosofia?, Deleuze e Guattari (2010) afirmam que o plano de imanência é de natureza pré-filosófica: um “Uno-Todo ilimitado” (p.45), a “imagem do pensamento que ele se dá do que significa pensar” (p.47), um “corte do caos” (p.53), ou uma “respiração que banha essas tribos isoladas [os conceitos]” (p.46). Já os conceitos são peças e lances, traços intensivos, um jogar os dados, um movimentos operados no plano de imanência. A seguinte passagem descreve bem esta relação:

Se a Filosofia começa com a criação de conceitos, o plano de imanência deve ser considerado como pré-filosófico. Ele está pressuposto, não da maneira pela qual um conceito pode remeter a outros, mas pela qual os conceitos remetem eles mesmos a uma compreensão não conceitual (DELEUZE e GUATTARI, 2010, p.51).

Nenhum conceito representa o plano de imanência. Nenhum conceito diz o que é o plano de imanência, muito menos o traduz. O plano da imanência não está em conceito algum, mas os conceitos estão no plano da imanência. A imanência só é imanente a si mesma; e este si mesma nada mais indica do que uma determinada relação entre os conceitos, de modo que nenhum conceito seja o conceito-chave, o tesouro das

significações, ou o significante-mestre. Deleuze e Guattari (2010) nos mostram, contudo, que, em qualquer ocasião em que um conceito assume a função de representar o plano da imanência, esta é representada como imanência a algo e tem-se aí a instauração da transcendência.

A transcendência, portanto, refere-se à atividade de representação que um conceito exerce sobre o plano da imanência. A transcendência é instaurada quando um conceito que remete a uma compreensão não conceitual representa a Imagem do

Pensamento. Sua produção, contudo, não ocorre em nenhum lugar que não na imanência. Ora, uma vez que a transcendência não pode se constituir como um campo

auto-referente – o que significa dizer que a transcendência nunca será transcendente em si mesma ou imanente à sua própria transcendência – ocorre que a transcendência

acontece na imanência. Não, porém, de qualquer forma: acontece como uma

“deformação da imanência” (DELEUZE, 1995, p.6). A transcendência não será, portanto, um campo que contém a si mesma como Uno-Todo absoluto, tal como a imanência é imanente (somente) a si mesma:

Pode-se sempre invocar um transcendente que recai fora do plano de imanência, ou mesmo que atribui imanência a si próprio: permanece o fato de que toda transcendência se constitui unicamente na corrente de consciência imanente própria a seu plano. A transcendência é sempre um produto de imanência. (idem)

No livro O que é a Filosofia?, Deleuze e Guattari (2010) citam alguns exemplos de atividades filosóficas que relançam a transcendência. Platão, Kant e Husserl; a Eidética, a Crítica e a Fenomenologia – respectivamente, as três distintas formas de instauração da transcendência na Filosofia mediante os universais da contemplação, da

reflexão e da comunicação. Na Filosofia Eidética de Platão, a fórmula: “sempre um Uno

para além do Uno” (p.56); na Filosofia Crítica de Kant, o sujeito transcendental como o conceito, o algo = x que representa o plano da imanência26; na Fenomenologia de

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Na Crítica da Razão Pura, lê-se: “(...) ele [o eu penso] é o veículo de todos os conceitos em geral e, por conseguinte, também dos transcendentais, sendo sempre compreendido entre os mesmos e por isso sendo igualmente transcendental (...). Mediante este eu, ou ele, ou aquilo (a coisa) que pensa, não é representado mais do que um sujeito transcendental dos pensamentos = x (...). Em torno de um tal sujeito giramos em um constante círculo, na medida em que sempre já temos de servir-nos de sua representação para julgar qualquer coisa qualquer coisa a seu respeito” (KANT, 1996, p.259).

Husserl, a transcendência no interior da imanência – “o trabalho de toupeira do transcendente na própria imanência27” (p.58).

Para os objetivos deste trabalho importa analisar não a transcendência em geral, mas um modo específico de instauração da transcendência: aquele que a faz por meio do conceito de verdade. E, de modo mais específico, as formas de transcendência através do conceito de verdade tais como realizadas pelo campo das Teorias da Verdade. Qual é, porém, a razão deste empreendimento?

Os esforços mobilizados para tal decorrem precisamente do fato de que, nesse campo, o conceito de verdade deixa de ser um conceito e passa a funcionar como se

fosse o próprio plano de imanência. Isto quer dizer que este conceito, ao ser

posicionado no lugar do plano de imanência, aparece com as características desse plano: uma compreensão não conceitual, intuitiva, autoevidente e, portanto, pré-filosófica. A verdade é aquilo que não pode ser explicada por conceito algum, mas também o que não está em relação de imanência com nenhum conceito, precisamente porque já se a tem como um dado impensado no pensamento. Assim, esse empreendimento se justifica por duas razões:

1) O conceito de verdade constitui um forte atrativo, possivelmente o principal, para a instauração da transcendência em distintas formas de fazer Filosofia.

2) Foucault, ao perceber essa força do conceito de verdade para a instalação da transcendência, busca fazer o movimento de relançá-la ao plano de imanência (ou mostrar que ela ali sempre esteve).

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A transcendência aí é reencontrada em conceitos como “o Outro” ou “a Carne” (certamente em uma referência a Merleau-Ponty), nas regiões de não pertença do eu, nos objetos intencionais, num mundo intersubjetivo – dimensões que se encontram no registro do que Deleuze e Guatarri (2010) chamaram de comunicação. Sobre a rejeição de Foucault e Deleuze à fenomenologia, vale a pena registrar a seguinte passagem: "A intencionalidade é concebida para superar todo o psicologismo e todo naturalismo, mas ela inventa um novo psicologismo e um novo naturalismo (...). Toda intencionalidade desaba na abertura entre as duas mônadas, ou na não-relação entre ver e falar. É a maior conversão de Foucault: converter a fenomenologia em epistemologia. Pois ver e falar é saber, mas nós não vemos aquilo de que falamos, e não falamos daquilo de que vemos; e, quando vemos um cachimbo não deixamos de dizer (de diversas maneiras) 'isso não é um cachimbo', como se a intencionalidade desabasse sozinha. Tudo é saber, e esta é a primeira razão pela qual não há experiência selvagem: não há nada antes do saber, nem embaixo dele. Mas o saber é irredutivelmente duplo, falar e ver, linguagem e luz - são adversários irredutíveis (...). Tudo se passa como se Foucault reprovasse a Heidegger e Merleau-Ponty o fato de irem muito rápido (...) A fenomenologia é pacificadora demais, ela abençoou coisas demais" (DELEUZE, 2005, p. 116-120).

Por fim, faz-se necessário neste momento operar, ainda que de forma temporária ou estratégica, com alguma noção do que seja pensar. Deleuze e Guatarri (2010) jogam, aqui, com suas liberdades: “pensar é sempre seguir a linha de fuga do vôo da bruxa” (p.53). O pensamento nada tem a ver com a produção de imagens e de enunciações harmonicamente correspondentes, nada tem de unitário e constante, e nem mesmo pode ser filiado a qualquer instância originária (nem ao cérebro, nem ao eu, nem à mente, nem ao sujeito, nem à consciência). Pensar é impessoal.

Pensar é ver e falar, mas pensar se faz no entremeio, no interstício do que é ver e falar. É, a cada vez, inventar o entrelaçamento, lançar uma flecha de um contra o alvo do outro, fazer brilhar um clarão de luz nas palavras, fazer ouvir um grito nas coisas visíveis. Pensar é fazer com que o ver atinja seu limite próprio, e o falar atinja o seu, de tal forma que os dois estejam no limite comum que os relaciona um ao outro separando-os. (...) Pensar é emitir singularidade, é lançar os dados. O que o lance de dados exprime é que pensar vem sempre de fora (...). Pensar não é inato e nem adquirido. (DELEUZE, 2005, p.124 e 125).

O pensamento não é, pois, feito dessa matéria morta e inerte que circula entre o “sexo dos anjos”: pensar é deste mundo! Pensar é acelerar os motores de uma máquina feroz, que não deixa pedra sobre pedra, uma máquina feita de carne, osso, nervos – e, quando é preciso, também de unhas e dentes! Pensar não é propor: é pôr e tirar; não é

solucionar: é ensolarar e dissolver; não é resolver: é resvalar e solver; não é entender: é

entornar e doer! Por isso, pensar não é um “não-fazer”, um “não-agir”, uma “não- realidade”. Poderia aqui dizer, com Foucault, que pensar é algo semelhante a não mais conseguir ver a e-vidência (o que todo mundo vê), a instalar-se no desencaixe entre o enunciado e o visível, a ver aquilo que o excesso de proximidade furta de nossos olhos, a tornar difícil tudo aquilo que se apresenta de imediato como fácil demais, a mover-se rumo àquilo que não se é e que jamais se poderia ser – “é que não pensamos sem nos tornarmos outra coisa, algo que não pensa, um bicho, um vegetal, uma molécula, uma partícula, que retornam sobre o pensamento e o relançam” (DELEUZE e GUATTARI, 2010, p. 53).

O que o conceito de verdade faz, na medida em que representa o plano de imanência, é uma paralisação desse movimento imanente ao ato de pensar. Trata-se, portanto, não de uma ascensão à transcendência que abandona a imanência, mas meramente de um corte na imanência. Este corte não perfura a imanência de cima abaixo, cravando buracos em um solo plano, nem a eleva a qualquer outro lugar em um movimento de baixo para cima, como a erupção de um vulcão abre crateras em alto-

relevo – ele tão-somente produz cicatrizes. E o efeito dessas cicatrizes é precisamente uma dormência no pensamento. Aqueles que já tiveram terminações nervosas arrancadas por um corte entenderão a sinestesia dessas linhas. A análise arqueológica que aqui se seguirá será algo semelhante a um toque, uma movimentação, ou a uma massagem nessa região dormente – pois a dormência não é tão sentida no repouso, quanto é nos momentos em que algo a toca. É esta fricção no tecido epitelial das Teorias da Verdade que trará à superfície a estesia do silêncio profundo sob o qual dorme o impensado no dispositivo da verdade.

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