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Os projetos de Teorias da Verdade: a perspectiva de Kirkham

IMPENSADO NO DISPOSITIVO DA VERDADE

2. Os projetos de Teorias da Verdade: a perspectiva de Kirkham

Encontrar-nos-íamos em um desastroso engano caso concluíssemos que existe qualquer consenso sobre o que é a verdade, ou mesmo sobre quais as funções, os limites e as características de uma teoria da verdade no campo do que Foucault chamou de

história interna da verdade. Kirkham (2003) e França (2008) mostram com exaustiva

cautela e precisão o grau de desencontros, desentendimentos, discordâncias, dissensos e disputas no campo das Teorias da Verdade. Adentremos um pouco este terreno movediço, tomando como fio condutor e principais referências as perspectivas abordadas pelos dois autores supracitados.

Rescher (1977) argumenta que há uma importante distinção inicial quanto às formas de construção de uma teoria da verdade: uma forma definicional, que tentaria estabelecer o significado do conceito “é verdadeiro”, sua definição e sua essência; e uma forma criteriológica, que buscaria identificar as condições justificáveis à aplicação do predicado “é verdadeiro”. Por um lado, significação, definição e essência da verdade; por outro, estabelecimento dos critérios de atribuição de verdade. Dizer o que é a

verdade constitui, portanto, uma tarefa distinta de dizer quando algo é verdade.

Algumas teorias da verdade buscam fazer somente uma dessas tarefas, ao passo que outras se dedicam a ambas.

Kirkham (2003) estabelece outra importante diferença no campo das teorias da verdade analisando os distintos projetos que compõem este campo – a saber: o projeto

metafísico, o projeto da justificação e o projeto dos atos-de-fala. Muito embora a

distinção seja fundamentalmente relacionada à função ou à tarefa de cada projeto, França (2008) argumenta que a ausência de clareza quanto à especificidade destas diferenças conduz a uma série de mal-entendidos no campo das teorias da verdade,

precisamente porque muitas vezes ocorre uma incompreensão acerca do modo como o problema é originalmente formulado. Sobre esse ponto, Kirkham (2003) aponta um acontecimento bastante curioso: diferentemente do que ocorre em outros campos da Filosofia (Ontologia, Epistemologia, Lógica, Ética, Política etc.), no campo das Teorias da Verdade ocorre a ilusão de que se está falando sobre a mesma coisa. Há o esquecimento que, mediante a palavra verdade, é possível que coisas distintas estejam sendo ditas e sendo feitas28. Vejamos brevemente em que consistem os três projetos de teorias da verdade mencionados por Kirkham (2003).

O projeto metafísico será subdividido em projeto extensional, projeto naturista e projeto essencialista. O projeto extensional29 busca encontrar no mundo atual um equivalente extralinguístico ao predicado “é verdadeiro”. Isso não implica, porém, que nada necessariamente seja dito sobre o significado deste predicado30. Caso para o predicado “é verdadeiro” seja buscado um equivalente que não se limitasse ao mundo atual, mas pudesse ser dirigido a todo e qualquer mundo naturalmente possível31, o projeto extrapolaria os limites de um projeto extensional e seria, então, um projeto naturista. Se, todavia, trata-se de encontrar um conceito de verdade que vá além das leis naturais e que tenha a mesma força das leis da lógica, o projeto não é mais simplesmente naturista, mas sim essencial32. O projeto metafísico – que abrange os projetos extensional, naturista e essencialista – implica, portanto, uma tentativa de definição do predicado “é verdadeiro”, mas definição em um sentido preciso: “sempre que são apresentadas as condições necessárias e suficientes de alguma coisa”

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Isto constitui um interessante signo de uma força da verdade para a remissão a uma dimensão pré- conceitual, intuitiva, autoevidente e autoexplicativa, característica da transcendência.

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Como exemplo de projetos extensionais, cito a Teoria Semântica de Saul Kripke e Alfred Tarski. Conforme explicitaremos mais adiante, ambas podem ser denominadas, ainda, como Teorias Correspondencialistas da Verdade.

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O clássico texto de Frege (1978) Sobre o sentido e a referência – publicado em 1892 e considerado por alguns autores como texto inaugural, se não da Reviravolta Linguística, pelo menos certamente da Filosofia Analítica – fala em três dimensões fundamentais da linguagem humana: a dimensão signativa (os sinais linguísticos, signos e/ou significantes), a dimensão objetiva (o objeto, a referência, a denotação) e a dimensão significativa (o sentido, o significado, ou o pensamento). Mediante esta divisão, Frege (1978) argumenta que é possível haver uma identidade quanto à dimensão objetiva/referencial e uma diferença quanto à dimensão significativa. Assim, por exemplo, “o maior estado do Nordeste” e “o estado em que nasceu o compositor Caetano Veloso”, muito embora possuam a mesma referência – a saber: “Bahia” – possuem não somente signos, mas significados completamente distintos. Assim, encontrar a referência, o equivalente mundano e extra-linguístico de proposições verdadeiras – tarefa de um projeto metafísico extensional enquanto teoria da verdade – não terá a ver propriamente com a obtenção de um significado último para o predicado “é verdadeiro”.

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Por mundo naturalmente possível entendamos: um outro mundo com as mesmas leis naturais presentes em nosso mundo.

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Alguns exemplos de trabalhos filiados ao projeto essencial: a Teoria da Correspondência de Bertrand Russell, a Teoria Coerentista de B. Blanshard e a Teoria Minimalista de Paul Horwich.

(FRANÇA, 2008, p.32). Deste modo, o projeto metafísico se absteria de tecer qualquer consideração sobre a intensão (significado) do predicado/conceito “é verdadeiro”, sobre as formas de facilitação da justificação de algo como verdadeiro, bem como sobre os propósitos comunicativos associados à atribuição de verdade ao que quer que seja (FRANÇA, 2008). Se ele, ainda, pode atuar no sentido da identificação dos critérios de verdade – e não ser, portanto, puramente definicional – não poderá dizer nada quanto à

aplicação desses critérios (idem).

O segundo projeto – a saber, o projeto atos-de-fala – procura investigar o que

fazemos quando realizamos atribuições de verdade a um enunciado. Aqui o foco recai

sobre o ato de enunciação e, mais especificamente, sobre a força deste ato de enunciação. Como principais referências de trabalhos filiados a este projeto, temos os escritos do Strawson (1995), Searle (1969) e Austin (1999). Searle (1969), em seu livro

Os atos-de-fala: um ensaio de Filosofia da linguagem, estabelece uma distinção entre conteúdo proposicional e força ilocucionária. O primeiro diz respeito à forma lógica da

proposição (seu conteúdo/significado), ao passo que o segundo SE refere ao tipo de força que esta proposição assume no seu ato de enunciação, no seu proferimento33. Essa força pode ser da ordem de um pedido, de uma pergunta, de uma expressão de desejo, de uma admiração etc.

O projeto atos-de-fala, na medida em que tematiza a questão da verdade, se divide em projeto ilocucionário e projeto assertivo (FRANÇA, 2008). A tese principal do projeto ilocucionário É que as atribuições de verdade são ações que “não dizem efetivamente nada sobre as declarações que as executam” (FRANÇA, 2008, p.27). Quer dizer: afirmar que algo é verdadeiro não acrescenta nada na descrição deste algo. Isto precisamente porque a predicação “é verdadeiro” não afirma algo sobre a proposição predicada, mas é da ordem da relação entre linguagem e ação no mundo, constituindo- se, portanto, em um ato performativo por excelência. Ou seja, quando digo “é verdade que eu estou cansado”, não estou dizendo nada sobre a proposição “estou cansado”, mas simplesmente realizando, performativamente, o conteúdo dessa proposição – quer dizer: consentindo, assentindo e concordando com ela. Em uma palavra: a predicação de verdade é uma ação no mundo, e não uma enunciação sobre proposições. Caso queira

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Por exemplo, frases como “Renato acordou cedo”, “Renato acordou cedo!”, “Renato, acorde cedo!” e “Renato acordou cedo?” possuiriam o mesmo conteúdo proposicional, porém diferentes forças ilocucionárias (uma afirmação, uma admiração, uma ordem, uma pergunta).

ser uma enunciação sobre proposições, só poderá ser uma enunciação vazia, pois não realiza nenhum acréscimo semântico à proposição.

Kirkham (2003) refere-se, ainda, a um projeto assertivo que, ao contrário do projeto ilocucionário, entende que a afirmação “é verdadeiro” não é somente performativa, mas que ela diz realmente alguma coisa. Trata-se aí, portanto, de descrever não somente o que fazemos quando afirmamos que algo é verdadeiro (projeto ato ilocucionário), mas revelar o que dizemos quando afirmamos que algo é verdadeiro. Este seria, ainda, subdividido em dois projetos: o projeto atributivo e o projeto da

estrutura profunda. Ao passo que o primeiro consideraria “a superfície gramatical das

atribuições de verdade como um guia confiável para a determinação do que estamos fazendo34” (FRANÇA, 2008, p.27), o segundo considera “a superfície gramatical das aparentes atribuições de verdade como enganadoras” (idem), de modo que somente uma investigação mais minuciosa poderia afirmar o que é efetivamente dito quando ocorre uma atribuição de verdade, pois o conteúdo desta predicação não seria imediatamente evidente ou transparente. Podemos citar como exemplos de projetos filiados a este a Teoria Avaliativa (Alan White), a Teoria Pró-Sentencial da Verdade (Grover, Camp e Belnao) e a curiosa Teoria da Redundância35 (Ramsey e C.J.F. Williams).

Passemos ao terceiro projeto referido por Kirkham (2003): o projeto da justificação. Conforme França (2008), “o projeto da justificação procura fornecer quais são as evidências ou garantias que algo deve possuir para ser tido como provavelmente verdadeiro” (p.23, grifos meus). O autor enfatiza que qualquer projeto filosófico que verse sobre o problema da justificação poderá indicar, quando muito, a provável e nunca a efetiva verdade de alguma coisa. Quanto mais próximas as condições de comunicação se aproximarem das circunstâncias ideais36, mais provável será que a argumentação justificada indique uma verdade. Vale salientar que, do ponto de vista de Kirkham (2003) e França (2008), saindo de seu mapeamento e indo para a posição que assumem neste mapa, as questões de ordem epistemológicas encontram-se fora do âmbito

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Segundo França (2008) nenhum filósofo assumiu explicitamente esse ponto de vista, razão pela qual ele é relegado à categoria de senso comum ingênuo. Essa posição, se efetivamente fosse admitida por alguém, assumiria que não existe qualquer mistério em uma atribuição de verdade, pois seu conteúdo seria imediatamente evidente.

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Ramsey (1991) procura argumentar que dizer que algo é verdadeiro constitui redundância. Como, todavia, o registro de suas análises está situado naquilo que é dito quando algo é afirmado como verdadeiro – a saber: que não é dito nada –, Kirkham (2003) situa o projeto de Ramsey no campo do projeto assertivo da estrutura profunda.

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Por condições ideais, entendamos precisamente aquelas em que não há qualquer forma de coerção, de constrangimento ou de simulação; isto é, onde não há tudo aquilo que, em geral, associamos ao poder.

propriamente das teorias da verdade, mas no âmbito das teorias da justificação. Quer dizer: o que as teorias da justificação fazem são, do ponto de vista delas mesmas, teorias da verdade, porém não são genuínas teorias da verdade desde a perspectiva de Kirkham (2003) e França (2008). Isso ocorre na medida em que “o programa epistemológico depara-se com a necessidade de mostrar de que modo nossas crenças poderiam ser justificadas como provavelmente verdadeiras” (FRANÇA, 2008, p.33, grifos meus). Isto significa que tratar das condições de acesso à verdade, tarefa cabível a uma epistemologia ou teoria do conhecimento, é algo diferente de lidar com questões acerca da natureza, da essência, do significado e da definição da verdade, ou mesmo daquilo que se faz ou se diz quando se afirma uma verdade. Assim, todo projeto com pretensões epistemológicas estaria inscrito no âmbito que os autores supracitados entenderam como projetos de justificação. As consequências desta assunção serão problematizadas no decorrer deste capítulo.

3. Os portadores de verdade e o enunciado

Um ponto de fundamental importância não foi, todavia, ainda explicitado: a que coisas exatamente podem ser lançadas o predicado “é verdadeiro”? A frases, a objetos, a proposições, a fatos, a enunciados, a pensamentos? O que exatamente porta uma verdade? Segundo Kirkham (2003), qualquer coisa, em princípio, pode ser designada como verdadeira ou falsa. França (2008) dá alguns exemplos de portadores de verdade: “proposições, afirmações, ideias, atos-de-fala, atos de pensamento, crenças, asserções, juízos e teorias” (p.30). A eleição do portador de verdade está relacionada com o programa filosófico ao qual estamos inseridos. Costa (2005) faz uma delimitação mais específica quanto a este aspecto, apontando quatro candidatos a portadores de verdade37: 1) pessoas ou coisas; 2) sentenças assertivas; 3) proposições; 4) crenças. Sigamos um pouco o fio condutor de suas argumentações.

Segundo Costa (2005), as pessoas ou coisas podem ser portadores de verdade, mas somente sob a forma de portadores derivados. Na afirmação “Sócrates é verdadeiro” quero dizer, com isso, simplesmente que Sócrates diz a verdade. Portanto, a

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Quanto a este ponto, em diversas obras, mas fundamentalmente em A Coragem da Verdade, Foucault (2011a) faz referência ao modo como a uma série de outros elementos que não estes citados por Costa (2005) pode ser atribuído um predicado de verdade, a exemplo do discurso verdadeiro, do amor verdadeiro e da vida verdadeira. Essas formas de inscrição da verdade nesses registros serão mencionadas no quinto capítulo desse trabalho.

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