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O esconderijo da verdade: da arqueologia à genealogia

A GENEALOGIA DA MENTIRA DA VERDADE

1. O esconderijo da verdade: da arqueologia à genealogia

As palavras de Deleuze (2010) não poderiam ser mais preci(o)sas para designar um dos principais nós que atam o pensamento de Foucault ao de Nietzsche. Elas sinalizam não somente uma relação entre esses dois pensadores, como também um deslocamento de importância fundamental em toda a movimentação do pensamento de Foucault. Antes de apontar os principais elementos para uma genealogia da verdade no pensamento de Nietzsche, gostaria de me ater, neste tópico, a uma breve indicação deste deslocamento no próprio desenrolar das produções foucaultianas.

De antemão, peço desculpas ao leitor caso o percurso deste trabalho seja, por vezes, tanto enfático quanto insistente – e, ainda, caso essa ênfase ou insistência causem efeitos de repetição. Para armar uma estratégia que vise enfrentar o problema da verdade, é necessário, todavia, proceder vagarosa e cautelosamente, na sutileza de um tigre que muitas vezes há que passar pelos mesmos pontos a fim de domar os movimentos da presa e articular o momento mais oportuno para o bote. Pois bem, retorno aqui a uma passagem d’A Ordem do Discurso que considero índice não somente daquilo que referi no primeiro capítulo – a saber, de uma demarcação das relações entre o discurso verdadeiro e a vontade de verdade. Tenciono, agora, que seja vista nessa passagem também algo semelhante à dobradiça de uma porta, a qualquer coisa que permita a dobra e retorno de uma superfície ao mesmo plano – refiro-me, aqui, precisamente a um ponto de articulação e dobra da arqueologia para a genealogia foucaultianas.

O discurso verdadeiro, que a necessidade de sua forma liberta do desejo e libera do poder, não pode reconhecer a vontade de verdade que o atravessa; e a vontade de verdade, essa que se impõe a nós há bastante tempo, é tal que a verdade que ela quer não pode deixar de mascará-la [a vontade]. (FOUCAULT, 2011b, p.19-20, grifos meus).

Ora, na Arqueologia do Saber, Foucault (1997b) não houvera insistido tanto em

se instalar no plano singular e puramente exterior daquilo que acontece e aparece? Não cansara seus punhos pela vontade de querer estar no âmbito manifesto do discurso? Não deixara de poupar repetições ao afirmar que o campo arqueológico deveria recusar tudo aquilo que se encontrava aquém do texto: o silêncio, a origem, as coisas mesmas, a significação, a proposição? E, um pouco mais: não deixara para nós a mensagem de que a tarefa que estava em jogo seria não procurar nada por trás das coisas, mas tão- somente na superfície delas? Certamente, algo aconteceu na aula inaugural de Foucault no Collège de France. Há agora a referência a algo que se esconde, que se oculta, que não pode se manifestar sem uma máscara, que só existe seguindo as trilhas obscuras de seu próprio desaparecimento. Esse algo é exatamente a verdade. Gostaria de insistir, portanto, no seguinte ponto: este modo de articular a temática da verdade constitui, no pensamento de Foucault, a via régia para compreendermos a introdução do poder como uma noção central a partir da qual suas investigações gravitarão após 1970. É essa problematização do poder que caracterizará o forte traço genealógico presente nas tematizações procedentes de Foucault. Prestemos atenção às palavras de Machado (1988) em sua Introdução à Microfísica do Poder (FOUCAULT, 1988), intitulada Por

uma genealogia do poder.

A arqueologia, procurando estabelecer a constituição dos saberes privilegiando as interrelações discursivas e sua articulação com as instituições, respondia a como os saberes apareciam e se transformavam. Podemos então dizer que a análise que em seguida é proposta tem como ponto de partida a questão do porquê. Seu objetivo não é principalmente descrever as compatibilidades e incompatibilidades entre os saberes a partir da configuração de suas positividades; o que pretende é, em última análise, explicar o aparecimento de saberes a partir de condições de possibilidade externa aos próprios saberes (...). É essa análise do porquê dos saberes, que pretende explicar sua existência e suas transformações situando-o como peça de relações de poder ou incluindo-o em um discurso político, que em uma terminologia nietzscheana Foucault chamará genealogia (MACHADO, 1988, p.X, primeiros e segundos grifos do autor, terceiro grifos meus).

Este é, pois, o ponto em que se situa a investigação genealógica foucaultiana: as condições de possibilidades externas aos próprios saberes. Este registro tem sua razão

de ser justificada na medida em que estes saberes frequentemente ignoram as condições de possibilidades externas a ele; ou, pelo menos, reservam uma região sua que é intacta a essas condições externas. Pois bem, essa região considerada intacta pelos saberes é precisamente a região da verdade. A genealogia foucualtiana, portanto, não deverá tão- somente mostrar essas condições externas ao saber que o próprio saber desconhece, mas deverá dar a ver essas condições externas à verdade que a própria verdade desconhece. Sua potência seria diminuta caso o território agonístico que ela instaura e em que se situa fosse agenciado tão-somente a partir de um embate com aquilo que o saber desconhece de si – a genealogia deverá, portanto, armar-se melhor ao ponto de chegar a essa região encoberta, escondida, intacta e irrefutável. A genealogia deverá lutar contra aquilo que a verdade desconhece de si – em uma palavra, a genealogia há que achar o

esconderijo da verdade.

Assim, Foucault (1988) nos diz que a genealogia deverá espreitar os acontecimentos “lá onde menos se os esperava e naquilo que é tido como não possuindo história” (p.15). O texto Nietzsche, a Genealogia e a História (FOUCAULT, 1988) traz as marcas mais significas da passagem do espaço branco da arqueologia ao território cinzento da genealogia. É nesse texto que Foucault (1988) – reagenciando toda a potência de um pensamento destemido da contradição como o de Nietzsche – afirma que “atrás da verdade sempre recente, avara e comedida, existe a produção milenar dos erros” (p.19, grifos meus). É aí que a história da verdade aparece como “a história de um erro que tem o nome de verdade” (p.19). Há, porém, uma indicação ainda mais precisa por parte de Foucault acerca deste paradoxo de que a verdade é um erro, de que a verdade é uma mentira, de que a verdade não é uma verdade – em suma: de que a

verdade não é o que é. Refiro-me aqui a uma conversa entre Michel Foucault e Paul

Veyne tal como narrada por este último:

Uma tarde [Foucault] me dizia, enquanto falávamos do mito da verdade, que a grande questão, segundo Heidegger, era saber qual era o fundo da verdade; segundo Wittgenstein, saber o que se dizia quando se dizia verdadeiro; mas “mas, a partir do meu ponto de vista”, acrescentou [Foucault] (já que eu anotei sua frase), “a questão é: porque é que a verdade é tão pouco verdadeira?” (VEYNE, 1986, p.940, grifos meus).

Com estas observações, meu propósito não é somente abrir caminho para pensar uma genealogia da verdade no pensamento de Foucault – o que, certamente, não constituiria novidade alguma. O que pretendo é um pouco mais: mostrar que aquilo que

uma genealogia deve acompanhar é a essa ocultação da verdade na vontade de verdade, bem como a dissimulação da vontade na vontade de verdade; em suma: a mentira da

verdade é que deverá ser o objeto da genealogia. E, talvez, ainda exista nesse

empreendimento um pouco mais de ousadia: trata-se de, a partir dele, afirmar que é somente pelo fato de ter sido inventada uma verdade que esconde a vontade de verdade, é somente pelo fato de que a verdade só pode relacionar-se com a vontade de verdade mediante ocultamentos, máscaras ou disfarces dessa vontade – é somente por esses acontecimentos que existe uma razão de ser para qualquer coisa como uma genealogia.

Mas este território cinzento mancharia com sua maldade a indiferença do espaço branco? Adotar uma atitude genealógica implicaria romper com uma atitude arqueológica? De forma nenhuma! É precisamente para articular esta função – não propriamente de deslocamento, mas de dobradiça, entre a arqueologia e a genealogia – que Foucault (2011b), em A Ordem do Discurso, fará referência a quatro princípios metodológicos.

1) Princípio da inversão: Trata-se de reconhecer, nos locais onde a

tradição filosófica situava os lugares privilegiados de produção do discurso (o autor, a consciência, o sujeito, a vontade de verdade), precisamente um lugar de rarefação do discurso68.

2) Princípio da descontinuidade: Não existe “o” discurso! Este princípio

emerge para dar conta exatamente da suspeita de que o princípio anterior admitiria a existência de um impensado real e reprimido pela rarefação do discurso69. Mediante ele, ao contrário, diz-se precisamente que não existe uma continuidade expressa pela relação entre repressão e/ou liberação d“o” discurso.

3) Princípio da especificidade: Não há qualquer cumplicidade ou acordo

prévio entre o discurso e nosso conhecimento. O discurso é um

68

Este princípio expressa de forma nítida o que, no capítulo anterior, chamei de atitude clandestina no pensamento de Foucault.

69

Isto aparece a partir do seguinte questionamento feito a si mesmo pelo próprio Foucault (2011b): “mas uma vez descobertos esses princípios de rarefação, uma vez que se deixa de considerá-los como instancia fundamental e criadora, o que se descobre por baixo deles? Dever-se-ia admitir a plenitude virtual de um mundo de discursos ininterruptos? É aqui que se faz necessário fazer intervir outros princípios de métodos”. Este outro princípio é justamente o princípio de descontinuidade.

acontecimento específico incapaz de situar-se no nobre status de entidade neutra de tradução e transparência. Ao contrário, o discurso é uma prática, uma violência, um ato, uma imposição.

4) Princípio da exterioridade: situar-se no campo do discurso para se

mover, deste lugar, não em direção à interioridade, à significação essencial ou lógica, ao pensamento que ele representa, ou à intenção que a interpretação dele nos revela; mas para mover-se, de sua exterioridade (de sua superfície), em direção às condições que lhes são exteriores (portanto, fora dele).

Foucault (2011b) referenciará esses quatro princípios da seguinte forma:

Quatro noções devem servir, portanto, de princípio regulador para a análise: a noção de acontecimento, a de série, a de regularidade, a de condição de possibilidade. Vemos que se opõem termo a termo: o acontecimento à criação, a série à unidade, a regularidade à originalidade, e a condição de possibilidade à significação. Estas quatro últimas noções (significação, originalidade, unidade e criação) de modo geral dominaram a história tradicional das ideias onde, de comum acordo, se procurava o ponto da criação, a unidade de uma obra, de uma época ou de um tema, a marca da originalidade individual e o tesouro indefinido das significações ocultas (p.54).

Mediante tais princípios, será possível articular a arqueologia com a genealogia no empreendimento de uma analítica do dispositivo da verdade. Trata-se, portanto, de perceber que não é necessário recorrer a um campo pré-discursivo, mudo e silencioso; a uma origem sem invenção, sem acontecimento e sem aparecimento; e muito menos à transcendência ou ao impensado, caso queiramos localizar, nos infiltrar e eventualmente minar o esconderijo da verdade. É neste mundo que a verdade se esconde. Eis aí a grande mentira da verdade! Falar na “mentira da verdade” não será, pois, um signo de que ainda estaríamos em uma relação de dependência da verdade – dependência que ressoa ao infinito o eco dogmático: “a mentira só é possível na verdade”. É necessária uma descida às profundezas da superfície, ou aprofundar-se nas camadas externas da pele: não para chegar ao fundo, mas para fazer o fundo. Isto, no entanto, será um fazer, antes de ser um fundo. É que, para encontrar o esconderijo, é necessário cavar a terra – e ver que o esconderijo nada mais é do que esta região da terra que já fora cavada e que já existia antes de nós.

Portanto, se sob o ponto de vista arqueológico, a verdade será o impensado do

dispositivo da verdade, sob o prisma genealógico a verdade será a mentira do dispositivo da verdade. E é precisamente isto que, após ter dado neste tópico as

coordenadas deste caminho, realizarei no decorrer deste capítulo: uma genealogia da

verdade como a mentira do dispositivo da verdade. Não poderia, contudo, levar a cabo

este empreendimento desacompanhado do pensamento de Nietzsche.

2. Nietzsche e a vontade de verdade: verdade como metáfora, esquecimento e

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