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O impensado na Teoria Pragmática da Verdade

IMPENSADO NO DISPOSITIVO DA VERDADE

4. O impensado nas Teorias da Verdade

4.4. O impensado na Teoria Pragmática da Verdade

Por fim, temos a Teoria Pragmática da Verdade. Desqualificada por Costa (2005) de antemão, talvez precisamente por ser pragmática, ela apresenta-se um pouco como uma ovelha negra, ou um estranho no ninho das teorias da verdade. Podemos reportá-la a autores como Pierce, James e Dewey. Segundo Abe (1991), a noção de

verdade pragmática presente nessas teorias – que é fundada a partir de seus efeitos

práticos e de suas consequências básicas – é também chamada de quase-verdade. Esta curiosa denominação constitui, para aqueles que a utilizam, signo de que talvez não seria exatamente da verdade que se fala em tal teoria, acusação que não possui meias- palavras nos termos de Costa (2005):

Tal teoria [teoria pragmática da verdade] confunde a verdade com um efeito frequente da adoção de ideias verdadeiras, que é a utilidade. Todos concordariam que o conhecimento da verdade frequentemente é útil, mas dizer que algo é verdadeiro porque é útil é confundir o efeito com a causa (p.5).

Conforme observam Mikenberg, da Costa e Chuaqui (1986), o conceito pragmático de verdade não necessariamente rompe com o conceito de verdade de uma teoria correspondencialista mas, ao contrário, muitas vezes está em dependência deste. Com isso, os autores dirão que uma asserção só é pragmaticamente verdadeira se seus enunciados básicos também forem verdadeiros do ponto de vista de uma teoria correspondencialista da verdade. Portanto, toda a análise arqueológica do impensado nas Teorias Correspondencialistas da Verdade poderá ser reativada quando uma Teoria Pragmática da Verdade assumir (explícita ou implicitamente) critérios correspondencialistas para decidir pelo valor de verdade. A recíproca, todavia, não é de forma alguma verdadeira. Do ponto de vista de uma teoria estritamente

correspondencialista (e não pragmática) da verdade, há uma rejeição de uma definição pragmática de verdade, ou uma definição qualquer de verdade do ponto de vista pragmático (KIRKHAM, 2003; FRANÇA, 2008; COSTA, 2005). Para esses autores, quando se fala acerca da verdade, já se está de saída da esfera pragmática. Desta forma, Abe (1991) nos explicita uma síntese acerca das teorias pragmáticas em relação ao significado, ao conhecimento e à verdade.

O significado de uma proposição é identificado com seu significado experimental e prático, i.e., com a totalidade das experiências possíveis que ela prediz. A verdade de uma proposição consiste na realização no decurso do tempo (passado, presente e futuro) de seu sentido. A crença na verdade54 de uma proposição é garantida pelo grau com que ela tem sido testada na prática e se mostrado satisfatória (pela pessoa ou comunidade que possui a crença) (s/p).

É possível, porém, fazer a seguinte pergunta: uma Teoria Pragmática da Verdade

sempre assumirá uma noção implícita de correspondência? É somente mediante esta

assunção que se reinscreve o impensado nas teorias pragmáticas? Argumento aqui que há na própria atitude pragmática uma marca inapagável do impensado. Para tal, farei uma breve referência da perspectiva que possivelmente seja aquela considerada de maior relevo e rigor no campo filosófico do pragmatismo – a saber, o pragmatismo linguísitco de Wittgenstein (1989) presente em suas Investigações Filosóficas. Certamente, essa breve análise estará longe de fazer jus à riqueza, à inesperada astúcia, à sutileza analítica, à finura da escrita que se deixa movimentar no balanço das interrogações não-respondidas (tão frequentes nessa obra) e aos arroubos potentes extraídos da ingenuidade e honestidade intelectual de um filósofo como Wittgenstein. Aqui me interessa tão-somente aquilo que é inerte no pragmatismo linguístico, e como essa inércia poderia ser movimentada caso nos situássemos no registro do enunciado tal como se situa Foucault (1997b). Há, certamente, qualquer coisa como uma grande maldade nesse pequeno empreendimento que se seguirá nas próximas linhas.

Para Wittgenstein (1989), o significado de uma proposição, de uma frase, de um enunciado ou de uma palavra em nada extrapola o seu uso: ele lhe é idêntico. Se podemos afirmar que essa talvez seja a principal tese das Investigações Filosóficas, é

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É interessante perceber o fato de que, no campo das Teorias da Verdade, campo fortemente marcado pela atitude antipsicologista e mesmo antiepistemológica da Filosofia Analítica, a questão acerca do conhecimento diz respeito à relação entre crenças e justificações de crenças. Para este campo, a esfera epistemológica pareceria mais próxima de uma história externa da verdade do que de uma história interna da verdade (lugar onde Foucault, ao contrário, situa os discursos epistemológicos, em oposição aos aletúrgicos).

possível acrescentar uma outra de igual importância: todo uso da linguagem é público – portanto, se não existe um sentido privado, também não haverá também uma linguagem privada. O que quer dizer, todavia, a afirmação de que a linguagem possui um caráter inteiramente público? Respondo a tal pergunta postulando a sua consequência mais radical: isto implicaria em um desaparecimento das questões filosóficas mediante a iluminação panorâmica dada por uma “clareza completa” (WITTGENSTEIN, 1989, p.58). Segundo Wittgenstein (1989), os problemas filosóficos nascem quando a linguagem entra de férias. Há na Filosofia todo um enfeitiçamento do entendimento pela própria linguagem quando essa adentra em regiões obscuras e tenta buscar a significação legítima, originária e universal – em uma palavra, quando esta transcende todo e qualquer jogo de linguagem. Assim, a Filosofia seria este mal, esta ilusão, esta miragem; mas, ao mesmo tempo, seria também a terapia contra esse próprio mal. Qual é, todavia, o fundamento óptico, ou a razão de ser desta miragem da Filosofia?

O embaraço no qual se encontrou e se (des)encontra a Filosofia, caso pensemos com Wittgenstein (1989), decorre de duas superstições que deverão cair por terra uma vez que se esclareça o caráter eminentemente público da linguagem. Uma delas diz respeito à concepção de que haveria uma ação espiritual em circunstâncias nas quais não há uma ação corporal que encerra uma elucidação. Isso se refere à ilusão mentalista de que algo que ocorre internamente permite encerrar os limites daquilo a que se visa fazer referência. Uma imagem mental da cor verde-escuro designaria a referência verde-

escuro, ao passo que uma imagem mental do que é o escuro discriminaria a referência

específica ao escuro presente na cor verde (o que a simples referência não permitira discernir). Isso é bastante perceptível, portanto, quando nos referimos às características dos objetos que não podem ser seccionadas mediante a ação corporal de “apontar para” aquilo que se deseja. Segundo Wittgenstein (1989): “porque não podemos indicar uma ação corporal que chamamos de apontar para a forma (em oposição, por exemplo, à cor), então dizemos que corresponde a essas palavras uma atividade espiritual.” (p.25).

A solução dada pelo autor consiste em atribuir uma significação de uma palavra não em virtude daquilo que alguém “tinha em mente” no momento da enunciação, mas sim em função de sua inserção num dado jogo de linguagem. Qualquer elucidação – e isso seria evidente! – só pode ser feita por meio de palavras; estas, por sua vez, poderão necessitar de uma nova elucidação caso não haja certo entendimento. Não haverá, então, critério outro para a construção de novas elucidações que seja diferente de um mal-

“apontar para a forma, ou para a cor [depende] daquilo que acontecesse antes e depois do apontar” (p.24).

Com isso, o filósofo chega a um aspecto fundamental: para que se possa levantar a pergunta pela elucidação de um objeto, é necessário já estar imerso num jogo de linguagem, posto que a pergunta só faz sentido dentro deste jogo. Isto irá coincidir com a crítica à ideia de Santo Agostinho de que a linguagem possui somente uma função designativa e que sua aprendizagem é dada unicamente por ensino ostensivo. Tal função designativa é aqui apresentada na condição de a priori linguístico. Isto levaria a crer que o filósofo medieval supunha que qualquer pessoa, ao aprender a nossa linguagem, já disporia de uma forma de pensamento que naturalmente estaria sempre a pôr a questão: “o que é isto?”, cuja resposta seria dada por elucidação ostensiva. Aprender é, portanto,

aprender o que são as coisas e aprender o que são as coisas é aprender a dar o nome certo às coisas certas. Todo esse processo educativo se apresenta, então, como um

processo de resposta à pergunta o que é isto? com uma verdade – processo este que supõe toda uma distribuição originária, imutável e evidente do campo do visível e do invisível, bem como das palavras que nele se encaixam ou representam. Não é, contudo, algo bem semelhante a isto a concepção de Educação que ainda teríamos, apesar de todo um campo de dissensos filosóficos quando a estes temas? Temos aqui, portanto, em semelhança com o holismo semântico de Quine (1969), toda uma crítica às teorias correspondencialistas. Mas sigamos um pouco adiante com a análise.

Se temos, de um lado, a ilusão mentalista, em todas as suas consequências, como uma das grandes razões para a instalação de todo um mal-entendido quanto ao caráter eminentemente público da linguagem, teremos também a cegueira do ideal como um segundo elemento por ele também responsável. Trata-se, aqui, da suposição de que o ideal já está presente no real, talvez sob a denominação de lógica, como uma essência obscura por trás das enunciações linguísticas cotidianas. Há, ainda, um imperativo correlato a essa assunção: cabe a nós buscar ver aquilo que, devido ao excesso de proximidade, não conseguimos vemos muito bem – do mesmo modo como não vemos, por exemplo, a cor de nossos olhos. Em uma grande distância da significação que estas palavras teriam em solo foucaultiano, aqui isto pode funcionar, ao contrário, um impedimento para uma série de coisas. Um desses impedimentos encontraria sua expressão, por exemplo, em uma crítica que poderia ser feita ao próprio Wittgenstein: como se pode falar da significação de um termo num jogo de linguagem, como se pode falar que este termo está dentro de tal jogo e é, portanto, compreendido

pelos jogadores, se não há uma delimitação exata de um jogo de linguagem (ou seja, quando acaba um jogo e quando começa outro)? Como operar com um conceito, se não se sabe quais são seus limites? Esta questão seria feita, portanto, pelo Wittgenstein (2001) do Tractatus Logico-philosophicus ao Wittgenstein (1989) das Investigações

Filosóficas: como operar com um conceito mal definido logicamente ou

semanticamente, uma vez que a estrutura lógica das proposições coincidira com a estrutura ontológica do real? A esta questão, teríamos como resposta-resmungo algo semelhante a: “ora, operar com um conceito mal-definido não é realmente (verdadeiramente) operar com um conceito!”.

No que diz respeito à impossibilidade de estabelecer um jogo de linguagem em virtude da impossibilidade de demarcar um limite rígido para este jogo em função de uma delimitação de suas regras, isto consiste, como dissemos, numa evidente marca da cegueira ocasionada pelo ideal. Tal cegueira pelo ideal supõe que, naquilo onde residem vagueza, ambiguidade e/ou indeterminação semântica, não há legitimidade semântica, não há comunicação verdadeira, não há um jogo de conceitos. Contudo, diria Wittgenstein, esse deslize num terreno onde não há nenhum atrito, ou nenhuma força que impeça o livre caminhar, só pode ser possível porque a direção desse percurso culmina em lugar nenhum. Assim, se não há nada semelhante a uma definição conceitual completa, plena, acabada e total, isso não impede que esse conceito seja empregado e funcione nos usos práticos e cotidianos. “Não pise as plantas” – diz uma placa logo na entrada de um parque. Por um acaso seria necessário termos uma definição conceitual precisa do que é uma planta para que não pisemos nelas? Ou para que compreendamos o que diz a placa?

Destas sagazes investigações de Wittgenstein, podemos, todavia, destacar alguns pontos de dormência. O primeiro deles, certamente, aparece na noção pré-conceitual, intuitiva e, portanto, impensada do que seja um mal-entendido ou um bom-entendido. O que significa dizer que há um bom entendimento na conversa que temos no botequim da esquina, quando falamos sobre futebol com o Seu Manuel (o dono do botequim) e que há um mal-entendido em uma turma de alunos do curso de Psicologia que discutem ardentemente, com os dentes trincados e as mãos cerradas, pela verdade ou pela coerência de suas abordagens? O que significa conseguir se entender? O que constitui signo de que há um enigma, uma lacuna, um fracasso, um hiato? E o que nos leva a crer que algo “funcionou” ou “deu certo”? Não teríamos, pois, uma série de imagens de estereótipo que adentram com força no pensamento e produzem sua dormência

precisamente no momento em que tratamos as coisas nos termos de “dar certo” ou “não dar certo”, “funcionar” ou “não funcionar”, e, ainda, “entender” ou “não entender”? Percebemos, ainda, um parentesco com a perspectiva de Wittgenstein nas Teorias Pragmáticas, no campo das Filosofias da Ciência, que vão definir as proposições verdadeiras como aquelas que funcionam, como aquelas que dão conta de explicar um conjunto maior de fenômenos. Ora, não existe aí uma noção impensada do que seja

funcionar, ou dar conta, ou ser útil? Não existe, em suma, um conjunto de imagens, de

estereótipos, de histórias pré-narradas que representem um bom entendimento e um mal-

entendido? O mal-entendido é mal para quem? O que não é entendido no mal

entendido? O que não funciona em um mal-entendido? Nada funciona mesmo quando há um mal-entendido?

O segundo ponto para o qual gostaria de chamar atenção é a relação entre o caráter eminentemente público da linguagem e sua consequência em termos de dissolução das questões filosóficas. Quanto a isso, Wittgenstein (1989) vai ainda um pouco mais longe e sugere que a linguagem dever ser reconduzida das especulações filosóficas ao seu uso prático, comum e cotidiano. Ora, mas o que é um uso comum da linguagem? O que queremos dizer quando dizemos que o senso-comum não filosofa? O que querermos dizer quando discernimos esse campo, por vezes puramente negativo, por vezes reduzido à categoria de excremento, e na maioria das vezes profundamente nebuloso, a que chamamos de senso comum? Paradoxalmente, é a este campo tão nocauteado e machucado pela Filosofia que Wittgenstein (1989) parece situar o território da clareza completa, da iluminação panorâmica, do funcionamento de uma linguagem terapeutizada e bem resolvida. Disto segue-se que, aqui, o impensado reside precisamente nessa demarcação entre senso comum e linguagem filosófica, bem como em toda uma função utópica de harmonização e apaziguamento linguístico exercido por este campo.

Quando, todavia, as teorias pragmáticas se constituem como Teorias Pragmáticas da Verdade, em geral, se encontram centradas no conceito de justificação. A justificação aparece, por excelência, como o uso da linguagem, como o ato-de-fala que permite aproximar a prática linguística da verdade. No subtópico seguinte, tematizarei como todo um movimento de isolar a verdade do âmbito da justificação e, por conseguinte, formular uma noção de verdade transcendente à prática linguística constitui atitude fundamental para o traçado dos dois movimentos que acionam os motores para fazer funcionar aquilo que mais adiante explicitarei como a roda-viva do

dispositivo da verdade – a saber: o isolamento da verdade e a intuição da verdade.

Nesse contexto, veremos também como, apesar de muitas aproximações serem feitas entre o pensamento foucaultiano e o pragmatismo, este último repousa na Imagem do

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