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Nietzsche e a vontade de verdade: verdade como metáfora, esquecimento e antropomorfismo

A GENEALOGIA DA MENTIRA DA VERDADE

2. Nietzsche e a vontade de verdade: verdade como metáfora, esquecimento e antropomorfismo

A vontade de verdade, que ainda nos seduzirá a muitas ousadias, essa célebre veracidade, da qual todos os filósofos até agora falaram com veneração: que questões essa vontade de verdade já não nos colocou! Que estranhas, graves, discutíveis questões! Essa já é uma longa história – e, no entanto, não parece que ela começou agorinha mesmo? Será de espantar de enfim nos tornarmos desconfiados, perdemos a paciência, olhamos em volta impacientemente? Que também nós aprendemos com essa esfinge, por nossa parte, a questionar? Quem é propriamente que nos coloca questões aqui? O que, em nós, almeja propriamente realmente “à verdade”? (...) Quem de nós aqui é Édipo? E quem é a Esfinge? (NIETZSCHE, 2008, p.21)

As análises realizadas ao final do segundo capítulo indicam que filósofos como Platão, Descartes, Kant e Habermas indicarão, de formas diferentes e por distintas vias, que existe algum tipo de inclinação natural ou inevitável do pensamento à verdade. Retomemos esse ponto agora com a Filosofia de Nietzsche, principalmente tomando como referência o texto Sobre a Verdade e a Mentira no sentido Extramoral e da obra A

Vontade de Potência, mas também algumas considerações importantes ao tema

encontrados em A Gaia Ciência e em Além do Bem e do Mal.

Haveria mesmo uma inclinação do pensamento humano à verdade? Caso haja, ela seria natural ou inevitável? Seria isso uma evidência, algo que todos percebem e ninguém pode negar? Teria o verdadeiro uma força intrínseca, um campo de atração irresistível ou uma harmonia incorruptível com o espírito/pensamento/linguagem do homem? Mas o homem, o homem por inteiro, quer a verdade? Que parte sua quer a verdade? O que, no homem, aspira alcançar verdade? Ou seria possível uma outra relação, um outro tipo de filia em relação à verdade – alguma que, por (a)ventura, não encontrasse na verdade o tesouro perdido, a fonte de todas as luzes, a bússola redentora, a guia perdida e a instância que desencadeia um voluntário e inevitável estado de obediência do pensamento e da ação humanas?

Em Sobre a Verdade e a Mentira no sentido extramoral, Nietzsche (1873) irá criar todo um pântano fértil para a gestação de questões como estas. O extramoral é o campo da imanência, e será este o campo onde surge algo como a verdade, ou como uma vontade de verdade. Mas como, na imanência, pela imanência e da imanência pôde surgir algo como a verdade?

Essa pergunta genealógica sobre a invenção da verdade implica em um abandono à questão lógica acerca do valor de verdade. Como bem percebe Mota (2007): “trata-se, portanto, não da questão do valor de verdade, mas sim do valor da verdade” (p.14). Isto quer dizer que importa, em uma analítica do dispositivo da verdade, perguntar “O que a verdade é?” antes de perguntar “Isso é verdade?”. Nisto consiste precisamente a adoção de um realismo imanente. Ele constitui uma tentativa de perguntar pelo valor da verdade presente no “valor de verdade” e, ao mesmo tempo, em um ponto de recusa no que diz respeito às tentativas de estabelecer um valor de

verdade a partir da transcendência da verdade. É justamente esta transcendência que

colocará a questão “É verdadeiro ou é falso?” antes de colocar a questão imanente: “O

que é a verdade?”. Se a primeira delas indaga o valor de verdade, a segunda interrogará

o valor da verdade. Trata-se, pois, de todo o trabalho de uma genealogia da verdade que será também, como bem aponta Deleuze (2010), uma crítica da verdade.

Essa crítica da verdade nada mais consiste em fazer a pergunta que, por si, indica o movimento mencionado por Foucault (2008b) no texto O que são as luzes? Ele consiste em traçar os limites e, ao mesmo tempo, acelerar os motores para sua ultrapassagem – O que é a verdade? Esta pergunta-ultrapassagem nos levará não a uma resposta única, mas a uma pluralidade de caminhos. Enquanto, todavia, acharmos que a pergunta “O que é verdade?” deve ser anterior à questão “O que é a verdade?”, ou enquanto persistirmos em crer que a segunda interrogação pressupõe a primeira, jamais chegaremos a dar sequer o primeiro passo rumo às trilhas que levam a uma analítica do

dispositivo da verdade.

Para iniciar um encaminhamento à questão “O que é a verdade?”, do ponto de vista genealógico, há que fazer alguns deslocamentos: uma espécie de organização das perguntas, de hierarquia das questões, de condução das interrogações. Começarei, assim, dizendo que introduzir a questão acerca do valor da verdade é colocar a questão da vontade de verdade. Mosé (2005) bem percebe a torção desse registro em que se situa o pensamento de Nietzsche:

Não se trata mais de saber o que é verdadeiro ou o que é falso, mas de perguntar: por que sempre a verdade? Ao afirmar que a verdade é um valor, Nietzsche busca dessacralizar esse princípio de avaliação, quando desvela sua condição de invenção humana: a verdade é uma ideia, uma construção do pensamento, ela tem história. E a história da ideia de verdade parece remeter não ao universo do conhecimento, mas à necessidade humana de duração, de estabilidade (p.31).

Esse é precisamente o questionamento inicial feito por Nietzsche no desalojador e pungente Sobre a Verdade e a Mentira num sentido Extramoral: como, em um mundo envolvido pela ilusão, pela lisonja, pela calúnia, pela mentira, pelo engano, pela ostentação, pelo brilho das máscaras e pelos véus da convenção (NIETZSCHE, 1873) pôde surgir, pela primeira vez, algo como um instinto de verdade, uma vontade de verdade? Nietzsche (1873) nos dá uma pista de início: algo semelhante a um tratado de

paz.

Ora, esse tratado de paz fornece algo como um primeiro passo em vista de tal enigmático instinto de verdade. De fato, aquilo que daqui em diante deve ser a verdade é então fixado, quer dizer, é descoberta uma designação uniformemente válida e obrigatória das coisas, e a legislação da linguagem vai agora fornecer também as primeiras leis da verdade, pois nesta ocasião e pela primeira vez, aparece uma oposição entre verdade e mentira. (s/p).

Por esta via, Nietzsche (1873) afirma que o homem só quer a verdade em um sentido muito estrito e nada essencial: somente nas circunstâncias em que a verdade lhe trouxer resultados, efeitos, consequências favoráveis e armas de sobrevivência que afirmem sua vida. Neste sentido, igualmente o homem quererá a mentira, caso a mentira lhe afirme a vida. Ora, mas o que é a verdade e o que é a mentira? Sendo a mentira e o erro tidos por toda uma tradição filosófica ocidental como dependentes da verdade70, pergunto: o que é a verdade? É com Nietzsche (1873) que agenciarei, aqui, uma definição estratégia e temporária do que seja a verdade:

Uma multidão móvel de metáforas, metonímias e antropomorfismos; em resumo, uma soma de relações humanas que foram realçadas, transpostas e ornamentadas pela poesia e pela retórica e que, depois de um longo uso, parecem estáveis, canônicas e obrigatórias aos olhos de um povo: as verdades são ilusões das quais se esqueceu que são, metáforas gastas que perderam sua

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“Na imagem clássica, o erro não exprime de direito o que pode acontecer de pior ao pensamento, sem que o pensamento se apresente ele mesmo como ‘desejando’ o verdadeiro, orientado na direção do verdadeiro, voltado para o verdadeiro: o que está suposto é que todo mundo sabe o que quer dizer pensar, portanto é capaz, de direito, de pensar. É esta confiança, que não exclui o humor, que anima a imagem clássica: uma remissão à verdade que constitui o movimento infinito do conhecimento como traço diagramático” (DELEUZE e GUATTARI, 2010, p. 66).

força sensível, moeda que perdeu sua efígie e que não é mais considerada como tal, mas apenas como metal (s/p).

Explorarei aqui, de forma sumária, três pontos fundamentais para uma genealogia da verdade como uma genealogia da vontade de verdade que seja, ao mesmo tempo, uma genealogia da mentira da verdade:

a) A verdade como metáfora. b) A verdade como esquecimento. c) A verdade como antropomorfismo.

Entender a verdade como metáfora constitui algo semelhante a pingar uma gota de ácido sulfúrico em uma caixa d’água. O efeito corrosivo desta assunção respingará e dissolverá qualquer utopia de que existe alguma forma mais adequada do que outra para descrever a realidade, qualquer noção de que é possível estar mais próximo ou mais distante de uma percepção fiel da realidade, qualquer ideia de que exista algo como uma intuição da verdade, qualquer entendimento de que há teorias, conjuntos de proposições ou formações discursivas mais coerentes (verdadeiros) do que outros, ou mesmo que exista alguma coisa como a verdade em si, índice de si mesma. Esse questionamento de Nietzsche, se choca indiretamente com uma noção coerencial de verdade, ataca diretamente o realismo transcendente e as teorias correspondencialistas e da verdade.

Em cada impressão, em cada sensação há um quê de velho nesse amor [à realidade]: e igualmente alguma fantasia, um preconceito, uma desrazão, uma insciência, um temor e alguma coisa mais contribuíram para tecê-la. Ali, naquela montanha! E naquela nuvem! O que é “real” nelas? Subtraiam-lhe a fantasmagoria e todo o humano acréscimo, caros sóbrios! Sim, se pudessem fazê-lo. Se pudessem olvidar toda a sua procedência, sua precedência, seu passado, sua pré-escola – toda a sua humanidade e animalidade.! Não existe “realidade” para nós.” (NIETZSCHE, 2012. p.90).

Argumento aqui que este realismo combatido por Nietzsche (2012) no parágrafo 57 da Gaia Ciência – intitulado Aos realistas – é aquilo que no primeiro capítulo deste trabalho chamo de realismo transcendente. O que é real nas nuvens e nas montanhas é precisamente aquilo que continuaria a existir caso se pudesse subtrair o acréscimo

humano. Certamente, muito embora seja impossível discernir uma posição definitiva,

una, coesa e coerente no pensamento de Nietzsche, há toda uma tendência antirrealista em sua obra. Isto de forma alguma significa que Nietzsche negue a existência de uma

realidade, mas isto significa que há um ponto de inflamação em seu pensamento que se atualiza a todo instante: a suspeita de que aquilo que se chama de realidade consiste, “na realidade”, em um acréscimo humano, em uma necessidade psicológica, em um antropomorfismo. Entendo, contudo, que esta posição questiona um realismo

transcendente, precisamente porque é este realismo que suporá uma diferença de

natureza quanto à existência a) de coisas duras e imóveis, definitivamente permanentes e atemporalmente necessárias, b) de coisas moles, flexíveis, mutáveis, destrutíveis; e, por fim, c) demarcará a existência dessas duas coisas em oposição às coisas que não

existem. Diferentemente deste realismo transcendente, um realismo imanente, tal como

adotado por este trabalho, não suporá que existem coisas mais reais do que outras; e, ainda, não admitirá a existência de coisas não reais.

Retornarei a esse problema da relação entre verdade e realidade no pensamento de Nietzsche ainda neste capítulo e a partir da obra A Vontade de Potência, onde acredito existir uma posição melhor configurada e mais nítida desta relação. Quanto à relação entre verdade, metáfora e realidade, ainda algumas palavras. As metáforas são consideradas para Nietzsche (1873) não como aquilo que é manifestado, mas precisamente como aquilo que é escondido sob o rígido edifício do que chamamos

realidade, bem como envolvido e asfixiado na teia de aranha resistente e flexível da verdade:

A coisa em si [como sendo precisamente a verdade pura e sem consequências], enquanto objeto para aquele que cria uma linguagem, permanece totalmente incompreensível e indigna de seus esforços. Esta designa somente as relações entre os homens e as coisas e para exprimi-las ela pede o auxílio das metáforas mais audaciosas. Transpor uma excitação nervosa em uma imagem! Primeira metáfora. A imagem por sua vez é transformada num som! Segunda metáfora (...) Acreditamos possuir algum saber sobre as coisas propriamente, quando falamos de árvores, cores, neve e flores, mas não temos entretanto aí mais do que metáforas das coisas, as quais não correspondem absolutamente às entidades originais (s/p).

Somente essa invenção metafórica, entretanto, não caracteriza a verdade. É preciso que dessa invenção se tenha um esquecimento, um apagamento, uma supressão absoluta para que se possa falar em verdade. A verdade há que ser tomada, na expressão de Nietzsche (1873), como cascas vazias. Ou, como também refere o filósofo, como

teias de aranha, que encontram sua resistência precisamente em sua flexibilidade: trata-

se de um entorno disforme, vazio e maleável onde, precisamente por caber qualquer coisa, nada se encaixa. Foi o esquecimento de sua invenção como instrumento para a

utilidade, a sobrevivência e a conservação dos homens, todavia, o que conferiu efetivamente essa espécie de rigidez flexível responsável por duas características fundamentais que foram conferidas à verdade: a onipresença (a verdade está em todo lugar) e a irrefutabilidade (a verdade não pode ser destruída). Elas tendem, por essa razão, a caminhar de mãos dadas – o que esclarecerei um pouco mais adiante, ainda neste capítulo, quando tematizarei a genealogia da mentira da verdade a partir do pensamento de Foucault.

Ocorre, porém, que este esquecimento receberá um nome um pouco mais respeitável: abstração. (Ad)entrar o reino da verdade é penetrar o descaminho que segue em direção “ao país dos esquemas fantasmagóricos, ao país das abstrações” (NIETZSCHE, 1873, s/p). É adentrar o reino dos conceitos e o cemitério das intuições (idem). Neste reino, os conceitos só podem ser apresentados como forma além de toda forma, cujo insistente movimento de omitir o particular e o real faz dele somente um “x para nós inacessível e indefinível71” (idem).

Em A Gaia Ciência, Nietzsche (2012) chama atenção para alguns “equivocados artigos de fé” (p.127) constituintes de um conjunto de erros úteis que recebemos ao longo de muito tempo como herança de nosso conhecimento: “que existem coisas duráveis, que existem coisas iguais, que existem coisas, matérias, corpos, que uma coisa é aquilo que parece, que nosso querer é livre, que o que é bom pra mim é também bom em si” (NIETZSCHE, 2012, p.127-128). Nada disso, entretanto, foi simplesmente superposto ou incorporado à vontade de verdade, mas “somente muito tempo depois apareceu a verdade, como forma mais fraca de conhecimento” (p.128). Essa forma mais

fraca de conhecimento, todavia, extrai sua força ao passo em que vem galopando por

léguas a fio, em um tempo ímpar e na velocidade de uma impaciência, a estrada do esquecimento. Assim, Nietzsche (2012) acentua: “A força de um conhecimento não está em seu grau de verdade, mas na sua antiguidade, no sei grau de incorporação, em seu caráter de condição pra vida” (idem). Com isto, quer dizer: a força de um conhecimento não está no seu grau de verdade tal como a verdade se representa para si mesma – ou seja: em si mesma. Eis aqui já uma grande mentira. A força de um conhecimento tem relação não com aquilo que ele é para si mesmo, mas com o que ele consegue

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Talvez por essa razão, como mesmo perceberam Deleuze e Guattari (2010), os conceitos, pelo jogo específico de sua fabricação, estão sempre dispostos na iminência de representarem a imanência pela transcendência.

incorporar, trazer para si, tocar e transformar em ouro. A verdade aparece como esta

imensa máquina de incorporação e de fortalecimento do conhecimento:

Não somente utilidade e prazer, mas todo o gênero de impulsos tomou partido na luta pelas “verdades”; a luta intelectual tornou-se ocupação, atrativo, dever, profissão, dignidade –: o conhecimento e a busca do verdadeiro se incluíram como necessidade, entre as necessidades. (...) O conhecimento se tornou então parte da vida mesma e, enquanto vida, um poder contínuo de crescimento: até que os conhecimentos e os antiquíssimos erros fundamentais acabaram por se chocar, os dois sendo vida, os dois sendo poder, os dois no mesmo homem. O pensador: eis agora o ser no qual o impulso para a verdade e os erros conservadores da vida travam sua primeira luta, depois também que o impulso à verdade provou ser um poder conservador da vida (NIETZSCHE, 2012, p.129).

Assim, das regiões sombrias, geladas e secas do isolamento, da não mistura, do ceticismo, do ascetismo, da dúvida e dos questionamentos que protegem a vida nas curvas frias da interrogação, plana a verdade ao terreno da imanência, mostrando ser mais um poder conservador da vida. Tanto mais conservador quanto mais mostrar-se irrefutável o poder daquilo que se lhe apresenta como verdade: “Quais são afinal as verdades do homem? São os erros irrefutáveis do homem” (NIETZSCHE, 2012, p.165). Talvez, contudo, o esquecimento principal seja o de que há uma obrigação moral no impulso para a verdade, de que há aí um jogo de confiança, de retidão, de reconhecimento, de dignidade e de utilidade da verdade.

Foi somente o esquecimento desse mundo primitivo das metáforas, foi apenas a cristalização e a esclerose de um mar de imagens que surgiu originalmente como uma torrente escaldante da capacidade original da imaginação humana, foi unicamente a crença invencível de que este sol, esta janela e esta mesa são verdades em si, em suma, foi exclusivamente pelo fato de que o homem esqueceu que ele próprio é um sujeito e certamente um sujeito atuante, criador e artista, foi isto que lhe permitiu viver beneficiado com alguma paz, com alguma segurança, com alguma lógica. (NIETZSCHE, 1873, s/p).

Contra o traço comum entre fatalistas e idealistas da imanência (HABERMAS, 2004; APEL, 1896), para Nietzsche não há nenhum laço necessário ou irrompível entre instinto, criação, produção de metáforas e produção de verdades. A verdade não é uma fatalidade: foi inventada, abstraída e dotada de força diretamente proporcional à sua abstração, mas de modo algum isto implica dizer que toda invenção há de caminhar para a verdade como seu fim terminal. A metáfora pode ser liberada da verdade! E isto quer dizer: a verdade não está em tudo que se diz, na sombra de tudo o que se quer, no espectro de tudo o que se pensa. É possível um mundo sem a verdade!

Esse instinto que compele à criação de metáforas, esse instinto fundamental do homem do qual não podemos prescindir um só instante, pois assim fazendo não levaríamos em conta o homem mesmo, esse instinto não está submetido à verdade, apenas encontra-se disciplinado na medida em que, a partir de produções evanescentes, como são os conceitos, edificou-se um novo mundo regular e resistente que se ergue diante dele como uma fortaleza (NIETZSCHE, 1873, s/p, grifos meus).

O elemento, contudo, que considero de importância fundamental diz respeito à significação propriamente antropomórfica desse esquecimento da metáfora da verdade. Será precisamente o esclarecimento dessa ação humana e dessa extensão a que chamamos de verdade o que vem à tona quando se trata de fazer uma genealogia da mentira da verdade como parte de uma analítica do dispositivo da verdade. É esta significação antropomórfica da verdade que explorarei mediante a obra A Vontade de

Potência (NIETZSCHE, 2001), a partir de uma análise da relação entre verdade, mentira, realidade, criação e o outro mundo. Antes disso, prestemos atenção àquelas

que talvez sejam as palavras mais astuciosas de Nietzsche (1873), em seu texto Sobre a

Verdade e a Mentira num sentido Extramoral.

Se alguém esconde algo atrás de uma moita e depois procura exatamente nesse lugar acabando por encontrá-la aí, não há nenhum motivo para a glorificação dessa procura e dessa descoberta. Mas é todavia isso o que ocorre com a procura da verdade no domínio da razão. Quando dou a definição de mamífero e quando, depois de ter examinado um camelo, declaro: eis aqui um mamífero, isto é certamente uma verdade que vem à luz, mas o seu valor é limitado; quero dizer com isso que ela é em tudo uma declaração antropomórfica e que não contém qualquer coisa que seja verdade em si, real e universal, independente do homem (s/p, grifos meus).

O que a Filosofia vem chamando de busca da verdade, quando esta busca ocorre no registro da razão ou da racionalidade, tal como ocorre com as Filosofias de Platão, Descartes, Kant e Habermas, nada mais é do que um movimento assemelhado àquele que Nietzsche (1873), com muita perspicácia e descentramento, conseguiu enxergar. É por aqui que se faz possível qualquer tipo de afinidade, de tendência ou de inclinação inexplicavelmente inevitável do pensamento, da linguagem, ou do sujeito em direção à verdade. É precisamente porque, nesse campo, o sujeito não sai de si quando está no registro da busca da verdade no registro da razão. E existem várias formas de fazer com que o sujeito não saia de si, mesmo na alegação habermasiana de que é necessário um processo intersubjetivo, pois esse espaço intersubjetivo ideal para uma tentativa de aproximação da verdade repete, repõe e reflete uma série de características normativas

associadas ao sujeito. Se toda esta tra(d)ição filosófica têm sua razão de ser não no risco

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