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Nesta primeira série de trechos, encontra-se partes da narrativa onde Julian of Norwich manifesta seu profundo desejo de experienciar a paixão de Cristo como se estivesse de fato naquela cena, e sofrer proporcionalmente a essa vivência, assim como descreve ter ocorrido com Maria Madalena e Maria mãe de Cristo, além de citar Santa Cecília como uma mártir-modelo que a inspirou a nutrir esse desejo.

No trecho a seguir, Maria Madalena é a primeira participante a ser mencionada por Julian, que inicia seu relato por dar a conhecer seu pedido a Deus de receber a graça divina de ver a Paixão Cristo e ser partícipe do seu padecimento.

Pareceu-me ter desejado estar lá naquela ocasião com Maria Madalena e com aqueles que eram amantes de Cristo, de modo que eu pudesse ter visto na carne a Paixão de Nosso senhor que ele sofreu por mim, para que eu pudesse ter sofrido com ele, assim como sofreram outros que o amavam (NORWICH, 2015, p. 3; tradução nossa).45

45 Texto original: “It seemed to me I wished that I had been there at that time with Mary Magdalene and

with those who were lovers of Christ, so that I might have seen in the flesh our Lord's Passion which he suffered for me, and so that I could have suffered with him as others did who loved him”.

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Porém, examinando atentamente o texto em que Julian exprime seu desejo de ter vivido a Paixão de Cristo, ela escolhe os participantes da narrativa. Em vez de tradicionalmente referir-se aos apóstolos ou outros participantes masculinos, Julian nomeia apenas Maria Madalena, e acrescenta a ela e aqueles que eram amantes de Cristo, uma representação impessoal e genérica destes atores sociais, conferindo-lhes distância e menor destaque. Na verdade, Hourihane (2017) comenta que na iconografia gótica presente no fim da idade média, mesma época de Julian, houve uma tendência na arte de incluir subordinados, com o maior nível de elaboração e detalhe, não só nas artes visuais, mas também na literatura, com o surgimento de vários gêneros textuais, como as hagiografias e os relatos de visões, como o texto de Julian.

Além disso, as palavras escolhidas para retratar a relação entre Cristo e seus seguidores denotam proximidade maternal e individual, pois os mesmos são retratados como amantes em vez de apenas “seguidores” ou “discípulos”, e, embora Julian deseje ter sofrido não mais que outros de seus fiéis, ela representa-se pessoalmente enquanto causa do sacrifício de Cristo. Ou seja, Julian está disposta a submeter-se à dor para vivenciar a Paixão do Cristo (na verdade, ela anseia fazê-lo), enquanto, por outro lado,

subverte os papéis tradicionais de gênero ao protagonizar Maria Madalena como

testemunha ocular da morte de Cristo e ao se colocar numa relação pessoal com Cristo, embora mulher, mesmo que ela seja aqui textualmente representada dentro de uma circunstância, em vez de um participante ativo.

Em seguida, Norwich volta sua atenção para Maria mãe de Jesus, como ator social também presente na circunstância do sacrifício Messiânico:

Porém, apesar de tamanha fé verdadeira, eu almejava uma visão dele na carne, para que eu pudesse conhecer melhor o sofrimento do corpo do nosso Senhor e Salvador, e também do padecimento de Nossa Senhora e de todos aqueles que realmente o amavam e acreditavam no seu sofrimento naquele instante e desde então, porque eu queria ser um deles e sofrer junto deles. (NORWICH, 2015, p. 3; tradução nossa)46

Nesse excerto, ao descrever a paixão de Cristo que deseja vivenciar, Julian foca em dois participantes igualmente nomeados por títulos: primeiramente Cristo e, logo em seguida, Nossa Senhora. Embora o protagonista deste episódio bíblico seja o Messias, assim como na narrativa de Julian, aqui a caracterização do sofrimento de ambos os torna quase iguais. O termo utilizado para caracterizar a dor da mãe de Cristo, fellow-suffering, sugere companheirismo. Hourihane (2017) sinaliza que a partir do século 12 Nossa Senhora materializa os sentimentos de devoção e misericórdia, como no caso da narrativa de Julian. Num tempo em que a morte aterrorizava, mas também estava onipresente nas representações artísticas, Maria simbolizava a esperança pela crença.

Desse modo, na narrativa de Julian sobre sofrer as dores do sacrifício messiânico, Santa Maria aparece numa posição elevada, pois nenhum outro personagem (nenhum

46 Texto original: “Yet despite all this true faith, I longed for a vision of him in the flesh, so that I might

have more knowledge of the bodily suffering of our Lord and Saviour, and of the fellow-suffering of our Lady, and of all those who truly loved him and who believed in his suffering at that time and since, for I wanted to be one of them and suffer with them”.

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homem, por exemplo) ocupa um papel tão fundamental em compartilhar os dores da morte de Cristo. Por isso mesmo, Julian voluntariamente se sujeita a experienciar tais dores, tendo em vista que, neste imaginário cristão, trata-se de uma purificação espiritual e um privilégio para uma mulher.

Na sequência, Julian volta-se para seu passado e nos conta sobre a influência de Santa Cecília sobre sua vida espiritual. Santa Cecília foi uma jovem que viveu no Império Romano cujo culto se popularizou a partir do século 5. Foi condenada à morte por decapitação por sua fé cristã, mas o executor não conseguiu concluir o feito mesmo após três tentativas, e permaneceu viva, sangrando até a morte após três dias. Cecília tornou- se, portanto, um modelo de persistência em meditação na morte de Cristo (WINDEATT, 2015).

Quanto ao terceiro [desejo], eu ouvi um homem da Santa igreja contar a história de Santa Cecília, relato a partir do qual eu entendi que ela sofreu três ferimentos de espada no pescoço, razão pela qual morreu. Comovida por isso, eu concebi um poderoso desejo, rezando a nosso Deus que me concedesse três feridas ao longo de minha vida, a saber: a ferida do arrependimento, a ferida da compaixão e a ferida do anseio por Deus. (NORWICH, 2015, p. 4; tradução nossa)47

Ao contar como conheceu a história de Santa Cecília e como foi influenciada por ouvi-la, Julian, não revela o nome de quem lhe contou, nomeando apenas a Santa. Julian tem uma mulher como inspiração para sua iniciação espiritual, que, porém, é marcada muitas vezes pela dor, como vemos pela repetição do termo wound (traduzido aqui como “ferida”). Embora a submissão esteja na cravada na descrição da figura de Santa Cecília como o sujeito que sofre os ferimentos e consequentemente, a morte (eventos descritos, respectivamente, pelos verbos “had” e “suffered”), o fato de Julian sentir-se tão comovida com o exemplo da mártir cristã a ponto de desenvolver o forte desejo de viver uma experiência análoga, confere a Santa Cecília um papel de protagonismo no trecho em questão, em oposição ao personagem masculino genérico retratado apenas como porta- voz de um relato e representante da instituição católica.

Julian então se apresenta como alguém capaz e desejoso de enunciar sua voz, em nome de Deus. Dessa forma, ela deixa claro que não apenas almeja receber as visões, mas também pode compartilhar sua experiência com outros:

Mas que Deus vos proíba de dizer que sou uma instrutora, porque não o quero dizer, nem nunca o quis, pois sou mulher, ignorante, fraca e frágil. […] Mas apenas porque sou mulher devo, portanto, crer que eu não deveria vos falar a respeito da bondade de Deus, quando eu de fato vi que é da Sua vontade que ela seja conhecida? (NORWICH, 2015, p. 10; tradução nossa)48

47 Texto original: “As for the third, I heard a man of Holy Church tell the story of Saint Cecilia, from which

account I understood that she had three wounds in the neck from a sword, through which she suffered death. Moved by this, I conceived a powerful longing, praying our Lord God that he would grant me three wounds in my lifetime: that is to say, the wound of contrition, the wound of compassion, and the wound of purposeful longing for God”.

48 Texto original: “But God forbid that you should say that I am a teacher, for I do not mean that, nor did I

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Os únicos participantes nesse trecho são Deus e a narradora em primeira pessoa, nenhum dos dois nomeados. A representação pessoal de Julian é feita de modo a atribuir, inicialmente, um lugar de silenciamento, quando ela se diz incapaz de instruir alguém por ser mulher, performando o gênero. Entretanto essa fala funciona como um argumento a ser em breve refutado, quando, logo em seguida é levantado o questionamento que subverte seus limites enquanto mulher pela indagação de Julian quanto a se, a partir da autorização da vontade divina, ela deve, de fato permanecer em silêncio. Além disso, essa posição de subversão é enfatizada pelo uso apenas de estruturas de voz ativa, através da qual Julian estabelece-se como voluntariamente atuante em vez de uma mera vítima de uma carga divina.

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