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Ao longo de toda a narrativa da Paixão de Cristo, conforme contada por Julian, nota-se um relato bem diferente do tradicional discurso religioso, por apresentar um caráter bastante seletivo. Primeiramente, os eventos descritos por Julian não seguem uma ordem linear, nem envolvem todos os acontecimentos elencados no conto bíblico; de fato, alguns são claramente omitidos, enquanto outros recebem maior riqueza de detalhes e destaque. As visões também são diferentes entre si, pois algumas são realmente mais visuais, enquanto outras se apresentam como revelações, algo semelhante a um entendimento súbito de inspiração divina.

Ademais, visto que o hábito de meditar na condição de Cristo semimorto na cruz era incentivado na época de Julian (século 14), especialmente para mulheres e iniciantes da religião católica (ou seja, a plebe), aparentemente, Norwich corrobora com o discurso hegemônico da instituição cristã. Entretanto, as discussões presentes em seu texto – as representações dos atores sociais nele elencados – desempenham uma forma de subversão ao gênero social.

Pode-se observar, por exemplo, que, embora Julian se descreva como “mulher, ignorante, fraca e frágil” (NORWICH, 2015), logo em seguida ela se ergue através de um questionamento em prol de ser digna de ter voz para comunicar suas experiências visionárias. Além disso, embora a Paixão de Cristo seja o foco central das visões da reclusa de Norwich, Maria recebe grande destaque, prevalecendo entre todos os outros participantes, sendo mencionada quatro vezes, dentre os nove trechos selecionados. Embora Cristo apresente Maria a Julian, e nem sempre Nossa Senhora seja representada ativamente, seu destaque é inescusável. A presença da mãe de Julian, por exemplo, é uma espécie de repetição do personagem de Maria enquanto mater dolorosa, que sofre enquanto assiste o filho moribundo.

Maria Madalena, mencionada duas vezes, aparece no início e no fim da narrativa de A vision showed to a devout woman, sendo a primeira participante feminina mencionada, como também a última, conferindo-lhe um destaque sugestivo. Madalena, figura controversa, tradicionalmente associada ao pecado, é lembrada por Julian por ser uma mulher privilegiada por ter estado ao lado de Cristo durante sua morte; posteriormente, Madalena aparece como exemplo para que Julian expresse sua revelação a respeito do pecado, de que, na verdade, ele pode glorificar um fiel, não sendo razão para vergonha. Essas formas de representação esculpidas nos atores sociais de Julian of Norwich sem dúvida exibem uma atuação performativa do gênero social, onde mulheres ocupam lugares para além das normas sociais hegemônicas permitidas pelo discurso

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religioso católico da época, embora, ao mesmo tempo, persistam características consoantes a esse poder através destes sujeitos.

Conclusão

Analisar a obra de Julian of Norwich é extremamente relevante a partir do ponto em que nos leva a refletir: quem eram as mulheres na idade média? Qual sua produção intelectual? Houve um renascimento entre as mulheres? Julian é uma evidência incontestável de que apesar de, conforme as condições históricas da época em que viveu, mulheres exerceram o gênero social para além dos limites das normas hegemônicas, além do nosso imaginário atual do que entendemos por “mulher medieval”.

Consequentemente, o estudo de A vision to a devout woman permite-nos entender a necessidade de maior investigação da produção literária de mulheres em eras mais antigas, anteriores à era moderna, anteriores à formação das primeiras teorias feministas. Afinal, se nos comprometemos com a importância do papel social das mulheres na atualidade, seria no mínimo injusto ignorar nossa história antes do século 18, a respeito de como fatores como gênero social, classe, religião, sexualidade, características étnicas se constituíram, se modificaram e evoluíram até formar as circunstâncias em que hoje nos encontramos. Em vez de simplesmente renegar o texto medieval como puramente discurso religioso, cabe a nós mergulhar na tessitura textual e nela descobrir as vozes das mulheres que abriram os caminhos para a liberdade pela qual hoje ainda persistimos em luta, e que, em nenhum período, deve ser silenciada.

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Capítulo

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Facebook e ativismo político: o caso da

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