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Nesta seção, dispomos os trechos onde Julian descreve suas visões (visualizações de cenas) e revelações (entendimentos súbitos a partir das visões), além de uma descrição sobre a circunstâncias de Julian enquanto ela tinha as visões. Tais trechos exibem Maria mãe de Cristo (predominantemente), a mãe de Julian e Maria Madalena. Inicialmente, Norwich vê Maria, ao receber o chamado para conceber Jesus:

Com isso, ele trouxe à tona nossa Senhora. Eu a via de maneira espiritual, mas em sua forma física, uma garota simples e humilde, jovem em anos, da forma que era quando concebeu. Deus também me revelou em parte a sabedoria e a verdade de sua alma, e nisso eu entendi a contemplação reverente com que ela contemplou nosso Deus, que é seu criador, admirando com grande reverência que ele estava disposto a nascer dela, que era uma simples criatura de sua própria autoria. Pois era sobre isso que ela se perguntava: que aquele que era seu criador estivesse disposto a nascer daquele que foi criado. E essa sabedoria e fé, reconhecendo a grandeza de seu criador e a pequenez de seu eu criado, fizeram com que ela dissesse humildemente ao anjo Gabriel: 'Eis-me aqui, a serva do Senhor'. Ao ver isso, eu realmente entendi que ela é maior em dignidade e plenitude da graça do que tudo o que Deus criou abaixo dela; pois nenhuma coisa criada está acima dela, exceto a abençoada humanidade de Cristo. (NORWICH, 2015, p.7; tradução nossa)49

Neste fragmento, a participante Maria mãe de Jesus é aludida impessoalmente como Nossa Senhora, seguida de várias referências pronominais (“ela”). A representação impessoal, além de provocar distanciamento, promove a imagem de santidade atribuída a entidades religiosas cujos nomes tradicionalmente, no discurso religioso, não se therefore believe that I should not tell you about the goodness of God, when I saw at the same time it is his will that this be known?”

49 Texto original: With this he brought to mind our Lady. I saw her in a spiritual manner but in her bodily

likeness, a simple and humble girl, young in years, in the form that she was when she conceived. God also revealed to me in part the wisdom and the truth of her soul, and in this I understood the reverent contemplation with which she beheld our God who is her maker, marvelling with great reverence that he was willing to be born of her who was a simple creature of his own making. For it was this that she wondered at: that he who was her creator was willing to be born of her who was created. And this wisdom and faith, recognizing the greatness of her maker and the littleness of her created self, caused her to say humbly to the angel Gabriel, 'Behold me here, the handmaid of the Lord.'* In seeing this I truly understood that she is greater in worthiness and fullness of grace than everything which God created below her; for no created thing is above her except the blessed humanity of Christ.

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menciona o nome. Tal apresentação, entretanto, é seguida por Julian caracterizando Maria conforme sua visão: uma mulher humilde, jovem, mas também sábia e reflexiva. Maria entende que o próprio criador surgirá a partir dela, subvertendo a ordem hegemônica criador versus criatura. Não obstante, logo em seguida, Julian declara expressamente a conformidade de Maria à condição de serva, por sujeitar-se tanto diante do sujeito nomeado Gabriel quanto do Cristo, que está acima de todos. Além disso, de acordo com a crença cristã, Deus incontestavelmente criou todas as coisas e, no trecho anterior, Julian traz à tona o fato de que Maria deu à luz a Deus. Esse processo simboliza Maria como a mãe das coisas recriadas, assim como o pai é o originador da criação; dessa forma, de modo que Maria simboliza reforma e renovação (FULTON, 2002), o que é bastante adequado para a defesa de uma perspectiva não tradicional de espiritualidade que Julian busca advogar em seu discurso.

Análogo à experiência de Maria, Norwich descreve sua mãe como ator social ativo na circunstância das visões de sua filha, e a observa sofrer, como vemos no trecho a seguir.

Essa revelação do padecimento de Cristo preencheu-me de dores, porque eu bem sabia que ele havia sofrido apenas uma vez, mas ele quis mostrar-me isso e tomar-me por completo com as memórias desse evento, conforme eu havia desejado. Minha mãe, que estava de pé entre outras pessoas e estava me observando, pôs sua mão em meus olhos para fechá-los, porque ela pensava que eu já estava morta, ou que eu havia acabado de morrer; e isso aumentou em muito meu sofrimento, porque apesar de todo meu sofrimento, eu não queria ser impedida de vê-lo, por causa do amor que eu tinha por ele. (NORWICH, 2015, p.15; tradução nossa) 50

Nesse trecho, Julian descreve-se pessoalmente envolvida com Cristo, pois, por sua vontade, deve sofrer uma angústia capaz de adoecer tanto o seu corpo a ponto de fazer-lhe parecer estar morta aos olhos de sua mãe, para que assim possa completar sua visão da paixão de Cristo. Observa-se, além disso, que a situação narrada por Julian nesse trecho é análoga ao relato do evangelista João, que retrata Jesus pouco antes de morrer sendo observado apenas por mulheres, incluindo sua mãe. No excerto acima, Julian confere certo destaque à sua mãe, participante em voz ativa, embora não-nomeado, o que difere do relato bíblico, onde Maria mãe de Cristo aparece como mera testemunha ocular da morte do filho enquanto a Mãe de Julian exerce gestos de ternura em relação à filha cujos olhos gentilmente fecha ao pensa-la morta. Esta por sua vez, sofre ao ver a tristeza da mãe, mas ansiava ainda mais não perder a oportunidade de concluir sua visão de Cristo. Julian subverte o discurso religioso tradicional ao estabelecer uma relação pessoal com ser divino, tanto por dizer que “ele quis mostrar-me isso” quanto no trecho “por causa do amor que eu tinha por ele”. Sem dúvida, não correspondia à performance do gênero feminino ter uma relação direta e pessoal com Deus conforme descrito por Julian.

50 Texto original: “This revelation of Christ's pains filled me full of pains, for I was well aware that he only

suffered once, but he wanted to show it to me and fill me with the recollection of it, as I had earlier wished. My mother, who was standing amongst other people and was watching me, held up her hand in front of my face to close my eyes, for she thought I was already dead, or else I had just died; and this greatly increased my sorrow, for despite all my sufferings I did not want to be hindered from seeing him, because of the love that I had for him.”

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Contudo, em meio à descrição das dores de Cristo que sofria na própria pele durante as visões, Julian concentra-se na relação entre mãe e filho e como a dor os unia, no excerto:

Então eu vi a compaixão de Nossa Senhora, Santa Maria, já que Cristo e ela estavam tão unidos em amor que a grandeza do amor dela causou seu tamanho sofrimento, porque da mesma forma que ela o amou mais do que qualquer outro, sua dor superou a de todos. (NORWICH, 2015, p.15, 16; tradução nossa)51

Neste excerto, Nossa Senhora performa o papel de mater dolorosa, ao sofrer tanto quanto o filho por vê-lo morrer. No imaginário medieval, essa circunstância enquadra Maria como um símbolo de empatia e humanização, o que popularizou sua atuação como intercessora perante Deus. De fato, a partir do século 7, celebrações sazonais dedicadas a Maria se estabeleceram no cotidiano da idade média ocidental. (FULTON, 2002) Entretanto, considerando o sofrimento como prova de purificação e santidade, Cristo e sua mãe sofrem igualmente e atuam como participantes iguais na circunstância de serem provados em sacrifício pela fé. No trecho “sua dor superou a de todos”, na verdade, Maria é exaltada sobre todos, independente de gênero, pela virtude do seu sofrimento.

Após ver Maria em condição humilde, depois em sofrimento ao lado do filho semimorto, Julian agora recebe de Jesus a visão de Maria em sua glória:

E com esta mesma expressão e alegria ele olhou abaixo à sua direita e me trouxe à mente onde Nossa Senhora esteve durante sua Paixão e disse: “Gostaria de vê-la?”, ao que eu respondi, “Sim, bom Senhor, obrigada, se esta for a sua vontade”. Eu havia orado frequentemente por isso, e esperava vê-la presente fisicamente, mas eu não a vi dessa forma. E com essas palavras Jesus mostrou-me uma visão espiritual dela. Porque antes eu a havia visto pequena e simples, então mostrou-a a mim elevada e nobre e gloriosa e aprazível a ele acima de todos as outras criaturas. E então ele deseja que isso se torne conhecido, de modo que todos os que os têm deleite nele possam tê-lo também por ela e no deleite que ele tem nela e ela nele. E com estas palavras que Jesus disse – ‘Gostaria de vê-la?’ – pareceu-me que eu havia tido o maior prazer que ele poderia ter me concedido numa visão espiritual dela. Porque o Senhor não me deu nenhuma outra revelação sobre qualquer outro indivíduo exceto Nossa Senhora Maria; e ele mostrou-a a mim três vezes: a primeira, quando ela foi concebida; a segunda, quando ela estava em sofrimento aos pés da cruz; a terceira foi como ela está agora, em deleite, honra e alegria. [...] e aprendi disso que cada alma contemplativa a quem é dada para procurar e buscar a Deus verá Maria e alcançará a Deus através de contemplação. (NORWICH, 2015, p. 19; tradução nossa)52

51 Texto original: “Here I saw part of the compassion of our Lady, Saint Mary, for Christ and she were so

united in love that the greatness of her love caused the greatness of her pain, for in so much as she loved him more than anyone else, her sufferings surpassed those of all others”.

52 Texto original: “And with this same expression and gladness he looked down on his right and brought to

my mind where our Lady stood during his Passion, and said, 'Would you like to see her?' And I answered and said, 'Yes, good Lord, thank you, if it be your will.' I prayed for this often, and I expected to have seen her present bodily, but I did not see her like that. And with those words Jesus showed me a spiritual vision of her. Just as before I had seen her small and simple, so now he showed her high, and noble, and glorious, and pleasing to him above all other created beings. And so he wishes it to be known that all those who delight in him should delight in her, and in the delight that he has in her and she in him. And in these words that Jesus said `Would you like to see her?'—it seemed to me that I had the greatest pleasure that he could

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Neste momento da visão de Julian, Maria encontra-se abaixo dele, porém à sua direita. Esta circunstância difere do relato bíblico, onde a ênfase é dada aos dois criminosos executados ao lado do Messias. Maria é descrita de modo distante, santo e impessoal em boa parte do texto, visto não ser nomeada nem titulada (exceto no fim do trecho em questão), sendo referida apenas pronominalmente. Além disso, Julian é apresentada a Maria por meio de Jesus, de modo que ele funciona como um participante intermediário entre a santa e a visionária. Ele também autoriza que a visão que Julian tem de Maria seja amplamente conhecida; de fato, denota prazer nisso, o que também se confirma no sentimento da devota em receber tais visões, o que fica claro pelo uso repetido da palavra delight (“deleite”). Maria é elevada sobre outros participantes da narrativa da Paixão de Cristo por ser a única que Julian pôde contemplar de perto e em diferentes momentos. Merece destaque o trecho “a primeira, quando ela foi concebida”, pois, embora Maria seja o referente do pronome, o participante em voz passiva do processo de ser concebida, na verdade ela concebeu o criador. Esse processo de passivação do sujeito constitui-se como assujeitamento do participante que, na verdade, dá à luz ao Messias, dando a entender que ela passou a ser Nossa Senhora ao constituir- se mãe de Cristo. Ela é elevada, porém, assujeitada.

Ao longo de suas visões, Julian tem revelações sobre a fé cristã, ou entendimentos de origem divina. Um dos assuntos centrais dessas revelações é sua concepção não- ortodoxa sobre o pecado:

Deus também revelou a mim que o pecado não é vergonha para o homem, mas a sua glória. Pois nessa revelação meu entendimento foi elevado aos céus; então, em verdade, vieram-me à mente Davi, Pedro e Paulo, Tomé da Índia e Madalena; como eles e seus pecados são conhecidos na Igreja na terra para sua glória. E não é vergonha que eles tenham pecado mais do que alegria nos céus, pois ali as marcas do pecado são transformadas em honras. (NORWICH, 2015, p.24, 25; tradução nossa)53

No trecho acima, presente nas últimas páginas de A vision to a devout woman, Julian discorre sobre o significado do pecado, ao qual atribui valor positivo e redentor. Para validar seu argumento, a narradora nomeia atores sociais que fazem parte do relato bíblico messiânico e que são lembrados por serem pecadores. Entretanto, Davi, Paulo, Pedro e Tomé são citados em pé de igualdade junto com Maria Madalena. O fato de os nomes de personagens masculinos serem mencionados primeiro funcionam como

have given me in the spiritual vision of her which he gave me. For our Lord gave me no revelation about any particular individual, except our Lady Saint Mary; and he showed her three times: the first was as she conceived, the second was as she was in her sorrows at the foot of the cross, and the third was as she is now, in delight, honour, and joy. […] and I learned from this that each contemplative soul to whom it is given to seek and look for God shall see Mary and pass on to God through contemplation”.

53 Texto original: “God also revealed to me that sin is no shame to man, but his glory. For in this revelation

my understanding was lifted up into heaven; and then there came truly to mind David, Peter and Paul, Thomas of India, and the Magdalene; how they and their sins are known in the Church on earth to their glory. And it is no shame to them that they have sinned, any more than it is in the bliss of heaven, for there the tokens of sin are turned into honours.”

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estratégia discursiva para legitimar o lugar de honra devida a Maria Madalena, conforme relatado na visão de Julian, embora essa participante não seja apenas pecadora, mas também mulher.

Tendo então considerado todos os fragmentos em que há presença de participantes femininas no texto curto de Julian of Norwich, apresentamos agora uma visão geral sobre as características encontradas quanto à construção do significado representacional delas.

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