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No terceiro e último nível, o discursivo, “as formas abstratas do nível narrativo são revestidas de termos que lhe dão concretude” (FIORIN, 2002, p. 41). É aqui que pensamos no texto como um objeto de significação. Aquilo que era abstrato no nível narrativo, torna-se concreto e revestido por temas e figuras. Textos figurativos têm um toque de realidade sobre aquilo que representam no mundo, criando imagens com seus seres, suas circunstâncias. Os textos temáticos explicam e fazem comentários sobre as coisas do mundo.

As figuras de um texto se concretizam sobre um tema, isso quer dizer que, de acordo com as temáticas identificadas, constroem-se as figuras a partir das quais o leitor entra em contato com o texto e retira dele suas concepções sobre qual tema é ali abordado. O nível discursivo, portanto, “interessa-se pelo ‘parecer do sentido’, que se apreende por meio das formas da linguagem, mais concretamente, dos discursos que o manifestam, tornando-o comunicável e partilhável, ainda que parcialmente” (BERTRAND, 2003, p. 11).

Como já citamos anteriormente, Voldemort apesar das diferenças, foi um personagem inspirado nos ideais de Hitler. Dessa maneira, enquanto temos um texto temático na obra de Ian Kershaw, a narrativa de Voldemort é figurativa, pois esta se propõe a criar uma imagem que embora represente a realidade, tem sua própria circunstância de acontecimentos. Já Hitler é um texto em que o autor comenta sobre fatos, relatando algo do mundo. Sendo assim, os dois temas principais de ambos os textos

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é a questão da intolerância associada aos ideais de eugenia e a busca incessante pelo poder, ainda que de formas e por motivos diferentes.

O que hoje é visto pela maioria das pessoas como um ato cruel, durante a Segunda Guerra Mundial era tido como necessário, como o genocídio de milhões de judeus em prol do bem da sociedade alemã, conforme era defendido pelo Nazismo e seus apoiadores. Como vimos, o antissemitismo ganha força ainda na metade da Primeira Guerra e Hitler associava-os às desgraças que vinham acontecendo à sociedade alemã, como afirma Kershaw (2010, p. 78): “era um ódio personalizado que culpava os judeus por todos os males que lhe ocorriam numa cidade que ele associava com sua miséria pessoal”. Assim, a união desse ódio pessoal com uma sociedade que clamava por soluções foi o que levou ao holocausto, condenando milhares à morte.

A concepção de limpeza étnica também move alguns personagens da saga Harry

Potter, como Salazar Slytherin e o próprio Voldemort. Ian Kershaw narra os fatos

colocando o expurgo dos judeus como uma consequência de eventos que inevitavelmente levariam a isso, tal como acontece na literatura em que Salazar Slytherin começa já na fundação de Hogwarts a falar sobre a necessidade da seletividade e, posteriormente, alguns concordam e como Voldemort tentam reproduzir suas ideias.

É claro que é difícil postular como pessoas, como as que estudamos aqui, tornaram-se assim, mas algo que é semelhante entre os dois e que não pode deixar de ser analisado é os problemas que tiveram durante a infância, já que a psicologia moderna defende que eventos acontecidos durante a fase infantil influenciam o desenvolvimento da personalidade de um sujeito15. Hitler passou sua infância num lar sem amor,

desenvolvendo problemas com um pai autoritário e ríspido; durante a adolescência viveu miseravelmente em lares e abrigos e, embora saibamos que muito disso se deve a sua própria falta de vontade de fazer algo para modificar aquela situação, ele associava essa questão aos judeus que roubavam do povo os melhores cargos de empregos, viviam bem melhor que os próprios “donos” da terra natal. Voldemort cresceu em um orfanato até os 11 anos, que é quando Dumbledore vai buscá-lo para estudar na escola. O nascimento de Voldemort foi fruto de uma relação forçada, já que o seu pai não amava verdadeiramente sua mãe. Ele não tinha desenvolvido nenhuma relação de amizade no orfanato e mais tarde durante a adolescência quando descobre mais sobre seu passado, fica totalmente enfurecido com o fato do pai ser trouxa e ainda por cima ter abandonado sua mãe, uma bruxa, tornando ainda mais revoltante para ele elevando-o a alimentar cada vez mais sua raiva por trouxas.

Outra figuratividade pertencente a esse tema é a questão de uma espécie de hierarquia feita que não distingue os povos apenas em judeus e não-judeus ou em bruxos e trouxas, mas dentro dessas oposições existem subníveis que dependem da ascendência de cada pessoa. A necessidade de que se houvesse essa distinção é um símbolo muito forte da intolerância e racismo presente nos dois textos.

O holocausto alemão começou com a distinção de raça, depois veio a emissão de decretos que vetavam o direito dos judeus, eles não podiam trabalhar, ir à escola ou ao

15 A teoria Vygotskyana postula que o aprendizado se consolida socialmente, ou seja, o contato do

indivíduo com o meio faz com que a criança aprenda de maneira ativa. Esse contato com o meio na fase infantil molda os aspectos que regem o comportamento do sujeito.

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médico, seguidos dos assassinatos em massa. “O sofrimento humano das vítimas era incalculável. Espancamentos e maus tratos bestiais, até de mulheres, crianças e idosos, foram comuns” (KERSHAW, 2010, p. 537). Voldemort criou um programa semelhante intitulado Comissão de registro dos nascidos trouxas, que consistia em um interrogatório que culminava na morte de bruxos nascidos trouxas. Em as Relíquias da Morte, Dolores Umbridge, que é funcionária do governo, interroga Mary Cattermole, uma bruxa nascida trouxa:

- Pode, por favor, nos dizer de qual bruxa ou bruxo você tirou essa varinha? - T-tirei? – soluçou a sra. Cattermole. - Eu não t-tirei de ninguém. C-comprei quando tinha onze anos de idade. Ela... ela.. ela me escolheu. [...]

- Não. – replicou Umbridge - Não, creio que não, Sra. Cattermole. Varinhas apenas escolhem bruxas ou bruxos. Você não é uma bruxa (ROWLING, 2007, p. 207).

Isso mostra que por ter nascido de pais trouxas, eles não a consideravam bruxa da mesma forma que os antissemitas não consideravam judeus seres humanos. Os campos de concentração eram lugares que exalavam medo e para onde os judeus eram enviados, no mundo de Harry Potter, os sangues ruins eram torturados com dementadores16. Sentimos de forma similar o desespero e a angústia vivida por aqueles

que não correspondiam aos ideais em ambos os textos.

Assim que Voldemort assumiu o controle do Ministério da Magia, ele criou um grande monumento no centro que consistia em uma estátua em que um bruxo e uma bruxa se sentam sobre corpos nus de trouxas. Isso tem um aspecto semelhante com o que aconteceu no holocausto, símbolos dessas ações.

E como não poderíamos deixar de falar, outro tema que marca os dois textos é a busca pelo poder. Tanto a personalidade histórica quanto o personagem literário desenvolveram habilidades persuasivas durante suas vidas que foram cruciais para que atingissem seus objetivos. Dumbledore, no livro Relíquias da Morte, em um diálogo com Harry, afirma que o poder geralmente é destinado para aqueles que nunca quiseram. Com isso, a autora tem como objetivo mostrar os malefícios dessa busca incessante e nos apresentar dois grandes polos que seria Voldemort, o vilão, e Harry, o herói, que nunca quis o poder. Voldemort e Hitler eram movidos pelos desejos pessoais, Hitler, mais do que aquele, tentava convencer as pessoas de todos os bons planos que tinha para Alemanha, mas pudemos perceber que sempre tiveram suas convicções pessoais envolvidas no meio disso. E como herdeiro de Salazar Slytherin, Voldemort acreditava que tinha o direito de governar e ter o poder teoricamente a ele destinado.

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