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O mito da criação do mundo.

I II DEUS E O MUNDO (TEOLOGIA E COSMOLOGIA)

6. O mito da criação do mundo.

a) O mundo é gerado. Em tôm o do Céu íntegro ou

m u n d o ... deve considerar-se... se existiu sempre, sem ne­ nhum comêço de geração, ou se foi gerado, começando por algum princípio. Foi gerado; uma vez que se pode ver e tocar e tem corpo; e as cousas dêste gênero são sensíveis: as cousas sensíveis. . . já se demonstrou que geram e são geradas (Timeu, V, 28).

[A geração ou criação do cosmos pareceria significar um início no tem ­ po e não um a existência ab aeterno: a menos que se considere a própria criação como processo eterno. Isto parece sugerido pelo Timeu, 42 e, onde se afirm a que o criador, “ ao ordenar tôdas estas cousas, permanecia, de acôrdo com a sua natureza, no seu próprio estado”. Proclo (in Tim., 88 c) comentava por isso: “se o Demiurgo é sem pre do mesmo modo, não pode admitir-se que ora crie, ora deixe de criar; e, se cria sempre, deve ser sem­ pre tam bém o criado”. Assim já interpretavam alguns discípulos diretos de P latão (Xenócrates, Espeusipo, Crantor), dizendo que o m ito da criação, no Tim eu é sòmente um meio de exposição, que apresenta sob um a form a de sucessão cronológica, a dependência lógica do cosmos de um a causa inteligente. “Fala-se da geração do mundo, de modo análogo ao dos geó­ m etras que traçam as figuras, não compreendendo que elas tenham jam ais nascimento, m as por expediente didascálico, para que os estudantes enten­ dam melhor, vendo quase a geração da figura” . (Aristóteles, De coelo, I, 10, 280). Aristóteles objeta que, fazendo criar a ordem da desordem, é necessário colocar estas separadas no tempo, “ enquanto que nas figuras geométricas não há nenhum a separação de tem po” (ibiã.). Mas, se Platão apresenta o contraste entre desordem e ordem no Timeu como sucessão de fases, e no Político (268 e ss.) como periódico alternar-se de estados, em compensação nas Leis (X, 896) apresenta-o como coexistência e luta eterna de duas almas cósmicas, a boa, princípio da ordem, e a má, prin­ cípio da desordem. Com isso, a criação da ordem apareceria como pro­ cesso eterno, segundo a interpretação acolhida pelos neoplatônicos, e mo­ dernamente, por vários historiadores].

b) A razão da criação: do caos à ordem — a animação

do mundo. Explicávamos a causa pela qual o Criador criou

a geração e êste Universo. Êle era bom, e a inveja nunca nasce de um ser b o m .. . Desejando que tôdas as cousas fos­ sem boas, e, na medida do possível, nenhum a que fôsse má, tomando o que não era visível, que não permanecia em re­ pouso, mas que se movia irregular e desordenadamente, da desordem reduziu-o à ordem . . . julgando que êste era em tudo melhor do que aquêle. . . E depois que, raciocinando no

seu coração, achou que nenhum a das obras visíveis, privadas de in telig ên cia ... nunca poderiam chegar a ser mais belas do que as que têm inteligência, e que a inteligência não pode habitar em qualquer parte, separada da alma, por estas ra­ zões, formando uma alma dentro de um corpo, fabricou o Universo, para cumprir a obra mais bela e melhor possível ( Tim., VI, 2 9 -3 0 )... E, colocando a alm a no meio, estendeu-a por tôdas as partes do mesmo, e com ela envolveu-o comple­ tamente . . . E, assim criado, o corpo do Céu é visível e a alma, invisível, porém, sendo partícipe de razão e harmonia, ela é, entre tôdas as cousas geradas, a melhor obra do me­ lhor dos sêres inteligíveis eternos (VIII-IX, 34 e 37).

c) Os elementos do corpo do mundo. O que é gerado deve ser corpóreo, visível e tan gível. . . Por isso, dispondo-se Deus a formar o Universo, fê-lo de terra e de fogo. Mas, somente duas cousas não podem ser combinadas sem uma terceira .. e os sólidos não se conciliam com um só meio, mas com dois cada vez. E por isso Deus, pondo água e ar no meio do fogo e da terra, e dispondo-os proporcionalmen­ t e . . . , dêstes corpos, em número de quatro, foi gerado o mundo, de maneira que por meio da proporção está de acor­ do consigo mesmo: e por isso teve amizade interior, de modo que, ligado em si consigo mesmo, é impossível que qualquer outro, que não seja quem o ligou, consiga separá­ -lo {Tim., 31, 32).

Teoria dos elementos: sua constituição e forma geométrica. É evidente a todo homem que fogo, água, te rra e a r são corpos. E tôda espécie de corpo deve te r profundidade, e tôda profundidade deve te r superfícies pla­ nas e um a superfície plana e retilínea é form ada por triângulos. . . Dos triângulos escolhidos por nós nascem as quatro espécies de corpos: três de um, daquele que tem os lados desiguais, e a q uarta unicamente daquele que tem os lados ig u a is... E à te rra atribuím os form a cúbica, visto ser a m ais imóvel das quatro espécies de corpo; e a mais pastosa ta m b é m ... e a menos móvel das que restam é a água; e a mais móvel o fogo, e a que se encontra entre os dois, o ar. Assim, o corpo m enor corresponde ao fogo; o m aior à água e o interm édio ao ar. Além disso, ao fogo corresponde a form a mais aguda; ao ar, a segunda em agudez, e à terceira a á g u a ... Por conseguinte... a form a sólida da pirâm ide (te tra e d ro )... é elemento e se­ m ente do fogo; a segunda por nascim ento (octaedro) do a r e a terceira (icosaedro) da água (Timeu, XX-XXI, 53-6).

[No Epígnomis junta-se a êstes quatro elementos o éter, a que ó atri­

buída a figura do dodecaedro], '

d) Forma e m ovim ento do corpo do mundo. Êle deu

forma muito conveniente à sua n a tu r e z a .. . Por isso arre­ dondou-o em forma de esfera, que tem o centro igualmente distante dos extremos de cada parte, dando-lhe, entre as figuras, a mais perfeita e semelhante a si m e s m a .. . E foi gerado com m uita arte, de modo que êle obtém a sua n u ­ trição da sua própria corrupção. . . pois o Criador pensou que o mundo seria melhor bastando-se a si mesmo do que se tivesse necessidade de outras cou sas. . . Pelo que, fazen­ do-o girar de um a mesma forma e em um mesmo espaço, em tôrno de si mesmo, o dotou de rotação circular, privan­ do-o de tôdas as outras espécies de movimentos e de seus deslocamentos (Tim., VII, 33-4).

O movimento e a exclusão do vácuo. Pois que o céu teve com preendi­ dos em si todos os gêneros (elem entos), sendo êle circular e naturalm ente desejoso de recolher-se em si mesmo, estreitou-se e não deixou entre êles nenhum espaço v az io ... A constrição conseqüente à pressão lança os pe­ quenos corpos por entre os intervalos dos grandes. E os pequenos, lança­ dos entre os grandes, separam-nos; e êstes, por sua vez, comprimem aquêles; por isso todos os corpos são levados para cim a e p ara baixo até os seus próprios lugares; pois cada um dêsses corpos m uda de lugar ao m udar de tam anho. E, desta m aneira, perseverando perpètuam ente a geração de desigualdade, constitui a causa do perpétuo movimento dos corpos (Timeu, X X III, 58).

A parte exterior do Céu: a esfera hiperuraniana, sede das almas bem ­ -aventuradas (Em píreo). As almas cham adas im ortais, quando alcançam o cimo do Céu, prosseguindo na sua parte exterior, firmando-se sôbre o dorso do Céu e permanecendo firm es são levadas pela rotação (celeste), em m o­ vimento circular e vêem tudo o que se acha além do Céu. E nenhum dos poetas terrenos cantou a região supraceleste, nem poderá nunca fazê-lo dignamente (Fedro, 247 c; cfr. Repúbl., 514 ss. e 614 e ss., e Fédon, 107 e ss.).

O baixo e o alto — leve e pesado. Se alguém considerar o pesado e o leve comparando-se com os chamados baixo e alto, êstes aparecer-lhe-ão com m aior clareza. Certamente não é justo pensar que haja dois lugares semelhantes que dividem em dois o u n iv e rso ... um ab aix o ... outro ac im a ... sendo todo o Céu esférico ... Não obstante, deve p e n s a r... que a tendência que tem cada corpo, para com o seu semelhante, faça transform ar em pesa­ do o corpo que se transporta, e embaixo o lugar p a ra o qual se move, e faça contrários os contrários (Tim., XXVI, 62-63).

.ás duas fases da Astronomia platônica: 1) o sistema geocêntrico: a Terra esférica suspensa no centro. Se a T erra redonda está colocada no centro do Céu, não tem necessidade de ar nem de outra fôrça coerciva para não cair; basta, porém, para sustentá-la a igualdade do Céu em tôdas as suas partes, e o equilíbrio da própria Terra, pois um a cousa equilibrada, colocada no meio de outra absolutam ente igual, não terá razão p ara in­ clinar-se mais ou menos para qualquer lado, m as, achando-se em condições de igualdade, perm anecerá sem inclinação (Fédon, 108),

[Com a esfericidade da T erra no centro do cosmos está relacionada a relatividade do alto e do baixo (cfr. acima) e a aceitação do conceito dos antípodas, adm itido aqui, em Féáon, 109, e aíirm ado em Timeu, 63 a. Mas pensa Platão ser a T erra fixa ou girante em tôrno de um eixo? Em Repúbl., X, 616, apresenta-a atravessada pelo eixo adam antino do cosmos em tôrno do qual giram os corpos celestes; e em Tim., 40 c, diz que a Terra se envolve em tôrno dêste “eixo estendido através de todo o Universo” mas êste “ envolver-se” significa “circular” ou “ ro d ar”? Aristóteles, De coelo 293 b, compreendeu-o no segundo sentido; m as os historiadores da Astrono­ m ia crêem que êle errou].

2. O sistema filolaico ão fogo central. Zeus convocou todos os Deuses na mais digna das suas sedes, que achando-se no centro de todo o cosmos é observatório de tôdas as cousas que tiveram nascim ento (Critias, 121 c).

[Que por sede mais digna no centro deve compreender-se o fogo central e não a Terra, segundo os testem unhos seguintes]:

Os pitagóricos dizem que no centro se acha o fogo, e que a terra, sendo um dos astros movendo-se em círculo em tôrno do centro, produz o dia e a n o ite. .. Também a m uitos outros (platônicos) parece que não deve a tri­ buir-se à T erra a posição c e n tra l... porque crêem que o lugar mais digno deve pertencer ao elemento mais digno, e que o fogo é mais digno do que a Terra, e é mais digno do que as partes interm ediárias, e são fins a peri­ feria e o centro (Aristóteles, De coelo, 293).

Teofrasto conta que Platão, já velho, se arrependia muito de te r colo­ cado a T erra no centro do Universo em lugar não conveniente a ela (Plu­ tarco, Quaest, plat., V III, 2; Numa, 11).

[Com estas informações concorda o fato de que em Leis, VII, 822 a, Platão repudia como ím pia a idéia de que Sol, Lua e estréias possam ser planetas ( = errantes por m uitas órbitas), afirm ando que cada um dêles percorre um só caminho, em bora pareça que se movam por m uitos, e o que parece mais lento (Saturno), é, em realidade, o mais rápido, e vice-versa; e que, como pôs em relêvo Schiaparelli, resulta somente atribuindo o movi­ mento diurno à Terra. Mas, compreende-se movimento em tôrno do fogo central, não em redor do Sol, como afirm a, não obstante, algum historiador, atribuindo a Platão o heliocentrismo].

e) O tempo, imitação da eternidade e a sua medida.

Então, a natureza animal (o modêlo ideal, animado, do Uni­ verso) era eterna; mas não podia ser que esta cousa se adaptasse perfeitamente ao que é gerado; e (Deus) pensa fazer um móvel simulacro da eternidade. . . , aquilo que nós chamamos de tempo. Pois dias, noites, meses e anos não existiam antes que fôsse gerado o C éu. . . Está feito, o Sol, e também a Lua, e cinco outros astros que se chamam pla- nêtas, para a custódia e distinção dos números do tem po. . . Mas para que houvesse alguma medida clara da lentidão e da velocidade... Deus acendeu uma luz no segundo dos

círculos que engalanam a Terra, o qual se chama Sol (Tim

X-XI, 37-39). '

f) A geração das espécies mortais. Depois que foram

gerados todos aquêles Deuses que giram ostensivamente pe­ lo C é u .. . disse-lhes assim o Gerador do Universo: ó Deuses, filhos dos D e u se s!.. . , faltam ainda para gerar três espécies de mortais (terrestres, aquáticos e v o lá teis): não se geran­ do, o Céu seria im perfeito. . . , mas gerando-os e animando-os eu, êles se igualariam aos Deuses. Então, para que sejam m ortais. . . cuidai, segundo a vossa natureza, de fazer os animais e imitai a minha virtude. . . E os filhos, apenas ouviram a ordem de seu pai, já o obedeciam {Timeu, XII, XV, 41-42).

g) A necessidade e o movim ento desordenado: a mar

téria como causa concom itante fren te a Deus. As cousas

que foram ditas até aqui esclareceram .. . o que foi realiza­ do pela Inteligência; mas convém juntar aquilo que foi feito pela Necessidade: pois a geração dêste mundo é mista, ten­ do sido gerado êste pelo acôrdo de Necessidade e de Inteli­

g ê n c ia ... E se alguém desejar explicar como foi verdadei­

ramente gerado o mundo, deve misturar (em sua explica­ ção), também, esta espécie da causa mutável, que traz em sua natureza. . . E que pensaremos do seu poder? E da sua natureza? Esta, principalmente, devemos considerá-la co­ mo o receptáculo e quase nutriz daquilo que se gera. . . É, por sua natureza, como matéria plasmável, que jaz por bai­ xo de tudo, e movida e formada por tudo o que nela se in­ troduz toma, ora um a forma, ora aparece em outra. As cousas que entram e saem são imitações dos entes eter­ nos. . . E, por isso, esta natureza, que deve acolher em seu seio todos os gêneros de fora, deve estar privada de tôda a fo r m a .. . Contudo, à mãe ou receptáculo de tôdas as cousas geradas, que se vêem e se sentem plenamente, não chame­ mos de terra, nem fogo, nem água nem nenhum a daquelas cousas que são suas fatôras ou suas feituras, mas, se bem o dizemos, uma espécie invisível e amorfa que recebe qual­ quer conteúdo (Timeu, XVII-XVIII, 47-49).

[Muito se discutiu o problem a da identificação da m atéria platônica com o espaço: veja-se Fraccaroli, Introd. ao Timeu, cap. I II — Rivaud,

Le probl. ãu devenir et la notion de la matière dans la philos. grecque e B âum ker, Das Problem. d. Materie in d. gr. Phil. — Em lugar da m atéria, considerada fonte e causa da desordem e do mal no Timeu, nas Leis, 896, apresenta-se um a alm a cósmica malvada contra a boa, identificada com Deus].

O m ito das revoluções periódicas do Universo: o subtrair-se da matéria ao impulso divino e as renovações da soberania divina sôbre o mundo. As vêzes, Deus mesmo ajuda a governar êste m undo no seu movimento e a fazê-lo girar, outras vêzes, deixa-o abandonado ao seu próprio govêrno, quando os períodos do tempo conveniente (o grande ano) alcançaram a sua m edida: então êste (o m undo), por seu impulso, gira em sentido contrário pois é vivente e está dotado de inteligência por Aquêle que o construiu desde o p rin c íp io ... É preciso cre r que então se produzem grandíssim as m utações para nós, seus h a b ita n te s... Depois sucedem, por necessidade, enorm es destruições de outros animais e m uito pouco resta da espécie hu­ m a n a ... Concomitante com a revolução do Universo, contrária à que se acha estabelecida a g o ra ... todo ser m o rta l... transformando-se, por sua vez, no seu contrário, transform a-se em jovem e d elicad o ...; e os c o rp o s... to r­ nando-se cada dia e cada noite m enores, reduzem-se novamente à natureza do pequeno recém-nascido, a êle semelhantes n a alm a e no corpo, e con­ sumindo-se totalm ente, daí em diante, desaparecem por completo (Político, XIII-XIV, 269-270).

A conquista humana das artes e do progresso depois das revoluções cí­ clicas. Abandonados pela providência do num e que os possuía e os regia, enquanto a m aior p arte dos animais, todos os que eram de índole feroz, recuperavam a sua natureza selvática, os homens, transform ados em débeis e sem proteção, eram despedaçados por êles, e além disso ficavam sem meios e sem artes nos prim eiros tempos, tendo desaparecido o alimento espontâneo, nem sabendo dêle prover-se, pois até então não se viram acossados por nenhum a necessidade. Por todos êsses motivos acharam-se em grandes dificuldades. Por isso, as cousas, que um a vez se chamavam dons dos Deuses, foram-lhes dadas depois po r via do necessário ensino e exercício: o fogo por Prometeu, as artes por Hefestos e por sua colabora­ dora (Atena), sementes e plantas por outros. E tudo quanto contribui para a vida hum ana nasceu daqui, depois que, como já se disse, a providência divina abandonou os homens sendo-lhes necessário conquistar direção p ró ­ pria e cuidado da sua existência (Político, XVI, 274).