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Por que focar o processo de recepção e acolhimento?

Sumário

1.4 Por que focar o processo de recepção e acolhimento?

É fato que o bebê humano nasce imaturo e incompleto, dependendo do outro de sua espécie para sobreviver e se constituir como pessoa (Rossetti-Ferreira, 2006). Marin (2011, p.14) afirma, inclusive, que “o homem se diferencia do animal por e graças à sua vulnerabilidade”. Em outras palavras, a autora diz que o humano precisa de outro humano para “se tornar gente, para sobreviver e se sentir importante, amado, com um lugar no mundo” (p. 14).

Com inspiração psicanalítica, a Teoria do Apego, por volta das décadas de 1960 e 70, propõe que, pelo menos nos primeiros anos de vida, esse outro social teria de ser preferencialmente a mãe. E que, a perda, ou a separação, de sua mãe traria, necessariamente, danos desastrosos ao desenvolvimento da criança (Bowlby, 1990; 1997).

Esta afirmação trouxe, e ainda traz, forte impacto sobre a forma de conceber o papel social das instituições coletivas de cuidado e educação de crianças, sobretudo dos bebês e das pequenas, relegando-os à ilegitimidade. Se, por um lado, havia na época, e há também

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atualmente, o desejo e/ou a necessidade da mulher trabalhar fora de casa, ou da criança ser afastada temporariamente do convívio familiar, do outro havia, e há, a preocupação com as consequências para a criança da separação entre mãe-criança e de sua permanência em um ambiente de desenvolvimento diferente do familiar.

No entanto, Rossetti-Ferreira e Amaral (2010), com base em vários outros estudos, trazem as seguintes questões: Esse “outro” fundamental nos primeiros anos de vida teria de ser necessariamente a mãe? A família, especialmente a nuclear, é o único ambiente favorável ao desenvolvimento infantil? As autoras argumentam que relatos históricos mostram que a família nuclear e, principalmente, o cuidado exclusivo da criança pela mãe são relativamente recentes e não difundidos no mundo. A família nuclear, surgida com a revolução industrial, e as transformações sociais e políticas do século XVIII, consolidaram gradualmente o papel da mãe como principal responsável pelo cuidado e pela educação das crianças. Mais tarde, teorias médicas e psicológicas enfatizaram esse papel, de diferentes maneiras, entre elas, a Teoria do Apego.

Além disso, variadas pesquisas surgiram criticando e questionando os estudos realizados sobre apego, bem como sobre as consequências da separação mãe-criança. As consequências negativas no desenvolvimento das crianças mostraram-se também relacionadas às péssimas condições que as instituições apresentavam, caracterizadas pela total ausência de estímulos4, não se limitando à separação da mãe em si. Crianças que frequentavam, ou adultos que frequentaram quando crianças, instituições de boa qualidade, com número adequado de cuidadores adultos estáveis por criança, não demonstraram, em sua maioria, prejuízos no desenvolvimento (Rossetti-Ferreira, 1984; Rutter, 1995; Fernández, Alvarez e Bravo, 2003).

Mas, o que essas questões têm a ver com o processo de recepção e acolhida de crianças?

Pode-se afirmar que, apesar de todas as contradições existentes, a Teoria do Apego contribuiu, impulsionou e fomentou, e ainda contribui, impulsiona e fomenta, discussões e elaborações sobre as condições adequadas ao cuidado e à educação coletiva de crianças. A formulação de condições mínimas apropriadas ao desenvolvimento infantil ganhou grande relevância social, a partir dos apontamentos elaborados com essa teoria (Rossetti-Ferreira, 1984).

A educação infantil em muito evoluiu nessa discussão a fim de minimizar o sofrimento que, muitas vezes, é causado pela separação diária entre mãe-criança. Um grande

4 Número de adultos insuficientes, quase ausência de brinquedos, paredes sem cores, alimentação inadequada,

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número de pesquisas e literatura foi produzido, sobretudo, no que diz respeito ao processo de recepção e acolhimento das crianças que estão chegando à creche, à escola, ou mudando de turma.

Rossetti-Ferreira, Amorim e Vitoria (1997) partem, inclusive, da concepção de que o acolhimento é o princípio de tudo. Afirmam que a vivência desse momento influenciará a construção de novas relações afetivas, bem como a manutenção dos vínculos afetivos anteriormente estabelecidos (com familiares, por exemplo), como também é enfatizado por Mantovani e Terzi (1998).

Partindo desta concepção, na educação infantil, a família foi incluída no processo de recepção e acolhimento, assumindo papel fundamental, com o objetivo de possibilitar que a criança enfrente e se familiarize com o ambiente estranho acompanhada de alguém em quem confie e se sinta segura (Vitória & Rossetti-Ferreira, 1993; Rossetti-Ferreira, Amorim & Vitoria, 1997; Rossetti-Ferreira, Ramon & Silva, 2002). E na impossibilidade de participação de, pelo menos, um dos cuidadores da criança, Vitória e Rossetti-Ferreira (1993) recomendam que se ela tiver um irmão (ou irmã) mais velho, na mesma creche/escola, este a acompanhe nesse processo inicial. As pesquisadoras apontam, ainda, que, se isso não for possível, a criança poderá levar consigo algum objeto que lhe seja significativo, “querido”, ou seja, um paninho, uma boneca, uma blusa com o cheiro da mãe, entre muitas outras possibilidades.

Também passou a receber atenção especial a relação entre pares e a organização dos espaços, com a finalidade de favorecer o desenvolvimento e a exploração do ambiente, além de promover o relacionamento entre as crianças. Paralelamente, a construção de um projeto político-pedagógico da instituição, que oriente o trabalho a ser realizado, e a formação continuada dos profissionais, tornaram-se pontos estruturantes e viabilizadores de qualidade nesse processo (Vitória & Rossetti-Ferreira, 1993; Rossetti-Ferreira, Amorim & Vitoria, 1997; Rossetti-Ferreira, Ramon & Silva, 2002).

Ainda assim, muitas vezes, o processo de decisão que leva a criança a ser inserida na creche/educação infantil não é tranquilo para os adultos responsáveis. Há sentimentos, significados e concepções bastante contraditórios envolvidos nessa decisão, os quais acabam influenciando a forma como a família e a criança lidam com esse momento inicial de separação (Amorim, Eltink, Vitoria, Almeida, & Rossetti-Ferreira, 2004). Nessa direção, sugere-se que, no primeiro contato da família com a creche ou escola (anterior à inserção da criança), esta deve garantir que a família seja bem atendida, receba informações, conheça a educadora que ficará com sua criança, entre outras medidas. Ao receber essa atenção, a família poderá se sentir mais tranquila, o que contribuirá para que a criança também se sinta

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menos insegura em seus primeiros dias na creche/escola de educação infantil (Vitoria & Rossetti-Ferreira, 1993).

Em países como França, Israel, Itália e nos países escandinavos, o processo de recepção e acolhimento de crianças em creches e escolas de educação infantil é tratado com muita seriedade (Vitória & Rossetti-Ferreira, 1993). Há décadas, inúmeros estudos, nacionais e internacionais, mostram a importância desse processo na educação, bem como sobre como conduzi-lo. Embora, no Brasil, ainda hoje, observe-se facilmente que existem creches/escolas que (des)cuidam ou dedicam-se com intensidades diferentes a esse processo.

No que se refere às instituições de acolhimento, a questão é alarmante. Diferentemente da creche ou escola de educação infantil, em que a separação cotidiana dos pais, ou cuidadores, acontece por decisão dos adultos responsáveis5, além de restringir-se apenas a algumas horas diárias, quando uma criança é acolhida em uma instituição, como medida de proteção, a separação se dá tanto de dia como de noite e por tempo indeterminado. E isso ocorre, quase sempre, sem o conhecimento prévio e contra a vontade dos pais e da criança.

Como muito bem descreve França (2007), algumas vezes, a criança é tratada como “coisa” a ser levada daqui para ali, em alguns casos, com menos cuidados do que se teria ao transportar um móvel. Pode-se afirmar que, embora a medida de acolhimento deva ser aplicada, como último recurso, em casos em que há a vitimização, com certa frequência, a forma como a criança é retirada do contexto familiar e/ou de origem, bem como é recebida e acolhida na instituição, acaba se configurando como nova violência, causando a sua revitimização.

Assim, a partir do conhecimento dessa realidade e cientes de que cuidar adequadamente do processo de recepção e acolhimento “[...] tem sido considerado extremamente importante para garantir um atendimento de qualidade, capaz de propiciar boas condições para um desenvolvimento integral e sadio das crianças [...]” (Vitória & Rossetti- Ferreira, 1993, p. 56), o interesse pela presente pesquisa surgiu.

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