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O processo de tomada de decisão a respeito do acolhimento institucional da criança: “não tem mais nada para fazer”

Sumário

Fluxograma 1 – Escolaridade dos participantes.

6.2 O processo de tomada de decisão a respeito do acolhimento institucional da criança: “não tem mais nada para fazer”

Este tópico servirá para trazer à discussão alguns indícios relevantes sobre o assunto. Não se tem o objetivo de investigar em profundidade o tema abordado, se considerada a necessidade de delimitar a abrangência da pesquisa e, sobretudo, por não contarmos com a participação de todos os envolvidos no processo investigado, ou seja, a tomada de decisão a respeito do acolhimento institucional da criança.

Antes da promulgação da Lei 12.010/2009 (Brasil, 2009a), o afastamento da criança ou do adolescente do convívio familiar era, quase sempre, decidido e executado pelo Conselho Tutelar24. Após a referida lei, a função passou a ser de competência exclusiva da autoridade judiciária (§ 2o, art. 101), exceto em casos emergenciais, o que fez com que muitos outros atores fossem convocados a participar dessa decisão, a fim de subsidiar a decisão do magistrado.

Assim, de acordo com as Orientações Técnicas (Brasil, 2009e), com exceção das situações de caráter emergencial e de urgência, o afastamento da criança ou do adolescente, da sua família de origem, deve estar embasado em recomendação técnica, por meio de um estudo diagnóstico, “preferencialmente realizado por equipe interdisciplinar de instituição pública, ou, na sua falta, de outra instituição que detenha equipe técnica qualificada” (p.10).

24 De acordo com o Levantamento Nacional das Crianças e Adolescentes em Serviços de Acolhimento (Brasil,

2011), cujos dados foram coletados nos anos de 2009 e 2010, 52,9% dos acolhimentos haviam sido realizados pelos Conselhos Tutelares e 31,9% pelo Poder Judiciário; os demais tiveram outras formas de encaminhamento.

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Tal estudo deve ser realizado em articulação com a Justiça da Infância e Juventude e o Ministério Público, além de incluir todas as pessoas envolvidas, ou seja, aqueles que acompanham (ou deveriam acompanhar) a família nos mais variados setores que compõem o Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente25, vizinhos, amigos e, principalmente, a própria família e a criança.

Todavia, como já especificado na Metodologia (Item 5), apenas conselheiros tutelares e profissionais das instituições de acolhimento foram ouvidos nesta pesquisa, constituindo apenas pequena parcela dos envolvidos no processo. Ainda assim, o conteúdo trazido pelos participantes merece reflexões.

6.2.1 As mudanças provocadas pela Lei 12.010/2009 na perspectiva de conselheiros tutelares e profissionais das instituições de acolhimento: “foi mais um ‘presta atenção’,

realmente, para alguns excessos”

Alterações feitas pela Lei 12.010/2009 (Brasil, 2009a) no ECA (Brasil, 1990) provocaram e têm provocado mudanças importantes no processo de acolhimento e, especificamente, no processo de tomada de decisão de que uma criança será acolhida. Os trechos das entrevistas, a seguir, sinalizam essa tendência.

Aline: Hoje, com a (Lei) 12.010, a gente quase não faz abrigamento, somente a pedido dos pais, que ainda ocorre, ou do próprio adolescente, em situações emergenciais, à noite ou em finais de semana, aí o juiz autorizou. A gente faz [...] abrigamentos, hoje, em situações bem especiais. (Aline, conselheira tutelar).

Se, antes, os acolhimentos eram feitos, na maioria, pelo Conselho Tutelar, a conselheira Aline afirma que, atualmente, esse órgão quase não faz abrigamento (outros trechos de entrevista no Anexo B). O exposto vai ao encontro das alterações perpetradas pela Lei 12.010/2009 (Brasil, 2009a), que estabeleceu critérios e condições muito mais explícitos sobre quando e por quem essa decisão será tomada, minimizando a autoridade do Conselho Tutelar sobre a questão. A conselheira Daniela destaca outra mudança.

25 O Estatuto da Criança e do Adolescente [ECA] (artigo 86) dispõe que a Política de Atendimento dos Direitos

da Criança e do Adolescente será realizada por meio de um conjunto articulado de ações governamentais e não governamentais, da União, dos estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Desta forma, o Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente é composto pelas instâncias públicas governamentais (Secretarias de Saúde, Assistência Social, Educação, Esportes, Cultura, Trabalho, Segurança, etc.), Judiciário, Ministério Público, Defensorias Públicas, Conselhos Tutelares, Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente e iniciativas da sociedade civil, como as organizações não governamentais. Conectados e atuando em prol de uma mesma causa, formam uma “rede de atores em ação concomitante, sem que haja hierarquia entre os membros” (Graciane et al., 2013, p. 30).

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Daniela: [...] Se não tem condição da criança permanecer com a sua família de origem lá, pai e mãe, antes de a gente partir para o acolhimento, a gente ainda tenta buscar alguém da família extensa, se tem avó, uma tia, um tio, alguém que possa acolher a criança no momento ou até alguém, uma madrinha, um padrinho ou até um vizinho que tenha um vínculo muito grande com essa criança ou com o adolescente. Mas, quando não existe, aí o nosso papel é proteger a vida nesse momento [...]. (Daniela, conselheira tutelar).

A conselheira garante que se busca alguém da família extensa ou outra pessoa que tenha vínculo significativo com a criança para responsabilizar-se por ela. Tal conduta parece estar de acordo com os princípios propostos pelas Orientações Técnicas (Brasil, 2009e) e as alterações advindas da Lei 12.010/2009 (Brasil, 2009a), cujo objetivo é aperfeiçoar a sistemática de garantia do direito à convivência familiar, bem como priorizar intervenções estatais que promovam a orientação, o apoio e a promoção social da família natural, com a qual a criança e o adolescente devem permanecer (artigo 1o).

Também a exigência de um trabalho com a família, prévio ao acolhimento, é citada pela conselheira tutelar Patrícia, a seguir, assim como os efeitos dessa exigência na atuação de alguns Conselhos e conselheiros na tomada de decisão sobre o acolhimento.

Patrícia: [...] A gente realmente preza o trabalho da rede. Então, se a rede está acompanhando, a hora que for o limite, ela mesmo aponta. E, depois de novembro, o juiz não aceita mais fazer nenhum abrigamento, se essa família não foi trabalhada pela rede, então, isso é muito bom, né. Por quê? Porque realmente acaba sendo uma punição para família... O município não dá conta, não faz o trabalho com essa família, não orienta, a criança não vai para o núcleo, a mãe não é orientada, não sabe, às vezes, quais as suas funções, não sabe educar seu filho, e aí não teve um trabalho e rede, ela perde o seu filho sem saber o que fazer, entendeu? [...] Eu acho que a lei, de novembro para cá, foi mais um “presta atenção”, realmente, para alguns excessos. Mas, quem já trabalhava com cuidado, continua a mesma coisa [...]. (Patrícia, conselheira tutelar).

A conselheira Patrícia conta que o juiz tem exigido o acompanhamento prévio da família pela rede26 e que isso foi um presta atenção para excessos cometidos por alguns

26 De acordo com Carvalho (2010), o conceito de Redes propõe uma forma inovadora de gestão social pública.

Como não vivemos em uma sociedade simples e lidamos com problemáticas cada vez mais complexas, a ação em rede convoca a uma retomada da totalidade. Em redes multi-institucionais, a proposta é que haja a integração dos diversos serviços, projetos, sujeitos e organizações, sendo necessário, para tanto, a introdução de uma nova cultura que se caracteriza por “socializar o poder, negociar, trabalhar com autonomias, flexibilizar, compatibilizar tempos heterogêneos e múltiplos dos atores e processos de ação” (p. 9), entre outras demandas. Segundo Gonçalves e Guará (2010), vivemos e transitamos em várias redes que desempenham funções essenciais para a nossa proteção e desenvolvimento. Os autores especificam cinco tipos de redes, interligadas e complementares entre si: redes primárias ou espontâneas, que se organizam no espaço doméstico na perspectiva de apoio, solidariedade e afeto (por exemplo: parentes, vizinhos, amigos, etc.); redes de serviços sociocomunitários, que se organizam na comunidade, muitas vezes, suprindo deficiências ou inexistência dos serviços públicos (por exemplo: escola comunitária, parteira, etc.); redes sociais movimentalistas, as quais são compostas por “movimentos sociais de defesa dos direitos, de vigilância e luta por melhores índices de qualidade de vida” (p. 25); redes setoriais públicas, que “prestam serviços de natureza específica e especializada,

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conselheiros tutelares (outros trechos de entrevista no Anexo C). Essa exigência está explícita no artigo 136 da Lei 12.010/2009 (Brasil, 2009a), parágrafo único, em que é disposto que se o Conselho Tutelar entender necessário o afastamento do convívio familiar, comunicará sem demora o fato ao Ministério Público, concedendo-lhe informações sobre os motivos de tal entendimento e as providências tomadas para a orientação, o apoio e a promoção social da família. Cristiana, coordenadora de uma das instituições, comenta o assunto.

Cristiana: [...] eu acho que nesse sentido, tem se tomado mais cuidado. Eu acho que antes da nova lei (Lei 12.010/2009) era assim: qualquer coisinha chamava a atenção e vai para o acolhimento. Eu acho que mudou um pouco a característica [...] e eu acho que os casos que têm vindo têm sido mais complexos [...]. (Cristiana, coordenadora do abrigo institucional Tulipa).

Na percepção da coordenadora, a Lei 12.010/2009 (Brasil, 2009a), realmente, tem contribuído para que os acolhimentos sejam mais criteriosos (outro trecho de entrevista no Anexo D), chegando à institucionalização os casos mais complexos. Porém, apesar da legislação, há condutas questionáveis, tal como relata a conselheira Aline.

Aline: [...] Agora, tem situações que [...] é meio brutal o negócio "Não, nós vamos abrigar, que não sei o quê" e bate boca. Eu acho que ninguém ganha com isso, porque a família não cria um vínculo bom com o Conselho; ela pega aversão ao Conselho, que é um lugar de proteção, que é um lugar para ajudar [...]. E, nesses casos, inclusive, que eu tenho observado, não tem nenhum encaminhamento para a família. Coloca a criança no abrigo, mas, por exemplo, não encaminhou a mãe para o CAPS, não encaminhou para um psicólogo, uma avaliação psiquiátrica, que tem que ter [...]. (Aline, conselheira tutelar).

O trecho acima (outro trecho de entrevista no Anexo E) sinaliza que, apesar dos importantes avanços, apenas a legislação não será suficiente para qualificar o atendimento prestado à população. São necessários fiscalização e investimento significativo na formação continuada desses e dos demais atores que são tão importantes para o bom funcionamento do Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente.

resultantes das obrigações e dos deveres do Estado para com seus cidadãos” (p. 26); rede privada, que é a iniciativa privada, ou seja, o mercado (por exemplo: prestação de serviços, redes atacadistas, etc.).

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6.2.2 O processo de decisão de que a criança será acolhida: “se continuar nessa situação seu filho vai...”

Com o intuito de apreender alguns dos importantes aspectos do processo de tomada de decisão sobre o acolhimento da criança, os seguintes temas são abordados neste item: como se chega à decisão; participação da criança; e participação da família.

Parte-se da constatação de que o processo de acolhimento da criança inicia-se muito antes de sua chegada na instituição e que, frequentemente, são vários os atores participantes: como se chega à conclusão de que a criança será afastada de seu contexto familiar e/ou de origem? (Fluxograma 2).

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