• Nenhum resultado encontrado

A retirada da criança de seu contexto familiar e/ou de origem e transferência para a instituição: “vai lá e pega”

Sumário

Fluxograma 4 – Participação da família no processo de decisão sobre o acolhimento institucional de sua criança.

6.3 A retirada da criança de seu contexto familiar e/ou de origem e transferência para a instituição: “vai lá e pega”

No município em que a pesquisa foi realizada, após a promulgação da Lei 12.010/2009 (Brasil, 2009a), os oficiais de justiça tornaram-se os principais responsáveis por retirar as crianças de seu contexto familiar e/ou de origem e levar para a instituição. É fato que não ter tido a possibilidade de ouvi-los30, deixou uma lacuna importante no que diz respeito à proposta de investigar como se dá essa etapa do acolhimento da criança.

Além disso, no decorrer da coleta de dados, tomou-se conhecimento de outra peculiaridade da dinâmica adotada no município: a Guarda Municipal também tem papel relevante nos acolhimentos de crianças e adolescentes, com relato de acolhimentos emergenciais delegados à Guarda pelo conselheiro tutelar. Por desconhecimento de tal dinâmica, a Guarda Municipal não foi convidada a participar da pesquisa. Todavia, os conselheiros tutelares e os profissionais das instituições contribuíram de forma relevante com suas perspectivas.

6.3.1 As perspectivas dos conselheiros tutelares e dos profissionais das instituições de acolhimento sobre a retirada da criança de seu contexto familiar e/ou de origem e a transferência para a instituição: “algumas vezes, isso é feito de forma muito catastrófica”

Neste tópico, serão abordados os assuntos: sentimentos e reações do conselheiro tutelar no momento de retirar a criança de seu contexto; circunstâncias em que ocorrem a retirada; como se lida e o que é dito à família; sentimentos e reações da família; sentimentos e

30 Não tive acesso direto aos oficiais de justiça. O convite foi mediado por uma técnica da Vara da Infância e

Juventude. Segundo ela, os oficiais não manifestaram interesse em participar da pesquisa. Para mais detalhes, consultar o item 5, referente aos procedimentos metodológicos.

Resultados e Discussão 116

reações da criança; como se lida e o que é dito à criança; considerações sobre a retirada da criança conduzida pelo oficial de justiça.

Assim, a decisão foi tomada e chegou o momento em que um adulto (oficial de justiça, conselheiro tutelar ou guarda municipal) abordará a família e, sobretudo, a criança, com o intuito de levá-la para uma instituição. Como é esse momento? O que acontece?

Chama a atenção o fato de que todos os envolvidos nesse processo são afetados, mesmo que de diferentes formas. Os conselheiros tutelares falam sobre seus sentimentos e reações ao se verem incumbidos da tarefa de acolher a criança (Fluxograma 5).

Fluxograma 5 – Sentimentos e reações do conselheiro tutelar. Para a conselheira Daniela, é grande o sofrimento:

Daniela: [...] embora seja para proteger e para livrar a criança de uma violência, eu pessoalmente, avalio que a violência maior é a separação, porque, você quebrar um vínculo, acho que não tem violência maior que essa [...]. Parece que a família está desistindo dela. Eu não sei nominar as coisas, o sentimento que vem, mas talvez um pouco porque sou mãe e não sou capaz de ver essa quebra com as minhas filhas, ou porque a gente consegue ir além da situação de violência, veja o caso da mãe que [...] a filha era abusada pelo pai, ela própria sofreu a mesma violência. Então, é uma história, assim, que parece que não tem culpados. Embora o pai seja agressivo, você vai conversar, você vai desenterrar, aquele pai não teve condição de ser diferente. Então, é uma situação angustiante, mesmo por que você queria que fosse diferente e você não pode fazer nada melhor que aquilo. Tem alguns momentos, muitos momentos, que você fica revoltada [...], então você quer matar a pessoa, a gente chega aqui: "Aquele filho...", fica revoltado, "Precisa ir para a cadeia, precisa ser castrado, precisa...", mas depois, quando você coloca as coisas no lugar, fica pensando "Uma pessoa, para ela fazer isso, o que também ela não teve?" [...]. Ninguém é sozinho, [...] a gente se faz com os outros que estão perto. Então, eu não sei falar muito, eu sei que é muito sofrido, pelo menos para mim, o sofrimento de fazer o acolhimento é grande [...]. (Daniela, conselheira tutelar).

A conselheira fala sobre seu sofrimento porque embora seja para proteger a criança, ela considera que a violência maior é a separação. A despeito disso, a legislação, por meio da Lei 12.010/2009 (Brasil, 2009a), assegura o princípio da proporcionalidade e atualidade, e dispõe que “a intervenção deve ser a necessária e adequada à situação de perigo em que a

Resultados e Discussão 117

criança e o adolescente se encontram no momento em que a decisão é tomada” (art. 100; inciso VIII), bem como assegura o princípio da prevalência na família (art. 100; inciso X).

As Orientações Técnicas (Brasil, 2009e) alertam, inclusive, para o fato de que o afastamento do convívio familiar é muito sério e provoca profundas implicações, tanto para a criança, quanto para a família. Desta forma, essa medida de proteção deve ser aplicada somente quando “representar o melhor interesse da criança ou do adolescente e o menor prejuízo ao seu processo de desenvolvimento” (p. 10). Assim, quando a violência maior é a separação, o acolhimento institucional é mesmo necessário e adequado? É provável que não.

Outra questão: ao acolher institucionalmente, quebram-se vínculos, assim como afirma Daniela? Não deveria, pelo menos. A Tipificação Nacional dos Serviços Socioassistenciais (Brasil, 2009d, p. 31) estabelece que os serviços de acolhimento institucional, caracterizados como de proteção especial de alta complexidade, são destinados a “famílias e/ou indivíduos com vínculos familiares rompidos ou fragilizados, a fim de garantir proteção integral”, e têm como um de seus objetivos restabelecer os vínculos familiares.

O ECA (Brasil, 1990), reforçado pela Lei 12.010/2009 (Brasil, 2009a), assegura que o acolhimento é medida provisória e excepcional, utilizada como “forma de transição para a reintegração familiar” e, em último caso, colocação em família substituta (art. 101, inciso IX, § 1o). E que, uma vez acolhida, o contato da criança com a família deverá ser facilitado e estimulado (art. 101, inciso IX, § 7º). Portanto, o acolhimento institucional não é (ou não deveria ser) o responsável pelo rompimento dos vínculos, visto que uma de suas principais funções, enquanto medida de proteção, é oferecer condições para que os vínculos familiares sejam (re)construídos, (re)significados, mantidos e/ou fortalecidos, dependendo da necessidade de cada família. Se isso não acontece, possivelmente, essa medida de proteção está sendo mal aplicada e/ou a instituição e todos os outros atores do Sistema de Garantias dos Direitos da Criança e do Adolescentes, incluindo o Conselho Tutelar31, não estão cumprindo satisfatoriamente seu papel.

Daniela também menciona que em muitos momentos sente revolta em relação à família. No entanto, quando consegue se distanciar minimamente da situação e consegue ir

além da situação de violência, diz que é uma história, assim, que parece que não tem

culpados. Pode-se perceber que Daniela, nessas ocasiões, consegue se desvencilhar da rede de significações que tende a culpabilizar a família das mazelas de que também é vítima. O que

31 Art. 92, § 4o “Salvo determinação em contrário da autoridade judiciária competente, as entidades que

desenvolvem programas de acolhimento familiar ou institucional, se necessário com o auxílio do Conselho Tutelar e dos órgãos de assistência social, estimularão o contato da criança ou adolescente com seus pais e parentes [...]” (Incluído pela Lei 12.010, de 2009) (ECA, 1990).

Resultados e Discussão 118

não quer dizer que se deva deixar de corresponsabilizá-la pela parte que lhe cabe no processo de vitimização de sua criança.

O conselheiro tutelar Pedro fala da dificuldade de acolher uma criança:

Pedro: [...] a gente [...] naquele momento não pode chorar, tem que ser forte, então, é difícil. Às vezes, é respirar e ver que é uma criança que está sofrendo [...]. A gente tem que se posicionar nesse momento. É difícil também para a gente fazer um acolhimento.

Pesquisadora: E [...] o que você sente? O que gera na pessoa que tem essa responsabilidade?

Pedro: Então, a gente fica [...] se questionando se aquilo é a coisa certa, mas é que tem questões que é tão absurda que a gente não tem ação. Às vezes, nessas questões, é mais fácil para a gente, então, [...] você está na delegacia (com a criança – o pai havia sido preso), você vai deixar ela dormir na delegacia? Não dá. Vai levar para a sua casa? Não pode. Dá vontade, mas não pode, então, a gente abriga. É mais fácil porque é o fim da linha, não tem muito o que fazer. O mais difícil é quando existe a dúvida da situação: de ter sido um pouco mais trabalhada; ou não ter feito alguma coisa a mais. Aí, eu acho que é o pior porque fica na dúvida “Será que aqui a criança ela está reproduzindo uma coisa que não é verdade? Será que eu não tô finalizando esses pais por uma inverdade? Existe mais coisas por trás dessa situação?”. Acho que o pior é isso, você tá cometendo uma injustiça [...]. A gente tenta fazer o nosso melhor, em cima daquilo que a gente acha certo, dos nossos valores. Quando é muito difícil, a gente socializa com o colegiado para realmente ter a questão da equipe, da visão, dos olhares diferentes. E, aí, é feito justiça, mas nem sempre. Às vezes, quem votou tem a mesma impressão que você, mas não era correta. A gente é ser humano, a gente tem que lidar com isso, com nossa impotência e nosso direito de também cometer erros [...]. Acho que o mais importante do nosso trabalho é nunca agir com leviandade, sempre trabalhar em cima realmente de fatos, tentar sempre tudo antes, tudo e mais um pouco [...], mas tem momentos que são bem difíceis. (Pedro, conselheiro tutelar).

Pedro conta que é preciso se convencer de que o acolhimento é a coisa certa. Mas, mesmo assim, a dúvida persiste em algumas situações, pois sempre há a possibilidade de cometer uma injustiça. Mas, se a dúvida persiste, será que o processo de tomada de decisão não deve garantir maior segurança em relação à escolha sobre o que fazer perante a problemática vivenciada pela criança e sua família? Trata-se de uma situação realmente emergencial, para a qual deve-se tomar uma decisão naquele exato momento? Ou a situação é urgente, portanto, merecedora de muito cuidado, mas a atuação em rede poderá contribuir para melhor compreensão do caso e, talvez, prevenção do acolhimento institucional? Trata-se de decisão difícil, mas deverá sempre basear-se em fatos relevantes, obtidos a partir de investigação exaustiva (IFCO, SOS-Kinderdorf International & FICE, 2006).

A conselheira Patrícia fala também sobre a dificuldade que sente, mas de uma perspectiva um pouco diferente:

Patrícia: É muito difícil, porque [...] a gente repensa tudo. Será que é esse o meu papel? Será que é isso que é necessário? Como [...] não fazer essa criança sofrer, nesse momento? Mas, assim, por outro lado, é lógico que é dolorido, é difícil, mas a

Resultados e Discussão 119

gente sempre acredita que é para a melhoria dela. Então, [...] tá com um machucadinho, vou passar uma coisa que vai arder, mas é melhor porque ele vai sarar mais rápido [...]. Muitas acabam tendo o mesmo comportamento da mãe, indo para a droga, então, assim, quando você realmente cessa e manda para uma instituição, é para quebrar isso, [...] que ela tenha chance de ter novas coisas [...]. Eu tenho que ter essa convicção que é para o bem da criança. (Patrícia, conselheira tutelar).

Patrícia, assim como Pedro, fala sobre as incertezas e questionamentos da necessidade de acolher uma criança. Todavia, argumenta que a institucionalização serve para quebrar a repetição ou reprodução, de comportamentos negativos da mãe, pela criança, uma vez que pode possibilitar que esta tenha novas coisas e, talvez, novas experiências e/ou referenciais.

Nessa direção, Barros (2006) refere que o projeto político-pedagógico da instituição deve auxiliar que os acolhidos (re)descubram seus valores morais, éticos e de cidadania, assim como construam um projeto de vida que valorize seus sonhos e habilidades. Guará (2006) também aponta que educar crianças e adolescentes, nesse contexto, significa “ajudá-los a perceber a própria situação sem sucumbir a ela, descobrindo novas estratégias de sobrevivência e de inserção social” (p. 61).

A conselheira Aline, por sua vez, apresenta outra percepção.

Aline: Eu falo por mim, né, Ivy, porque cada conselheiro é de um jeito. Tem conselheiro que eu vejo que não tem problema nenhum, tira do braço da mãe até à força, já vi isso e eu não consigo. Mas acho que isso é da pessoa; para mim é terrível. Assim, o dia que eu levo uma criança para o abrigo, por mais que eu tenha certeza que foi a melhor medida, por mais que eu sei que foi necessário, que aquela criança não poderia continuar naquela situação, aquilo me dói muito, me dói muito [...]. (Aline, conselheira tutelar).

Para Aline, acolher uma criança é terrível e dói muito, mesmo que tenha certeza de

que foi a melhor medida.

Daniela conta que, para aplicar essa medida de proteção, no Conselho Tutelar em que atua, os conselheiros preferem não agir sozinhos.

Pesquisadora: Daniela, e como que é feito, o momento da retirada da criança, como vocês fazem?

Daniela: Olha, a gente até nem age sozinho, um conselheiro só [...]. Porque é sofrido para nós também, então a gente sempre procura, na medida do possível, contar até com o apoio do colega, para a gente diminuir o sofrimento. Então, assim, às vezes, um está conversando com o pai, os pais, o outro fica conversando com a criança, ou vice-versa, ou, se os pais nem estão presentes, dois vão conversando com a criança. Assim, a gente tenta causar menos dano possível, porque já é um trauma a criança sofrer violência e é um trauma duplo a criança ser afastada do pai [...]. (Daniela, conselheira tutelar).

Segundo o que Daniela descreve, atuar nesse momento em parceria com outro conselheiro é uma tentativa de causar menos dano possível a si mesmos e à criança.

Resultados e Discussão 120

Assim, mesmo tomados por esses sentimentos, muitas vezes contraditórios, o acolhimento é feito. Então, em que circunstância, geralmente, os acolhimentos ocorrem?

Outline

Documentos relacionados