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Valdemar Arl

2. Sociedade civil e movimentos sociais

A partir da sociedade moderna e a ampliação da atividade econômica com suas interfaces políticas surge um novo nível de ação social, e identificam mais fortemente a distinção de classes sociais e a relações de disputa do Estado.

O conceito de sociedade civil deriva em diferentes concepções, desde uma visão neoliberal, na ideia da terceira via para buscar a realização de serviços sociais e mediação entre Estado e sociedade, e/ou mercado e Estado, racionalizando a dominação estrutural, e, fragilizando a ideia da luta de classes. Este conceito foi muito presente na América Latina, especialmente no período dos golpes militares. Outra condição relaciona a organização e articulação da sociedade civil à condição de mudança social democrática.

Segundo Gramsci, a sociedade civil deriva de organizações como a igreja, sindicatos, partidos, cooperativas, entidades, e outros.

Enquanto conceito de sociedade civil assume-se nesta sistematização a percepção de espaço de mediação entre o econômico e o político, numa esfera para além do Estado, sendo a sociedade civil sujeito da história que interage com e disputa o Estado. Um Estado, para além da visão neoliberal de mero regulador das relações sociais e protetor da propriedade privada, e uma sociedade como espaço de organização das relações de disputa na realidade concreta da produção e reprodução da vida social (práxis social) que supera a visão liberal da ―terceira via‖.

O conceito de movimento social e popular também é de grande amplitude, desde uma articulação pontual, reivindicatória e conservadora a uma condição transformadora da ordem política e da estrutura social vigente.

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A realidade do momento e o contexto de grandes transformações nas relações de produção, de poder, e nas relações sociais, imprimiram grande influência sobre os movimentos sociais na era da informação.

Castells (1999) afirma que a forma propulsora de articulação dos movimentos sociais é a construção social de identidades (legitimadora, de resistência ou de projeto) que se organizam em forma de redes.

Touraine (2003) propõe uma revisão do conceito de movimentos sociais para dar conta da complexidade contemporânea e defende que todo movimento social é, em certa medida, classista, anticapitalista e anti- imperialista, mas diferencia os movimentos sociais em três tipos: ―os movimentos culturais‖ (luta por direitos), ―movimentos históricos‖ (luta pelos rumos do desenvolvimento) e ―movimentos societais‖ (conflito ideológico e utópico com adversário social).

Por movimentos societais, entende aqueles que combinam um conflito social com um projeto cultural, e que defendem um modo diferente de uso dos valores morais. Portanto, baseiam-se na consciência de um conflito com um adversário social (TOURAINE, 2003, p. 119).

Touraine (2003) faz uma síntese conceitual abrangente, vinculando condições sociais a uma identidade cultural sustentada em valores morais, sendo que o conflito social se estabelece a partir de pressões exercidas sobre essas dimensões, levando a reações coletivas.

Gohn (2007) faz uma distinção e separação histórica e ideológica quanto aos paradigmas dos movimentos sociais, distinguindo-os entre uma abordagem marxista e a dos novos movimentos sociais, sendo que cada uma delas se divide em uma série de correntes teóricas explicativas. Gohn destaca aspectos centrais das abordagens, sendo:

A marxista centra-se nos estudos dos processos históricos globais, nas contradições existentes e nas lutas entre as diferentes classes sociais. As categorias básicas construídas por seus analistas são: classes sociais, contradições, lutas, experiências, consciência,

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conflitos, consciência de classe, reprodução da força de trabalho, Estado, etc. As noções e conceitos de desenvolvimento são: experiência coletiva, campo de forças, organização popular, projeto político, cultura política, contradições urbanas, movimentos sociais urbanos, meios coletivos de consumo, etc. O paradigma dos novos movimentos sociais parte de explicações mais conjunturais, localizadas em âmbito político ou dos microprocessos da vida cotidiana, fazendo recortes na realidade para observar a política dos novos atores sociais. As categorias básicas deste paradigma são: cultura, identidade autonomia, subjetividade, atores sociais, cotidiano, representações, interação política etc. Os conceitos e noções analíticas criadas são: identidade coletiva, representações coletivas, micropolítica do poder, política de grupos sociais, solidariedade, redes sociais, impacto das interações políticas, setor terciário privado e público, etc. (GOHN, 2007, p. 16-17).

Porém, não obrigatoriamente é necessária uma separação antagônica, pois há sinergias entre ambas as condições, algumas mais específicas e contextuais/momentâneas, mas também teóricas e de efetividade mais complexas, identificadas por Gohn (2007) como: novos sujeitos históricos, campo de força popular, cidadania coletiva, espoliação urbana, exclusão social, descentralização, espontaneidade, redes de solidariedade, etc. Estas novas categorias estão muito presentes nesta sistematização, pois fazem parte da história e trajetória que vivenciamos concretamente, especialmente nos últimos 40 anos. Quando nos referimos aos movimentos sociais, estamos nos referindo aos movimentos históricos decorrentes de lutas sociais construídas junto aos trabalhadores, numa sociedade de desiguais, portanto, classista, sendo resultante de articulações e lutas coletivas, em processos e espaços institucionalizados ou não, pretendendo gerar transformações na sociedade, e os denominamos como movimentos sociais populares, ou apenas de movimentos populares.

No Brasil evidencia-se, especialmente a partir da década de 1990, a condição dos movimentos populares como forma de expressão dos novos movimentos sociais, que considera ―o povo como sujeito‖ através de

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uma multiplicidade de sujeitos sociais coletivos, afirmando-se, na sua maioria, num plano mais localizado e com bandeiras de luta mais específicas. Evidencia-se uma crescente fragmentação da atuação, fragilização da luta classista e enfraquecimento da perspectiva de transformação radical das relações e lógica capitalista da sociedade.

Outro aspecto a considerar no Brasil é a significativa segmentação entre os movimentos sociais do campo e da cidade, assim como, também, são segmentadas as discussões a respeito do desenvolvimento e das políticas públicas. Segundo Scherer-Warren e Lüchmann (2004, p.16), referindo-se à década de 1980, ―Raramente se estabelecia um diálogo intelectual entre esses dois universos, mesmo diante do ―boom‖ dos movimentos sociais rurais nesse período (Movimento Sem Terra, Movimento de Atingidos por Barragens e Movimento de Mulheres Agricultoras).‖ Também o movimento ambientalista seguiu uma trajetória pouco articulada com os demais movimentos sociais.

As relações entre o Estado e a sociedade transformam-se nesse período e estabelecem-se inúmeras parcerias entre o público e o privado, e, dado às influências neoliberais sobre o Governo, influenciaram de forma negativa a perspectiva transformadora mais radical.

Neste projeto, subverte-se o conteúdo de radicalidade presente nas ideias de participação, cidadania e solidariedade, desconectado agora dos princípios de igualdade e universalidade. Este novo paradigma prometeu novas relações entre Estado e sociedade preenchidas por ingredientes pautados na parceria público-privado, na ideia de ‗terceiro setor‘, na responsabilidade social, na filantropia empresarial e na solidariedade (SCHERER-WARREN; LÜCHMANN, 2004, p.17).

Essa análise, um pouco mais aplicada, será retomada nos itens 2.6 (O crescente imobilismo social e a diminuição da capacidade organizacional) e 2.7 (Alguns desafios atuais). Na sequência faremos uma abordagem um pouco mais descritiva e com foco nos movimentos sociais

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do campo, que surgiram no Brasil nas décadas de 1940 a 1960, e depois a retomada e recriação dos movimentos nas décadas de 1970 e 1980. As iniciativas de educação popular contribuíram na organização social nesse período de crescente expressão da sociedade civil, conforme descrito a seguir.

Destacam-se as Ligas Camponesas, na década de 1950, em Pernambuco, que aglutinava agricultores envolvidos em várias situações de conflito e luta pela terra, estendendo-se aos poucos a outros Estados. Após vários encontros e congressos destes camponeses, afirma-se a proposta de uma reforma agrária ampla e radical sob o lema ―Reforma Agrária na lei ou na marra‖.

Surge, em 1954, a União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas (ULTAB), que tinha por finalidade a coordenação das associações camponesas e a criação de condições para uma aliança política entre operários e trabalhadores rurais. Essa organização se espalhou por praticamente todos os Estados, com exceção de Pernambuco e do Rio Grande do Sul.

No final da década de 1950 surge o Movimento dos Agricultores Sem Terra (MASTER). Na sua estratégia de luta pela terra, em 1962 iniciou os acampamentos. Esta não era uma proposta apenas de resistência na terra, como a maioria dos movimentos de luta pela terra, citados anteriormente, e sim uma luta pela conquista da terra. Este movimento surgiu e se fortaleceu com o apoio do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), liderado por Leonel Brizola.

Inicia-se, ainda, a criação de sindicatos de trabalhadores rurais. Embora, inicialmente, sem muita base popular, tem sua regulamentação em 1962 no governo de João Goulart (Jango), quando foram reconhecidos. A primeira Convenção Brasileira de Sindicatos de Trabalhadores Rurais, ocorrida em Natal/RN (1963), propõe-se a criação de uma confederação sindical, unindo as iniciativas da Ultab – que aglutinava a maioria dos sindicatos existentes até antão, e os sindicatos ligados ao trabalho de

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pastoral da Igreja Católica. Na sequência, em dezembro de 1963, nascia a Confederação dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG), aglutinando as Federações Estaduais (FETAGs) e os Sindicatos de Trabalhadores Rurais em sua base.

O resultado dessa construção popular resulta na ampliação da organização e capacidade social exercida através desses Movimentos Sociais. O fortalecimento organizacional e a ampliação da capacidade de mobilização criaram condições para mudanças conjunturais e estruturais no Brasil.