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Teoria da Socialização Ocupacional aplicada à Formação de Professores

3 Formação de Professores

3.1 Teoria da Socialização Ocupacional aplicada à Formação de Professores

De acordo com Lawson (1986), o conceito de sociabilização ocupacional (occupational socialization) integra todas as formas de socialização que inicialmente influenciam os indivíduos que entram no campo da Educação Física e que, mais tarde, são responsáveis pelas suas perceções e ações, enquanto professores e formadores de professores. Segundo o autor, a socialização ocupacional engloba outras tipologias de socialização. De entre estas, distinguimos a socialização profissional (professional socialization), a socialização organizacional (organizational socialization) e a socialização burocrática (bureaucratic socialization), de modo a esclarecer cada um dos conceitos. Lawson (1986) esclarece que a socialização profissional (professional socialization) diz respeito ao processo de aquisição de conhecimento, valores, sensibilidades e competências requeridas pela profissão. Por sua vez, a socialização organizacional reporta-se à interiorização de conhecimento, valores e competências que se constituem como exigências da organização. Embora esta tipologia de socialização possa ser compatível com a socialização profissional, constata-se que, na prática, esta é uma harmonização difícil, uma vez que os professores são contratados por organizações burocráticas, assistindo-se ao estabelecimento de um conflito entre a socialização burocrática, tendencialmente geradora de uma conformidade dependente e uma vertente profissional,

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norteada por um posicionamento crítico e eminentemente libertador que busca incessantemente uma autonomia através do saber e do saber-fazer.

A existência de diferentes orientações científicas associadas à socialização dos professores tem-se refletido na ausência de um consenso conceptual. Assim, foram desenvolvidas três abordagens – a funcionalista, a interpretativa e a crítica - que se diferenciam pelo modo como encaram a relação entre o professor e a ‘sociedade docente’.

A abordagem funcionalista assume uma visão sociológica marcada pelo positivismo e pelo determinismo (Zeichner & Gore, 1990). Adotando uma abordagem funcionalista, a socialização do professor é vista como a interiorização de uma cultura por parte de um indivíduo. Neste processo, a integração acrítica da cultura profissional é encarada como um aspeto central (Carvalho, 1996a).

Num outro prisma, a abordagem interpretativa entrecruza as escolhas do indivíduo e os constrangimentos com que se depara (Carvalho, 1996a). Deste modo, o indivíduo assume a sua integração numa estrutura, aceitando os constrangimentos que subjazem a esta incorporação, ao mesmo tempo que procura ativamente a alteração dessa mesma estrutura. Estamos, assim, perante um processo de integração participante em que, ao contrário das perspetivas funcionalistas, o indivíduo, no contexto do processo de socialização, é encarado na sua racionalidade e na sua natureza interativa.

Relativamente à abordagem interpretativa, Lacey (1977) identificou três estratégias sociais adotadas pelos professores, no sentido de se integrarem na nova cultura escolar. No contexto da nossa pesquisa, estas estratégias têm especial relevância no sentido em que os professores estagiários, ao serem confrontados com a cultura da escola em que realizam o estágio podem adotar diferentes posturas que se traduzem em formas diferenciadas de atuação. Assim, se se envolver numa concordância estratégica (strategic compliance), o professor estagiário adota o comportamento desejado, embora, de forma privada, tenha reservas relativamente às práticas adotadas. Esta estratégia é comummente adotada por professores que se encontram nesta fase de socialização, dado que, frequentemente, não se sentem com poder para colocar em causa as práticas dos seus colegas mais experientes (Williams & Williamson, 1998). Outro dos mecanismos adotados diz respeito ao ajustamento interiorizado (internalized adjustment) que se sustenta na adaptação voluntária aos comportamentos e crenças da instituição. Os benefícios da adoção desta estratégia estão na dependência do conteúdo das crenças e dos comportamentos alterados. Assim, se o professor estagiário assimila uma cultura de ensino inovador, esta estratégia constitui-se como adequada. Contudo, o desajuste é verificado quando ocorre uma ‘lavagem’ (wash out) das aprendizagens adquiridas no decorrer

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da formação inicial anterior em prol da adoção de práticas tradicionais desadequadas. A redefinição estratégica (strategic redefinition) não é utilizada de modo frequente, uma vez que a sua implementação implica a tentativa de alteração ativa dos comportamentos e crenças dos colegas e diretores de escola. Williams e Williamson (1998) verificaram que esta estratégia se constitui como um desafio para os professores iniciantes, dado que pressupõe que exerçam influência além do poder formal que lhes é concedido.

Para Zeichner e Gore (1990), a perspetiva crítica centra-se em duas abordagens fundamentais: a reprodução e a produção. Interpretando as principais preocupações inerentes à perspetiva crítica, Weiler (1988, p. 24) esclarece:

it is important to acknowledge the intended role of schools as apparatuses of social reproduction and sites of cultural reproduction at a high level of theoretical abstraction; we need to keep in mind the relationship of schools to the wider society and to recognize the realities of class and gender relationships in terms of power and control. But at the same time, the acts of resistance, negotiation, and contestation of individuals in the production of meaning and culture must also be recognized.

Segundo Carvalho (1996a), alguns estudos que se centram nesta abordagem apontam para a rejeição do conceito de socialização pela sua natureza funcionalista. Neste âmbito, a pesquisa desenvolvida tem procurado o estabelecimento de relações, nomeadamente, entre variáveis demográficas como o género e a classe social e a formação das relações de trabalho ou a ligação entre as visões dos professores e as ideologias sociais dominantes. Segundo o autor, a perspetiva crítica equaciona a transmissão e interiorização de conteúdos, ao mesmo tempo que tem subjacente a produção de cultura profissional. Trata-se, desta forma, de uma construção que se efetiva não apenas através de processos individuais, mas também pelas interações entre os diferentes professores.

Embora a socialização dos professores seja abordada numa perspetiva de evidência de diferentes momentos tendencialmente interpretados numa lógica de continuidade, consideramos que esta visão se pode constituir como um elemento limitativo de uma perspetiva holista do processo formativo. Deste modo, partilhamos da interpretação de Carvalho (1996a) que, ao abordar o processo de socialização dos professores, se centra numa visão de rutura, ou seja, considera a existência de momentos de (re)formulação e de (re)construção que encerram em si o rompimento com ideias e comportamentos antigos, ao mesmo tempo que novas formas de pensar e agir passam a tornar-se rotina. Para o autor este processo:

decorre em contextos sociais estruturados, sendo de destacar a este nível a quádrupla vivência da estrutura escolar – como aluno, como aluno-professor, como membro de um grupo ocupacional e

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como professor de uma organização, sem esquecer as restantes agências de socialização como a família, o clube desportivo ou os meios de comunicação de massa. (Carvalho, 1996b, p. 39)

Assim, é encarada a existência de momentos de quebra que se efetivam nos tempos e espaços em que a socialização ocorre, tanto nas suas determinantes ocupacionais como não ocupacionais. Estando cientes da descontinuidade do processo de socialização dos professores, e assumindo as particularidades inerentes a uma visão paradigmática sistémica do processo formativo, iremos abordar a teoria da socialização ocupacional, considerando os três momentos de rutura que lhe estão associados. Referimo-nos à socialização antecipatória, à formação inicial e à socialização organizacional. Numa perspetiva de delimitação paradigmática, assumimos a recusa dos modelos funcionalistas de socialização, reconhecendo cabalmente o papel ativo dos professores e dos futuros professores nas suas próprias experiências de formação.

A socialização antecipatória (anticipatory socialization) inicia-se no nascimento e mantém-se até à entrada num programa de formação de professores (Curtner-Smith, Hastie, & Kinchin, 2008). Ao longo da idade escolar, enquanto crianças, os futuros professores passam mais de 13 mil horas em escolas, num contacto sistemático com professores. É no decorrer desta fase que, para Lortie (1975), se processa a aprendizagem por observação (apprenticeship of observation). Nos períodos temporais longos de contacto com a atividade docente, os futuros professores são levados a construir uma imagem desta profissão. Por conseguinte, para o mesmo autor, as crianças que se tornarão professores vão avaliando, individualmente, as responsabilidades e os papéis desenvolvidos pelos professores, construindo uma crença acerca das competências e habilidades inerentes à função docente (subjective warrant). Lawson (1983) clarificou que a avaliação efetuada pelos futuros professores se constitui não apenas como a base do estabelecimento das suas expectativas relativamente às competências necessárias para ensinar Educação Física, mas também como uma autoavaliação para lidar com os desafios inerentes à profissão de professor. Apesar das imagens e expectativas construídas se fundarem em conceções, não raras vezes, erradas e incompletas, a investigação tem permitido demonstrar que as crenças formadas na sequência destas experiências se assumem como altamente relevantes nas conceções e práticas dos futuros professores, chegando mesmo a sobrepor-se à socialização profissional (Curtner-Smith et al. 2008; Zeichner & Gore, 1990).

A formação inicial engloba três componentes principais: a educação geral e os cursos académicos, os métodos e cursos básicos e as experiências de campo realizadas em escolas locais (Zeichner & Gore, 1990). Embora existam algumas evidências de que os programas de formação de professores podem ter um papel importante em determinadas circunstâncias (Curtner-Smith & Sofo, 2004), a socialização profissional é geralmente considerada a mais

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fraca das fases de socialização (Stran & Curtner-Smith, 2009). No decorrer do processo de formação, os futuros professores expressam as suas orientações e expectativas acerca do conteúdo, do currículo e da formação (Graber, 1989). Para Schempp e Graber (1992), as ideias construídas no decorrer da socialização antecipatória não podem ser ignoradas, cabendo aos formadores o reconhecimento de que os futuros professores têm expectativas acerca do que é ser professor, dispondo-se a dialogar sobre as suas crenças e expectativas. Para Cochran-Smith (1991) outras das preocupações dos programas de formação deve centrar-se na promoção de ressonância colaborativa (collaborative resonance) que se efetiva através de uma articulação coerente entre os aspetos teóricos de ensino e as experiências no terreno. Quando se concretiza uma ligação eficaz entre estas duas vertentes, é possível proporcionar aos estudantes oportunidades ímpares para aprender a ensinar.

A socialização organizacional (organizational socialization) ocorre no contexto escolar e assume-se como preponderante para a compreensão da forma como os professores principiantes atuam perante os desafios, associados a aspetos sociais e contextuais do seu trabalho (Lawson, 1986). No decorrer deste processo de transição, alguns professores não se sentem preparados para o desempenho das funções que implicam a relação com os diferentes agentes da comunidade escolar como os colegas, os diretores das escolas, os pais e os alunos. Associado a este sentimento de impreparação, pode surgir o choque de realidade (reality shock). De acordo com Veenman (1984, p. 143) o choque de realidade envolve “the collapse of missionary ideals formed during teacher training by the harsh and rude reality of everyday classroom life”. Ao longo do tempo, as práticas adquiridas na formação inicial podem ir-se desvanecendo (washed out). A este respeito, Blankenship e Coleman (2009) mencionam que os professores tendem a adaptar-se à realidade micropolítica do contexto de trabalho, adotando práticas congruentes com os princípios formais e informais do envolvimento, verificando-se o seu domínio relativamente às aprendizagens adquiridas no contexto da formação inicial.

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