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Ação: interdito / manutenção / reintegração origem:

requerente:

requerido:

imóvel: Fazenda

i – rElAtÓrio

VISTOS, ETC.

ii – FuNDAmENtAção

1 – coNSiDErAçÕES prElimiNArES GErAiS

Por quão peculiar a matéria em trâmite nesta especialíssima Vara dos Conflitos Coletivos Agrários, afigura- se-nos bastante, embora alongando no esforço, e mesmo que desconsiderados pelo eventual leitor volvido apenas para o dispositivo (se insatisfeito buscará na fundamentação o quanto discorde), adiantar algumas considerações um tanto teóricas – que não chegam ao dogmatismo – para, de alguma forma, suavizar o peso da “cruz antropo- lógica da decisão”.1

O desafio é encontrar uma solução de direito responsivo para desenvolver a capacidade de resolver o problema,2 assim mantendo-se este juízo singular à altura do quanto o tempo presente provoca. É o que observamos na matéria, em que muito se diverge e pouco se discute.

A temática enseja, no âmbito que alcança – um conflito nitidamente social –, uma reflexão em sede da Socio-

logia do Direito (“articulações do direito com as condições e as estruturas sociais em que opera”), marcadamente naquele

aspecto fundamental da polarização dos defensores do direito como variável dependente (passivo) versus os defen- sores do direito como variável independente (ativo).3 E como um elemento problematizante, em acréscimo, eis o fato de não se estar diante de uma construção jurídica informal ou não oficial do direito, centrada numa coletivi-

dade social periférica que envolve, mas põem-se em digladio classes sociais bem distintas e distinguíveis, seja no

plano histórico e político, como no sociológico, existencial, real.

Ainda antes de tudo, põe-se em causa a leitura dos contornos indesviáveis do Estado Moderno, reconhecido ou não, e para o qual concorrem as realidades postas, no desafio, sobretudo, de um novo perfil – para ser eficiente – da

Administração Pública lato sensu.4

Fenômeno sociológico inegável, a invasão/ocupação/tomada, é dado da faticidade posto à análise a que se

mostra ineficiente o positivismo jurídico clássico.5 No entanto, não se prestam, no radicalismo ideológico indus- triado, o relativismo e o subjetivismo elevados a critério absoluto para a solução do litígio criado. E mais: há de

haver uma percepção atual, contemporânea do problema.6

1 – Cfr. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Entre a justiça e a prudência: uma carta para o Centro de Estudos Judiciários, in Revista do Ceej, [Lisboa]: Centro de Estudos Judiciários, 1o semestre 2006, no 4 (número especial), p. 7.

2 – Cfr. NONET, Philippe, SELZNIK, Philip. Law e society in transition, New Bruswick, New Jersey: Transaction Publishers, 2001 (1978), p. 16.

3 – Cfr. SANTOS, Boaventura de Sousa. Introdução à sociologia da administração da justiça, in Direito e Justiça: a função social do Judiciário, org. José Eduardo de Faria, São Paulo: Editora Ática, 1989, Série Fundamentos, vol. 48, p. 40.

4 – Cfr. SUORDEM, Fernando Paulo da Silva. O princípio da separação de poderes e os novos movimentos sociais. A Administração Pública no Estado Moderno: entre as exigências de liberdade e organização, Coimbra: Almedina, 1995, 476p.

5 – “De qualquer forma, o positivismo crítico, ou pós-positivismo, ou positivismo inclusivo, hoje, submete o texto da lei ao filtro dos princípios materiais de justiça e dos direitos fundamentais positivados” (LAMY, Marcelo. Jurisdição no estado constitucional, in Escola Superior de Direito Constitucional (Esdc) – EAD (Educação a Distância), Curso Fundamentos do Processo Civil, Parte 1, 2008, p. 6 – grifo nosso).

6 – “... não se pode esquecer da função social da posse, que é digna de proteção jurisdicional. Nos dias de hoje é preciso ver a posse como um direito que, muitas vezes, estará em posição de ataque, e não de defesa, em relação à propriedade. É chegada a hora de o jurista abandonar os exemplos tradicionalmente empregados, mas que muitas vezes são impossíveis de se verificar na prática, para examinar casos concretos, ou que podem acontecer na prática. Não se pode mais aceitar a utilização apenas dos exemplos maniqueístas, envolvendo relações simples, individuais, entre Caio e Tício. É certo que não há maior dificuldade em resolver um caso em que Fulano invade um imóvel pertencente a Beltrano, esbulhando sua posse, e vindo este último a postular tutela jurisdicional para seu direito. A solução do problema, porém, não seria tão fácil se a invasão do imóvel fosse feita por um grupo de ‘sem-terras’, num caso em que o imóvel invadido fosse um dos tantos latifúndios improdutivos espalhados pelo Brasil. É num caso como este que deve o jurista examinar qual dos dois interesses deve ser tutelado: a posse, exercida conforme a sua função social; ou a propriedade, que não cumpre tal função, desrespeitando o comando constitucional que estabelece ser a função social da propriedade uma garantia fundamental (art. 5o, XXIII, da

Constituição da República).” (CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil, 6a ed., rev. e atual. segundo o Código Civil de 2002, Rio de Janeiro: Lúmen Juris,

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Nesse diapasão, ação irresponsável e caprichosa é a de movimentos que adotam a postura do agir por agir, buscando marcar presença midiática ao arrepio de qualquer direito (fundamental) alheio. À desarticulação e de-

sorganização tentam camuflá-la como questão de ordem de uma estrutura interna (e respectiva estratégia, forjada

a partir do nada). Empunhando a bandeira da falta de propriedade, a luta assim estampada adquire cariz contrário à propriedade; seus argumentos falaciosos não encontram suporte em qualquer elemento fático ou legal, menos ainda se justificando moralmente. A anarquia que se vê no abuso de direito de liberdade de ação7 compromete e desacredita a luta de tantos outros movimentos que se esforçam em construir um novo modelo agrário para o Brasil. A conflituosidade, na espécie, radica no caráter acintoso da atitude do movimento social, assim como tal visto pelo desapossado. Isso mais se evidencia naqueles imóveis cujo atendimento aos pressupostos elementares da

função social é evidente e provável. É que nesses casos – modo geral –, os movimentos sociais não se assessoram

da melhor orientação na escolha de áreas de invasão/ocupação/tomada.

Prosseguindo no plano do radicalismo, em nada contribui a atitude dos possuidores (muitas vezes coincidente- mente proprietários) de vastas ou pequenas áreas que se encastelam na tese de que os sem-terra são todos um bando

de desocupados e oportunistas. Nesse ambiente, justificam-se na manutenção do preconceito e na ideia egoísta

de detenção da terra, fundados apenas na falida tradição pela tradição. E para o confronto se armam de estrutura

miliciana privada, sequer acatando a estrutura estatal, que, a bem da verdade, por vezes é lerda na presteza de sua

atuação, embora assim também se mostre na fiscalização da improdutividade, do abandono de imóveis rurais e dos

desmandos de seus prepotentes proprietários/possuidores.

É habitual, por razoável, pontuar-se a análise e o debate a partir de uma perspectiva focada na propriedade,8, 9 exi- bindo as informações quanto à evolução do seu conceito, até encontrar a sua realização operada na realidade brasileira (propriedade pública absoluta da Monarquia Portuguesa), desde tempos imemoriais, cravados na vivência lusitana, per- passando séculos, ao sabor alfonsino (1446), manuelino (1521) ou filipino (1603), enfim, transitando na história do

sesmarialismo10, etc. Disso não nos ocupamos, dispensável que se nos afigura nesta seara, cujo enfoque buscará a vivência

possessória, socorrendo-nos da propriedade no quanto se mostre mesmo viés imprescindível (e sempre muito será).11 12

Não prevalece, isso é sabido de há muito, aquela concepção essencialmente individualista, típica das correntes

liberais, segundo a qual a ação do indivíduo, primada na liberdade (quase absoluta), prescreve uma mínima esfera

de intervenção coercitiva do Estado. Mercê disso, tanto o proprietário ou possuidor deliberam, com exclusividade, como utilizar o bem (inclusive não utilizá-lo); de outro lado, ainda em sede de uma concepção ultrapassada, eivada de uma primária visão liberal (clássica), manifesta-se em perspectiva abusiva inversa aquela que defende a ação de indivíduo ou de grupo que, pela violência do inopino, da surpresa e do exclusivo arbítrio, insere-se num espaço físico que não lhe pertence nem constitui objeto de apropriação pública, nos trilhos do devido processo legal.

Justapostos o mundo do Direito (juridicidade) e a realidade social, desta inter-relação exsurge a dinamicida- de do Direito. Nesse quadro, curiosamente, não raro nos deparamos não só com um conflito socialmente posto à

vista de posições efetivas, factuais, diametralmente opostas, em sentido igual e contrário, mas vemos afirmar-se 7 – STF – Pleno – ADI-MC no 2.213-DF – Distrito Federal – Rel. Min. CELSODE MELLO – j. 4.4.2002 – publ. DJ 23.4.2002 – p. 00007 – Ementário vol. 02148-02 – p. 00296.

8 – Cfr. MOTTA, Maria Clara Mello. O conceito constitucional de propriedade: tradição ou mudança? (Estudo Comparado das Constituições de 1824, 1946 e 1988), Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1997, 218p.; SMITH, Roberto. Propriedade da terra & transição: estudo da formação da propriedade privada da terra e transição para o capitalismo no Brasil, São Paulo: Brasiliense, Programa Nacional do Centenário da República e Bicentenário da Inconfidência Mineira e CNPq, 1990, 362p.

9 – Para um aprofundado estudo sobre a propriedade, por todos, cfr. PERLINGIERI, Pietro. Introduzione alla problematica della “proprietà”, Camerino: Jovene, 1971, (Série Univer- sitá degli Studi di Camerino, Scuola di Perfezionamento in Diritto Civile, Lezioni reccolte da Pietro Perlingieri, no 1), 203p.

10 – Sobre sesmarias, cfr. PORTO, José da Costa. Estudo sobre o sistema sesmarial, Recife, 1965, 201 p. Apenas fazendo mercê a um informe histórico (cfr. BORGES, Marieta. Fernando de Noronha – cinco séculos de história, 2007), o arquipélago de Fernando de Noronha foi a primeira capitania hereditária no Brasil, ainda antes de ser adotado esse sistema de ocupação em larga escala, tendo sido cofiada ao donatário FERNÃODE LORONHA, “principal figura da Sociedade de Cristãos Novos na então colônia portuguesa. Ele recebeu

a doação em 16 de janeiro de 1504, mas diferentemente do que se chegou a crer, nunca esteve no arquipélago” (O Globo, 5 de janeiro de 2008, Caderno Ciência, p. 27).

11 – A propósito, são lições que se colhem em Ruy Barbosa, sempre amparado na doutrina e jurisprudência norte-americanas: (...) Acabemos, pois, de uma vez com o equívoco, definindo a verdadeira doutrina americana, que é a nossa. Uma questão pode ser distintamente política, altamente política, segundo alguns, até puramente fora dos domínios da justiça, e, contudo, em revestindo a forma de um pleito, estar na competência dos tribunais, desde que o ato, executivo, ou legislativo, contra o qual se demande, fira a Constituição, lesando ou negando um direito nela consagrado. (...) (BARBOSA, Ruy. O direito do Amazonas ao Acre setentrional, in Obras Completas de Rui Barbosa, Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura / Fundação Casa de Rui Barbosa, 1983, vol. XXXVII, t. V (1910), p.129). (...) Certo, dos casos meramente políticos não julga[m] os tribunais. Mas o caso cessa de ser meramente político, desde que nele se envolvem direitos legais de uma pessoa, de caráter privado ou público, judicialmente articulado contra outra. Porque meramente político é só o caso, em que um dos poderes do Estado exerce uma função de todo o ponto discricionária; não se pode ter como discricionária uma função que encontra limites expressos em um direito legalmente definido. (...) (BARBOSA, Ruy. Memória sôbre a eleição presidencial, in Obras Completas de Rui Barbosa, Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1971, vol. XXXVII, t. II (1910), p. 47). Cfr., ainda, do mesmo Ruy Barbosa, Os actos inconstitucionaes do Congresso e do Executivo ante à Justiça Federal, Capital Federal (Rio de Janeiro): Companhia Impressora, 1893, p. 144.

12 – No sentido específico das ações possessórias, cfr. DRESCH, Renato Luis. A repercussão da função social da propriedade nas ações possessórias, in A Lei Agrária Nova, org. Lucas Abreu Barroso et alli, Curitiba: Juruá, 2006, vol. I, p. 87-118.

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cada polo da discórdia com indicação ou respaldo normativo. Daí é que se evidencia para o jurista – operador do Direito – um conflito de comandos normativos ao oferecer para a espécie soluções antagônicas.

Assim, pois, aquele conflito de natureza fenomenológica então posto à análise e solução transcende da sua realidade e passa a figurar como um desafio, também, de caráter legal positivo e dogmático. E como num rosário de

especulações e profundas reflexões, traz por contas e mistérios profundos debates no campo filosófico aplicado.

Tratar a questão possessória, especialmente aquela que toca ao debate ideológico e ao confronto de ati-

tudes concretas de movimentos sociais organizados, como uma simplória situação judicial, cuja solução

repousa também em simples procedimento de mera subsunção, é mesmo uma postura alienada, covarde ou de deliberada ignorância.

No campo da dogmática e da hermenêutica possessória – seja do direito material ou processual –, não se há mais que proceder com um automatismo, crente na facilidade que ao ingênuo se afigura na elementar conjunção de um fato descrito como um dizer legal (aparentemente óbvio).

Eis que o dispositivo do CPC, art. 927, ao arrolar a prova da “posse” como pressuposto à concessão de prote-

ção interdital judicial (e até mesmo do desforço imediato), é típico dispositivo de conteúdo aberto ao conceito

que lhe empreste o tempo presente. E o Direito, como as instituições outras e a sociedade por primeiro, mudou,

evoluiu. As relações sociais de agora já não se estabelecem como as do início do século passado e nem se podem

pretender iguais para daqui a décadas. Porque a norma na sua generalidade não predetermina completamente o

ato de aplicação; o dizer de um dispositivo legal dever ser pensado e contextualizado, assim à luz dos ditames de

seu tempo, o tempo presente, indene de preconceitos calcificantes.13 Exemplo disso é o complexo de símbolos gráficos lexicais da bicentenária Constituição dos Estados Unidos da América do Norte, de 1797. As palavras

continuam as mesmas, mantidas as suas funções gramaticais e sintáticas, embora o conteúdo de seus comandos se tenham engrandecido na diuturna aplicação judicial, como atesta a quilométrica jurisprudência naquele solo construída (e em construção).

Na busca de uma chamada democracia substantiva, há um estímulo ao Poder Judiciário (por seus atores), a se empolgar, nas situações, como protagonistas do cenário político. Ao debate sobre o sistema judicial tem-se denominado judicialização da política e politização do Judiciário.14 O constitucionalismo democrático pode- se dizer como a resposta a um positivismo jurídico liberal no domínio do racionalismo das decisões judiciais. Houve, observa-se, uma modificação no permanente processo – sempre evolutivo – do pensamento jurídico em aprimoramento a caminho da almejada justiça. Se num momento histórico definido pelas revoluções liberais foi importante vigiar e atrelar o Judiciário, tão viciado que viu sob o Ancien Régime, ensejando a implantação de um modelo de integração e aplicação do Direito (positivismo jurídico), já sob o calor das grandes guerras da primeira metade do século XX, o imperativo foi outro. Já então o modelo político se assentara na regra das maiorias parla- mentares, e o resultado sanguinolento desafiou um novo modelo, voltado para assegurar direitos mínimos a todos (constitucionalismo democrático). Só então passa o Judiciário a perceber sua altiva e nobre função de guarda desses direitos “maiores” e fundamentais; não lhe basta mais a função de mero aplicador de leis, mantenedor de um status quo iminentemente liberal (acepção clássica).

Ora, se a noção mesma do Direito e dos direitos se expande, num mundo que experimenta profundas e rápi-

das modificações, a ponto de mostrar-se essencial na regulação de todo processo social, ao Judiciário passa a ser

exigida uma manifestação permanente de lucidez e capacidade de resposta aos naturais conflitos que emergiram no bojo dessa modernidade. À ausência da resposta pronta e engessada do normativismo hermético que o positivis-

mo jurídico engenhou, ao Judiciário houve de se reconhecer um mais largo espaço de discricionariedade. Mas não

a discricionariedade infundada, pelo contrário, uma discricionariedade constitucional, sobretudo democrática, o que legitima esta nova postura ativa do Poder Judiciário. E nossos tribunais superiores já se têm investido dessa

responsabilidade, preparando-se e praticando uma concepção de vanguarda.

13 – Cfr. OST, François. O Tempo do Direito (Le Temps du Droit), Lisboa: Instituto Piaget, 1999, 442p.

14 – Cfr. WERNECK VIANNA, Luiz et. alii. Judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, 232p.; RIBEIRO, Hélcio. Justiça e democracia: judicialização da política e controle externo da magistratura, Porto Alegre; Síntese, 2001, 186p.

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A nossa já vintenária Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88) não se furtou aos ares do contemporâneo. Forjada sob orientação de atualizada doutrina, sob os auspícios do quanto de moderno se pode haurir no constitucionalismo moderno, adotou o chamado modelo aberto, a clamar pela integração a partir do farto corpo de princípios que encerra. Uma constituição dirigente que prestigia o modelo de democracia

participativa, sensível ao declínio que se anuncia do modelo representativo, tão afeto à corrupção. É daí a legiti- midade democrática de atuação do moderno Judiciário. As razões de decidir não mais se prendem em estreitos espartilhos do achado de uma leitura meramente positivista; a Sociologia, a História, a Política, a Antropologia,

a Economia, dentre outras ciências ou ramos do saber, estão presentes e à disposição do julgador que deles não mais se pode furtar de considerar.

Da questão, na generalidade, passamos à especialidade, tocando os direitos sociais presentes nas denominadas

controvérsias de classe.

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