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3.2.1 – Do cumprimento da função social

De início registre-se que os requerentes declinaram da oportunidade de produzir prova documental do exercício de posse com função social.

Determinou-se aos requerentes a juntada da documentação comprobatória do aproveitamento racional e adequa- do; da utilização adequada dos recursos naturais disponíveis; da observância das disposições que regulam as relações do trabalho e da exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores, nos seguintes termos:

“Nos termos do art. 130, do C.P.C., determino venham aos autos, em 10 (dez) dias, a comprovação:

da produtividade do imóvel rural (art. 186, I da C.R.F.B./88 e arts. 6o e 9o, I, ambos da Lei no 8.629/93), apresentado o res- pectivo Certificado de Cadastro de Imóvel Rural (CCIR) atualizado (2006), bem como a ficha ‘visi record’ do gado porventura apascentado no imóvel, seja ele dos requerentes ou do possuidor direto;

da situação ambiental do imóvel (art. 186, II da C.R.F.B./88 e art. 9o, §2o da Lei no 8.629/93), demonstrado se há averbação da reserva legal em certidões de inteiro teor das matrículas e/ou transcrições imobiliárias, bem como eventuais licenças ambientais para exploração da terra e da água, concedidas para si ou em favor de possuidor direto;

da regularidade das relações trabalhistas (carteira de trabalho, recolhimento do INSS, etc.) mantidas com os eventuais empregados que laboram no imóvel, sejam ou não eles subordinados aos requerentes (art. 186, III da C.R.F.B./88 e art. 9o , III da Lei no 8.629/93);

das eventuais medidas implementadas no sentido do favorecimento da saúde, lazer e educação dos requerentes (pro- prietário, possuidor e/ou arrendatário) e dos trabalhadores (função bem-estar – art. 186, IV da C.R.F.B./88 e art. 9o, IV da Lei no 8.629/93).”

Ao termo da dilação de 30 (trinta) dias concedida para o mister (f. 536), deferindo pedido seu (f. 535), os re- querente nada carrearam aos autos, oferecendo tão-somente memorial com alegações finais, tornando preclusa a oportunidade de produção da prova documental (f. 546-554).

Nessa quadra do século XXI, já completados 20 (vinte anos) da vigência da Constituição Federal, forçoso reconhecer que passa a ser marcadamente documental a prova da posse imobiliária rural, especialmente em sede de conflito coletivo. Em lides desta natureza, os documentos (geralmente emitidos pela Administração Pública e, destarte, revestidos de pre-

sunção de legitimidade e legalidade) têm maior carga probante, em cotejo com a prova testemunhal. Assim, revelam-se

idôneos a comprovar posse produtiva: (1) – cartão de controle sanitário e (2) – ficha “visi record” do rebanho, emitidos pelo Instituto Mineiro de Agropecuária; (3) – certificado de cadastro do imóvel no INCRA, que declara sua produtividade ou improdutividade; (4) – notas fiscais de comercialização da produção agrícola, pecuária ou extrativa; (5) – guias de

trânsito animal expedidas pelo IMA ou por veterinários habilitados pela autarquia; (6) – comprovante de pagamento do

Imposto Territorial Rural (ITR) e (7) – certidão negativa de débito do imóvel para com a Receita Federal, que elidem a presunção absoluta de abandono do imóvel (art. 1.276, §2o do Código Civil). Para comprovar a posse conservadora dos

recursos naturais e do meio ambiente: (8) – averbação da reserva legal à margem da matrícula imobiliária, cuja inexis-

tência erige-se em infração administrativa ambiental (Decreto no 6.514, de 22 de julho de 2008; (9) – declaração para

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direito de uso dos recursos hídricos ou (11) – cadastro obrigatório, acaso insignificante o uso, fornecidos pelo Instituto

Mineiro de Gestão de Águas (Lei no 13.199/99) ou pela Agência Nacional de Águas (Lei no 9.433/97), conforme seja

estadual ou federal o curso d’água; (12) – cadastro de captação de águas estaduais subterrâneas (Lei no 13.771/00); (13)

– certidão negativa de infração ambiental, expedida pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis; (14) – autorização para exploração florestal, concedida pelo Instituto Estadual de Florestas. Para prova da posse conforme às normas de regência das relações de trabalho: (14) – carteira de trabalho, fichas de registro de empre- gados, visadas pelo Ministério Público do Trabalho; (15) – guias de recolhimento do Fundo de Garantia do Tempo de

Serviço e das contribuições previdenciárias ao Instituto Nacional de Seguro Social; (16) – declaração ao Sistema Empresa

de Recolhimento do FGTS e Informações à Previdência Social (Portaria Interministerial MPS/MTS no 227/2005); (17) –

certidão negativa de débito para com o INSS; (18) – certificado de regularidade do FGTS; (19) – inexistência de registro de infração por manutenção de trabalhadores em condições análogas à de escravo (Portaria no 540/2004 do Ministério do

Trabalho e Emprego) e um longo et coetera, pois o rol é meramente exemplificativo.

Nesse contexto, forçoso concluir o caráter subsidiário da prova oral, seja o depoimento das testemunhas ou das próprias partes, prestando-se tão-somente a suprir eventual insuficiência da prova documental, tudo, por óbvio, a ser apreciado no caso concreto, segundo um juízo de razoabilidade e proporcionalidade (nos moldes preconizados por ALEXY).

De se ver então:

a) – No caso dos autos, acompanham a petição inicial tão-somente as certidões de registro imobiliário (f. 20-

27), documentos sem aptidão para demonstrar qualquer posse. Olvidando-se de que a ordem jurídica já não mais tutela a posse clássica, apartada da função social, os requerentes, no decorrer do processo, descuraram de inovar o

conjunto probatório documental, que ficou restrito aos documentos que arrimam a inicial.

Assim, no tocante ao aproveitamento racional e adequado da propriedade, labora em desfavor da pretensão dos reque- rentes a classificação do imóvel como propriedade improdutiva pelo INCRA (f. 514).

Em visita ao local do conflito, o Juiz então oficiante registra impressão inicial de que o imóvel aparentava estado

de abandono. Relata que, depois de ter percorrido boa parte da divisa das terras ocupadas, foi possível perceber que,

à exceção da área cultivada pelos requeridos com feijão e milho, todo o terreno em volta era constituído de capoeiras, “com aparência de jamais ter sido cultivado ou utilizado em atividades de pecuária” (f. 289-290). Tal impressão, no decorrer da instrução, à míngua de outras provas, tornou-se convicção a se abraçar.

Com efeito, a prova testemunhal é evasiva e até contraditória, sem trazer elementos de cognição suficientes a demonstrar o exercício bastante de atividade econômica no período anterior próximo à ocupação.

Mais favorável aos requerentes é o testemunho de GERALDO DIVINO NEVES, que declarou:

“quem tomava conta da área invadida eram Moisés e Admilson; ambos residiam na propriedade como agregados e trabalhavam, de terça, com Erpino, um dos herdeiros que administrava a propriedade; na propriedade tinha lavoura de milho, feijão, um pouco de arroz; na propriedade tinha animais de Erpino e de Antônio, pai de Admilson, que também morava no local antes de falecer; que o autor Erpino tinha na propriedade umas éguas” (f. 503).

No mesmo sentido, o depoimento da testemunha ERLY NAVARRO ORTEGA, acrescentando que “inclusive tirava leite para a Cooperativa”. Ressalva, porém, que “atualmente os ocupantes cultivam milho e feijão; que a área agora é mais pro- dutiva, pois o pasto foi capinado” (negrejei - f. 504).

ODÁLIO ESTEVES PEREIRA atesta que na propriedade havia “uma roça de milho, alguns animais, umas éguas de proprie- dade de um dos herdeiros, Erpino” (f. 501), confirmado pelo depoimento de CARLOS ALVES RAMOS, destacando, todavia, que no imóvel não havia nenhum animal (f. 502).

Assim, os testemunhos, se tanto, constituem-se em meros indícios do exercício de alguma atividade econômica, inidôneos, contudo, à formação do juízo de certeza da adequação, racionalidade e atualidade do aproveitamento, necessário à concessão da tutela possessória definitiva.

É certo que, nesta seara, importa a prova de que o imóvel não se encontra em estado de abandono, segundo os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. Sob pena de infligir às partes ônus probatório desproporcional e

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terra (GUT) e eficiência na exploração (GEE), utilizados pelo INCRA no procedimento de desapropriação por interesse social, para fins de reforma agrária, muito embora seja importante o cumprimento deles. O que se põe em destaque nesta chamada de atenção é a circunstancialidade da análise: se há abandono do imóvel ou descumprimento tal dos índices a caracterizar o abandono; ou, de outro lado, o descumprimento em limites não relevantes para evidenciar o

abandono (mera irregularidade). O abandono do imóvel ou a subutilização em grau tal que não concretize a função

social constitui-se em exercício abusivo do direito de propriedade, desconforme à Constituição e repudiado, como

ilícito, pelo ordenamento jurídico (art. 187 do Código Civil).215

No caso concreto, não desconstituída por qualquer prova em contrário, permanece hígida a declaração de im-

produtividade do imóvel, pela autarquia federal (f. 122 e 514).

Não demonstrado, pois, o exercício racional e adequado de atividade econômica no imóvel, no período ime-

diatamente anterior ao ajuizamento da presente ação.

(Embora a Constituição Federal – art. 186 da CF/88 – proclame rol exaustivo de observância estrita conco-

mitante daqueles requisitos, valendo o descumprimento de apenas um deles o bastante para desqualificar qualquer

posse como subconstitucional e até mesmo inconstitucional, prosseguimos na análise dos demais tópicos especifi- cados no referido dispositivo constitucional)

b) – O valor social do trabalho, fundamento da República Federativa do Brasil e, de modo específico, da ordem

econômica (art. 1o, V e art. 170 da C.R.F.B./88), repercute na função social do imóvel, razão por que, no cumpri-

mento, hão de se observar as disposições de regência das relações de trabalho (art. 186, III da C.R.F.B./88). Assim, sob a lógica do razoável, a valoração do trabalho há de privilegiar não apenas a observância de direitos

trabalhistas em sentido estrito (direitos do trabalho), mas também e principalmente o direito ao trabalho, assim

entendida a oportunidade de emprego remunerado e, por corolário, de ascensão social, existência digna e redução

de desigualdades. Sob esse aspecto, cumprirá a função social a posse que se exerça não mais individualmente, mas

coletivamente, de modo compartilhado com aqueles que carecem de trabalho.

No caso concreto, prova alguma foi produzida a tal propósito. Dizem os requerentes, e as testemunhas confir- mam, que no imóvel havia dois “agregados”, ao que parece antigos posseiros.

Cumpria aos requerentes demonstrar, como fato constitutivo de seu direito, a regularidade do vínculo esta- belecido com os trabalhadores da terra, seja sob regime de emprego seja em razão do liame contratual rural. Sabe-se que a legislação específica, entre outras vedações, proíbe ao proprietário exigir do parceiro a prestação de serviço

gratuito e efetuar pagamento em “ordens”, “vales” ou outras formas regionais substitutivas da moeda (art. 93 da

Lei no 4.504/64). Sabe-se, também, a lei garante ao trabalhador, remunerado parte em dinheiro e parte em per-

centual da lavoura cultivada ou gado tratado, a percepção do salário mínimo, no cômputo das duas parcelas (art.

96, §4o da Lei no 4.504/64). Assim, competia aos requerentes instruir os autos com prova indicativa da higidez

do vínculo, quer empregatício, quer contratual rural, a que mesmo foram instados a fazer (f. 524-526). Contudo,

os requerentes não se desincumbiram do ônus de provar tal aspecto da posse.

Pelo que se pode inferir do anêmico conjunto probatório, repete-se aqui o modelo de relação social típico do am- biente rural brasileiro do século XIX, baseado em ajustes pessoais de concessões e trocas entre desiguais, o fazendeiro e o agregado:216 de um lado, proteção, terra, habitação, alimento; de outro, trabalho, obediência, dependência, lealdade. Sem perquirir as vantagens e desvantagens do trabalho assalariado, certo é que arcaico modelo patriarcal toma por dádiva aquilo que, na modernidade, é reconhecido como direito. De todo modo, paira a incerteza da natureza do vín-

culo entre o proprietário e o quase-empregado, quase-membro da família. Na crise do modelo, geralmente decorrente

do rompimento do vínculo pessoal, seja por falecimento do patriarca, seja pela transferência da propriedade, o agregado vem a juízo reclamar como direito aquilo que para o proprietário eram benesses ou, em outra hipótese, sob a premissa de que dons e favores não obrigam, o agregado, sem mais, é alijado da terra.

215 – “Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.”

216 – RIBEIRO, Áureo Eduardo Magalhães. Agregação e poder rural nas fazendas do baixo jequitinhonha mineiro, in Revista Unimontes Científica, no 2, vol. 5, julho/dezembro de 2003.

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No que diz respeito ao aspecto do exercício de posse como fonte de bem-estar aos proprietários/possuidores e trabalhadores, traduzido em exploração que ofereça condições materiais capazes de ensejar existência digna, a prova oral sinaliza no sentido da exploração geratriz de tensões sociais no imóvel. Com efeito, confessam os requerentes que os antigos posseiros, ADMILSON NUNESDOS SANTOS e MOISÉS COELHODOS SANTOS, aderiram à ação do movimento so- cial, tornando manifesto o conflito social no imóvel (f. 04). No mesmo sentido, colhe-se da prova testemunhal:

“que conhece a área em litígio, invadida acerca de 03 anos por movimento de integrantes sem terras, conhecendo alguns deles, apenas de vista (...); que conhece Admilson e Moisés, ambos já moravam na propriedade antes da invasão; conheceu também An- tônio, que morava na propriedade e era pai de Admilson; que, pelo que percebeu, Admilson e Moisés, depois da invasão, passaram a integrar aquele grupo” (ODÁLIO ESTEVES PEREIRA – f. 501);

“que na propriedade havia um agregado conhecido como ‘Didi’, que inclusive aderiu ao movimento de invasão; que tam- bém Moisés morava na propriedade, que também aderiu ao movimento da invasão, inclusive fazia guarda na guarita, para não deixar ninguém entrar” (CARLOS ALVES RAMOS – f. 502);

“pelo que percebeu no movimento, tanto Admilson como Moisés passaram a integrar o movimento de invasão” (GERALDO DIVINO NEVES – f. 503).

O curioso fato da adesão dos “agregados” ao movimento social revela a ausência de relação de subordinação entre si e os requerentes, em prejuízo da veracidade da alegação de que aqueles possuíam ou detinham o imóvel em nome destes.

Demais disso, não há nos autos indício ou prova de que o imóvel seja dotado de benfeitorias, instalações e per- tenças que objetivem atender as necessidades básicas de eventuais trabalhadores e proprietários/possuidores. Bem observa o Ministério Público que sequer há no imóvel casa-sede. As únicas edificações que ali existem, além da pon- te e dos barracões levantados pelos requeridos, são três casas antigas de alvenaria, moradia dos agregados (f.561).

Por óbvio, o imóvel que não se utiliza como fator de produção tampouco se habilitará à geração de trabalho e

emprego, à distribuição de renda ou ao favorecimento da saúde, educação e lazer (bem-estar) de quantos circulem

naquele microcosmo social.

Assim, ausente já o antecedente lógico do aproveitamento econômico adequado, também não resta provado o exercício de posse orientada à satisfação do elemento social (observância das normas que regulam as relações de

trabalho e exploração que favoreça o bem-estar), em reforço da convicção de abandono do imóvel.

Por tudo, sem notícia de observância das disposições que regulam as relações de trabalho.

c) – O exercício da posse da propriedade rural, em consonância com as diretrizes constitucionais, só atenderá

à função social quando, ainda que usada economicamente em aproveitamento racional e adequado, harmonize a exploração e a preservação (incluída a recuperação) do meio ambiente, enfocando o paradigma da exploração

sustentável, baseada em práticas que estimulam a diversidade da fauna e da flora, comprometidas com a conser- vação dos recursos naturais. E nesse paradigma é que cumpre a justiça social prevista no art. 170, III da C.F./88,

atendendo, além, ao art. 186 e seus incisos, da C.R.F.B./88.

De início, verifica-se desatendida disposição do Código Florestal (art. 16, §2o da Lei 4.771/65), não se encon-

trando averbada, à margem das matrículas imobiliárias, abertas em 1993 e 1998 (f. 20-27), a área de reserva legal, correspondente no mínimo a 20% da superfície total, que pudesse evidenciar, ao menos em um sentido formal, a preservação do meio ambiente. Cuida-se de obrigação legal cujo inadimplemento tipifica infração administrativa am- biental, sancionada com multa, nos termos do recente Decreto no 6.514, de 22 de julho de 2008.

Além, em análise teleológica da norma, a mera irregularidade formal não compromete o cumprimento da di- mensão ambiental da função social, desde que o requerente logre demonstrar a existência concreta da reserva legal e sua efetiva conservação ou regeneração. Não é, contudo, o caso dos autos, em que não se produziu qualquer prova nesse sentido, a tanto não se prestando a proposta de venda do imóvel. Não obstante ali se mencione a exis- tência de reserva legal e áreas de preservação permanente, a força probante do documento particular é mitigada pela unilateralidade da elaboração (f. 124).

Por tudo, então, não havendo os requerentes demonstrado o exercício de posse conforme à Constituição Federal, em

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