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VISTOS, ETC.

Cuida-se de AÇÃO DE MANUTENÇÃO DE POSSE, convertida em AÇÃO DE REITEGRAÇÃO DE POSSE, aforada por PAULO VELOSO DOS SANTOS e EREMITA BARCELOS VELOSO contra MOVIMENTO DOS TRA-

BALHADORES RURAIS SEM TERRA – MST, MANOEL DA CONCEIÇÃO VAZ e requeridos incertos ou des- conhecidos. Dizem-se proprietários e possuidores da Fazenda Jardim, em Unaí/MG, com área de 1.806,18,80 ha, de cuja posse teriam sido turbados pelos requeridos em 05.09.2004, ao ocuparem uma área com 91,98,05 ha.

Alegam que o imóvel é produtivo, onde exercem atividade pecuária, apascentando mais de 1.700 reses. Afirmam-se quites os encargos tributários e trabalhistas e atendidas as normas sanitárias. Pedem, desde a concessão liminar, a ordem de manutenção (f. 02-05 e 555). Juntam documentos (f. 06-528).

Concessão liminar de manutenção da posse sobre os semoventes (f. 531), cumprida (f. 585).

Ouvido o M.P., pelo deferimento (f. 534-538), foi concedida liminarmente a ordem reintegratória (f.541-543), bastante cumprida (f. 576).

Comparecimento espontâneo ao processo de MANOEL DA CONCEIÇÃO VAZ (f. 550-551), incluído no pólo

passivo (f. 568). Citação ficta (f. 549, 563, 564, 590). Os requeridos são revéis (f. 591).

Contestação, pelo Curador Especial nomeado aos revéis citados por edital (f. 593-594), que, em preliminar,

argúi nulidade da citação e carência de ação. No mérito, alega descumprimento da função social (f. 595-598).

Impugnação (f. 608-609).

Rejeição das preliminares (f. 611-612).

Em audiências (03.08.2005 e 20.09.2005), foram ouvidos o requerente (f. 635-636) e três testemunhas (f. 650-652).

Memoriais, com razões finais: requeridos (f. 656-657), requerente (f. 663-666); o M.P., pela improcedência (f. 668-674).

É o relatório.

ii – FuNDAmENtAção

* (...) *

3 – o cASo NA ESpEciAliDADE

Estabelecidas, pois, as premissas a cuja luz decidir-se-á a lide, passamos aos termos do caso na especialidade.

1 – O esbulho vem relatado pela autoridade policial no boletim de ocorrência, ali constando que “os invasores

haviam montado acampamento com barraca de lonas às margens do Rio Preto e bloquearam a entrada do acampamento para impedir o acesso ao interior do mesmo” (f. 07-08).

As testemunhas foram unânimes na confirmação da perda da posse:

“sabe dizer que Paulo está na posse da Fazenda Jardim há pelo menos 03 anos; a Fazenda Jardim foi invadida pelo MST no mês de setembro de 2004” (JOSÉ RODRIGUES CALDEIRA – f. 650);

“Paulo está na posse da Fazenda; (...) a Fazenda foi invadida em setembro de 2004 por integrantes do movimento Sem Terra” (NIVALDIR PEREIRADA COSTA – f. 651);

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“a fazenda tem como possuidor a pessoa de Paulo Veloso dos Santos; (...) que o MST invadiu a Fazenda no mês de setembro de 2004” (ALDEMARDE SOUSA ROCHA – f. 652).

2 – No tocante ao aproveitamento racional e adequado da propriedade, acompanham a inicial fotografias (e

respectivos negativos) de rebanho bovino encontrável no imóvel, bem como de pastagens formadas (f. 49-52). O

cartão de controle sanitário de f. 41 registra um efetivo pecuário de 1.705 (mil, setecentas e cinco) cabeças na fa-

zenda. As notas fiscais de produtor, de entrada e saída de insumos agropecuários, as guias de trânsito animal (f. 104-463) e as declarações de produtor rural (f. 23-28) demonstram o exercício de intensa atividade pecuária no indigitado imóvel, no período imediatamente anterior ao ajuizamento da presente ação.

Resta suficientemente demonstrado, pois, o exercício de atividade econômica no imóvel.

3 – Há nos autos indícios da utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente. O efetivo pecuário encontrado no imóvel (1.705 cabeças – f. 41) é compatível com a extensão da proprie-

dade (1.860,84,50 ha), sinalizando o uso racional e não-predatório da terra.

Encontra-se parcialmente atendida disposição da legislação ambiental (art. 16, §2o da Lei no 4.771/65), estan-

do averbada, à margem de matrícula imobiliária, área de reserva legal (f. 11v).

Muito embora o percentual da área reservada não atinja o parâmetro legal de 20% da superfície total do imóvel, não há, por outro lado, prova da inexistência da averbação no registro das demais glebas que compõem a Fazenda Jardim. Com efeito, vindo aos autos tão somente as escrituras de aquisição de 1.345,22,50 ha (f .09-10, 12, 14-15, 16 e 17-18), fica o julgador in albis sobre a efetiva inexistência da averbação registral.

Acrescente-se que 5 (cinco) das 8 (oito) glebas de que se compõe o imóvel (f. 09-10, 13, 14-15, 16 e 17-18) foram adquiridas anteriormente à edição da Lei no 7.803/89, que acrescentou os §§ 2o e 3o ao art. 16 do Código Florestal.

Exigir a averbação, nesse caso, importa flagrante violação do princípio da legalidade (art. 5o, II da C.R.F.B./88).

De se destacar, ainda, a controvérsia jurisprudencial que paira sobre a questão da obrigatoriedade da averbação. A própria Corte Superior do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, no julgamento do Mandado de Segurança no

1.000.00.279477-4/000, assentou o entendimento de que o Código Florestal não impõe a averbação da reserva legal

a todo e qualquer imóvel rural nem condiciona a prática de atos notariais e registrais à averbação, ali tratada como

mero ato administrativo autônomo, sem caráter auto-executório.

Conquanto não se ignore a incipiente (e salutar) mudança na orientação, na esteira de precedente do Supe-

rior Tribunal de Justiça (RMS no 18.301/MG, Rel. Min. JOÃO OTÁVIODE NORONHA, j. 24.08.2005), grassa ainda

a controvérsia no T.J.M.G., de que são exemplos, favoráveis à obrigatoriedade da averbação, os recentes julga- dos no 1.0694.06.031274-1/001(1), Rel. Des. MAURÍCIO BARROS, j. 03.07.2007; 1.0499.06.000299-9/001(1), Rel. Des. ARMANDO FREIRE, j. 12.06.2007; 1.0309.04.001296-0/001(1), Rel. Des. EDGARD PENNA AMORIM, j. 01.03.2007; 1.0694.06.030368-2/001(1), Rel. Des. EDILSON FERNANDES, j. 09.01.2007 e 1.0517.05.978219-6/000(1), Rel. Des. MARIA ELZA, j. 06.04.2006. E, contrários, os julgados no 1.0283.05.002623-8/001(1), Rel. Des. SILAS VIEIRA, j. 26.04.2007; 1.0000.07.449726-4/000(1), Rel. Des. BELIZÁRIO DE LACERDA, j. 29.05.2007; 1.0283.06.004492-4 /001(1), Rel. Des. BELIZÁRIODE LACERDA, j. 22.05.2007; 1.0694.06.031433-3/001(1), Rel. Des. ALBERGARIA COSTA, j. 29.03.2007 e 1.0283.06.004242-3/001(1), Rel. Des. ALBERGARIA COSTA, j. 08.03.2007.

Revela-se, pois, desproporcional exigir do jurisdicionado a observância de conduta cuja imposição nem

ao menos pacífica perante os tribunais. Assim, milita em prol da legitimidade da pretensão dos requerentes

o laudo elaborado por engenheiro-agrônomo (f. 30-38), acompanhado de Anotação de Responsabilidade

Técnica perante o CREA-MG (f. 39). Ali se registra a existência de uma área de preservação permanente com

109,73,36 ha e uma área de reserva legal com 355,33,94 ha, satisfazendo o requisito da função social, no tangente à dimensão ambiental.

E por derradeiro, mas não em último, é de se privilegiar, em análise teleológica da norma, a concreta preserva-

ção de área de reserva legal, em detrimento da exigência de observância de formalidade administrativa. A própria

Justiça Federal, a quem compete julgar ações de desapropriação para fins de reforma agrária, vem entendendo que a

irregularidade formal não compromete o cumprimento da função social da propriedade. A tal propósito, lúcida ma-

nos autos do processo no 2003.35.011233-7, em trâmite perante a 9a Vara da Justiça Federal de 1a Instância, Seção Judiciária do Estado de Goiás:

“Entende este Órgão Ministerial que, muito embora tenha ficado caracterizado nos autos que a indigitada reserva legal não fora devidamente averbada antes da vistoria administrativa, mas somente após a mesma, a confirmação de sua existência torna-se suficiente para que esta seja considerada no cálculo do Grau de Utilização da Terra – GUT do imóvel em estudo. (...) A obrigação de preservar a área relativa à reserva legal decorre de lei, ainda que não esteja averbada. Se- gundo o Código Florestal, o proprietário está impedido de explorar pelo menos 20% de sua propriedade rural (art. 16, “a” e parágrafos 2o e 3o), independentemente de haver assinado e averbado no registro imobiliário o termo de compromisso de preservação de reserva legal. (...) O Ministério Público Federal, apesar de ter conhecimento e respeitar a posição adotada pelo Supremo Tribunal Federal [de não considerar como reserva legal área não averbada], não pode com ela concordar. Se assim o fizesse, estaria sendo conivente com uma formalidade que despreza a real situação fática do imóvel, prejudicando de forma desproporcional uma das partes, o que não pode ser tolerado. A Lei Ambiental tutela a preservação do meio ambiente e não a burocracia. De se ressaltar que a Lei no 8.629/93, em seu art. 10, IV, considera a área de reserva legal não aproveitável para fins de cálculo da produtividade do imóvel, não condicionando esta exclusão ao fato de estar averbada no registro imobiliário.”2081

4 – A par de racional e adequada, a exploração econômica também se mostra favorecedora da saúde, educação

e lazer dos proprietários, empregados, vizinhos, sem indícios de que ali se exerçam atividades periculosas, penosas ou insalubres, em risco à integridade física e psíquica de quantos circulem naquele microcosmo social. Tampouco há provas de que a posse exercida pelos requerentes gere conflitos e tensões sociais no imóvel.

De tudo, pelo contrário, extrai-se das certidões (f. 09-10, 14-15, 16, 17-18 e 22-22) e fotografias (f. 49-68) que acompanham a inicial que o imóvel é dotado de poço artesiano, casas de colono, rede de energia elétrica e outros

equipamentos, capazes de atender às necessidades básicas dos trabalhadores.

5 – No cumprimento da função social, é requisito necessário, embora insuficiente, a observância das disposições

de regência das relações de trabalho (art. 186, III da C.R.F.B./88). Ancorado no fato omissivo da exibição das car-

teiras funcionais, o M.P. sustenta o descumprimento da função social (f. 668-674).

A verificação da irregularidade, contudo, restou frustrada pela insuficiente instrução do feito, visto a questão

não haver sido explorada pelos requeridos, que têm defensor nos autos, nem pelo próprio órgão ministerial, que

a deixaram – todos – passar em branco quanto a discuti-la e prová-la em audiência, declinando da oportunidade de a respeito inquirir o requerente e seu empregado, testemunha não contraditada (f. 636 e 652).

A função social da propriedade, por certo, repercute o valor social do trabalho, fundamento da República Fede- rativa do Brasil e, de modo específico, da ordem econômica (art. 1o, V e art. 170 da C.R.F.B./88).

Porém, na dicção do direito, deve o julgador atentar sobretudo aos efeitos concretos que os valores eleitos pelo sistema produzirão na composição dos litígios, em detrimento da valoração genérica e abstrata ínsita à norma.

Assim, dentro da lógica do razoável, a valoração do trabalho há de privilegiar não apenas a observância de direitos trabalhistas em sentido estrito (direitos do trabalho), mas também e principalmente o direito ao trabalho, assim entendida a oportunidade de emprego remunerado e, por corolário, de ascensão social, existência digna e redução

de desigualdades. Sob esse aspecto, cumprirá a função social a posse que se exerça não mais individualmente, mas

coletivamente, de modo compartilhado com aqueles que carecem de trabalho.

No caso concreto, provou-se o emprego de 5 (cinco) trabalhadores, a par do pagamento de salários e verbas tra- balhistas como 13o salário, hora-extra, descanso remunerado sobre hora-extra, remuneração extraordinária do traba- lho prestado aos feriados e domingos, férias, abono obrigatório sobre férias e salário-família (f. 464-526). Dos recibos extraem-se ainda elementos que sinalizam o recolhimento de encargos previdenciários e sindicais.

Não há prova, indício ou alegação de que no imóvel se patrocinasse trabalho escravo ou degradante, condutas

que, por afrontarem a dignidade humana, fundamento do Estado Democrático de Direito, repugnam à Constitui-

ção e à lei, tais a embasar a negativa da tutela possessória.

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Nesse contexto, a suposta infração, se existiu, nada representou no âmbito da verificação do cumprimento

da função social. Acaso relevante, a irregularidade haveria de ser sanada e mesmo sancionada – fosse o caso – em via própria. Não há nos autos notícia sequer de que o Ministério Público tenha requerido ou adotado alguma pro- vidência entendida necessária ao saneamento de irregularidade que saiba existente, em prejuízo da gravidade que

vem atribuir à questão no parecer de f. 668-674, data venia.

O legislador constituinte dispôs que a função social da propriedade rural cumpre-se segundo graus e critérios

estabelecidos em lei (art. 186). O espectro dos bens sociais valorados como indicadores do cumprimento da função

social admite, pois, gradação e escalonamento, sempre sob a ótica da razoabilidade e da proporcionalidade. Na solução dos conflitos, o julgador renunciará a um grau absoluto de certeza, sob pena de infligir às partes

ônus probatório desproporcional e inatingível, em prejuízo da justiça da decisão.

Assim, suficientemente atendidos todos os requisitos da função social, não há razoabilidade em se negar a tutela possessória aos requerentes, a modo de verdadeira pena por suposta inobservância de específica norma trabalhista. No deslinde de causa dessa natureza, rejeita-se o rigor do esquadrinhamento microscópico dos requisitos consti- tucionais da função social, sob pena de banalizar-se questão tão relevante quanto a da perda da posse imobiliária.

As lides de alta densidade social, como soem ser as possessórias coletivas, requerem sensibilidade bastante do Poder Judiciário, na pena do julgador, de modo a perceber que a solução do conflito, já a tal distância no tempo, deve cuidar de não reverter o delicado equilíbrio em que os fatos se acomodaram no decorrer do processo. Com- pete ao julgador, na aplicação do direito, orientar-se sempre pelo princípio da estabilidade social, de modo a evitar a perpetuação ou, o que seria pior, a ressurreição do conflito.

Por legítima que seja a pressão sobre o INCRA pela obtenção da terra, o apego quase ritualístico a detalhes, a essa altura, atira o jurisdicionado em situação de abandono, ao mesmo tempo em que, de modo nefasto, estimula a atuação dos movimentos sociais como justiceiros. Isso vale, por óbvio, noutra vertente, quando se cuida da vio- lência semeada por milícias armadas.

iii – DiSpoSitivo

POSTO ISSO, e considerando o mais quanto dos autos consta, JULGO PROCEDENTE O PEDIDO AVIADO NA INICIAL POR PAULO VELOSO DOS SANTOS e EREMITA BARCELOS VELOSO contra MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA – MST, MANOEL DA CONCEIÇÃO VAZ e requeridos INCERTOS ou DESCONHECIDOS, TORNANDO DEFINITIVA A LIMINAR CONCEDIDA.

Condeno os requeridos nas custas processuais, além de suportar honorários de R$1.000,00 (mil reais) devi-

dos ao Advogado dos requerentes, tendo em conta o comprido tempo do serviço, a relevância da causa, que trata de um sério conflito social de proporção considerável, e o empenho demonstrado no trabalho do profissional (art. 20, §§ 4O e 3O do C.P.C.), ficando suspensa a exigibilidade, em razão do benefício da assistência judiciária

gratuita (f. 612).

Transitada em julgado, arquivar, com baixa.

Altere-se a classe para AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE.

Desentranhem-se as cópias de f. 659-662, já substituídas pelos originais (f. 663-666), restituindo-as ao advoga-

do, mediante recibo, tudo certificado.

P.R.I.C..

Belo Horizonte, 31 de agosto de 2007. (Publicação Minas Gerais, 5.9.2007) Osvaldo Oliveira Araújo Firmo

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comarca de Belo Horizonte

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