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1.3 – Da hermenêutica constitucional à exegética infraconstitucional

Conquanto nos empolgue a possibilidade de uma interpretação pluralista e livre da Constituição, mais ou menos nos moldes propostos por PETER HÄBERLE,98 não nos consola aferrarmo-nos nela pelo mero prazer da interpre- tação – atividade essencialmente intelectual, tarefa lógica com trânsito entre categorias inflexíveis. Bem mais

que isso, aguça-nos pelo desafio de dar vida às normas na aplicação do Direito – processo de enfrentamento das exigências numa exegese extensiva, filológica, atualizadora das leis na vertente das possibilidades ensejadas pelas

mudanças.99 Prevalece, mais que tudo, a necessidade premente da confecção de uma nova exegese em sede dos

conflitos coletivos agrários.

96 – Cfr., em meio a tantas obras, v. g., SOUZA NETO, Cláudio Pereira de e SARMENTO, Daniel (Coordenadores). A Constitucionalização do Direito: fundamentos teóricos e aplicações específicas, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, 1.009p.; AA.VV. Direitos Constitucionalizados, coord. Adrolado Leão e Rodolfo Pamplona Filho, Rio de Janeiro: Forense, 2005, 448p.; AA.VV. Constitucionalização do Direito: a Constituição como locus da hermenêutica jurídica, org. André Andrade, Rio de Janeiro: Lumen Juris Editora, 2003, 551p.; RAMOS, Carmem Lucia Silveira. A Constitucionalização do Direito Privado e a sociedade sem fronteiras, in Repensando Fundamentos do Direito Civil Brasileiro Contemporâneo, Luiz Edson Fachin (Coord.), Rio de Janeiro: Renovar, 1988, p. 3-29; GSCHWENDTNER, Loacir. A constitucionalização do direito privado contemporâneo, Florianópolis: OAB/SC Editora, 2006, 174 p.; BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalixcação do direito: o triunfo tardio do direito constitucional no Brasil in 20 Anos da Constituição Cidadã, Zulmar Fachin (Coord.), Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2008, 101-148.

97 – GARCIA, Juan Antônio Alejandre. Derecho del constitucionalismo y la codificación, in Temas de História del Derecho, Sevilla: Publicaciones de la Universidade de Sevilla, 1978, vol. I, 197 p.; FERNÁNDEZ, Enrique Gacto. Derecho del constitucionalismo y da codificación, in Temas de História del Derecho, Sevilla: Publicaciones de la Uni- versidad de Sevilla, 1979, vol. II, 284 p.; ANDRADE, Fábio Siebencichler. Da codificação: crônica de um conceito, Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 1997, 189 p.; LORENZETTI, Ricardo Luis. Fundamentos do direito privado (Las normas fundamentales de derecho privado), trad. Vera Maria Jacob de Fradera. São Paulo: Editora RT, 1998, 613 p.; TEPEDINO, Gustavo (coord.). Problemas de Direito Civil Constitucional, Rio de Janeiro/São Paulo: Renovar, 2000, 577 p.; TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil, 2 ed. rev. e atual., Rio de Janeiro/São Paulo: Renovar, 2001, 521p.; MARTINS-COSTA, Judith (org.). A construção do direito privado: reflexos dos princípios, diretrizes e direitos fundamentais constitucionais no direito privado, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, 861 p.; PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil: introdução ao direito civil constitucional, 2 ed., Rio de Janeiro: Renovar, trad. Maria Cristina de Cicco, 2002, 359 p.; RAMOS, Carmem Lúcia Silveira et alli (org). Diálogos sobre direito civil: construindo a racionalidade contemporânea, Rio de Janeiro/São Paulo: Renovar, 2002, 537 p.; SARMENTO, Daniel. A ponderação de interesses na consti- tuição federal, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, 220 p.; ANDRADE, André (org.). A constitucionalização do Direito: a constituição como locus da hermenêutica jurídica, Rio de Janeiro, Lúmen Juris, 2003, 551 p.; BARROSO, Luís Roberto (org.). A nova interpretação constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas, Rio de Janeiro: Renovar, 2003, 419 p.; BARROSO, Luís Roberto. Temas de direito constitucional, Rio de Janeiro/São Paulo: Renovar, Tomo II, Parte I, 2003, p. 3-46 (Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito Constitucional brasileiro: pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo); LOTUFO, Renan (coord.). Direito civil constitucional, São Paulo: Malheiros, caderno 3, 2003, 334 p.; ROBERTO, Giordano Bruno Soares. Introdução à história do direito privado e da codificação: uma análise do novo código civil, Belo Horizonte: Del Rey, 2003, 129 p.; SARLET, Ingo Wolfgang (org.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, 357 p.; SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, 410 p.

98 – Cfr. HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional. A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição (Die offene Gesellschaft der Verfassungsinterpreten. Ein Breitrag zur pluralistischen und “prozessualen” Verfassungsinterpretation), trad. Gilmar Mendes, Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1987, 55p.

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Quando se discute o Estado Democrático de Direito, importa observar a perspectiva de sua submissão à

Constituição e não à lei. Isso implica considerar um novo momento da vivência jurídica a que alguns denominam Estado Constitucional de Direito ou simplesmente Estado Constitucional. Basta-se aí reconhecida a importância

atual da Constituição, afastando-se evidentemente dos coloridos liberais de superdimensionamento da lei (com a prevalência do privado). Porém, nunca se há de perder de vista que, a despeito de a Constituição deter tal relevo, a vida que acontece sob ela não se limitará jamais a mera “execução da Constituição”.100 Esta passagem do Estado de Direito Legal ao Estado de Direito Constitucional implica um salto de qualidade, fato não desconsiderado por

ZAGREBELSHY e GARCÍA PELAYO, como mesmo destaca ANTONIO-CARLOS PEREIRA MENAUT.101 De tudo isso temos o prota- gonismo judicial, quando as tormentosas questões sociais, convoladas em jurídicas na formulação processual,

submetem-se ao crivo de uma sentença.

De outro lado, a atuação judicial, mercê da jurisprudência (lato sensu), enseja, de algum modo, determinar-se o justo discriminando o injusto. Se o mundo fático sobre o qual se constrói a norma vive em plena mudança, a norma jurídica, sem que se lhe seja imposta qualquer alteração gráfica, pode passar a uma nova significação.102 E tal aconteceu com o nosso sistema jurídico, a partir de uma nova ética valorativa, em que um vigente individualismo

jurídico cedeu “lugar a suma compreensão social e humanística do Direito.”103 Particularmente se se toca em direitos

fundamentais nas relações possessórias, igualdade e liberdade hão de ser harmonizadas a partir do prisma cons- titucional. O conjunto de preceitos de conteúdo privatista contribuirá, porém, num segundo momento, valendo

qualquer advertência de moderação na empreitada para evitar-se o risco da exclusividade de um judicialismo

constitucional.

Mais do que nunca a tendência do Direito moderno é, na sua dinâmica, fundar-se em preceitos principioló-

gicos – fundamentais, bem como considerar especialmente os contributos da semântica jurídica. Os princípios

ensejam, sobretudo, a favor do Direito e das pessoas, uma abertura interpretativa, mas também o “fornecimento de elementos essenciais para a análise sistemática da ordem jurídica positiva, e a consequente manutenção de sua unidade.”104

Apesar de a Constituição guardar características particularíssimas por sua natureza superior, não se descon- sidere que, em princípio, mesma é a técnica de investigação legislativa que remanesce para as leis ordinárias. Melhor explicando, a elaboração das normas positivadas – constitucionais ou ordinárias – segue técnica única, com preceitos gerais, aplicáveis, quanto à lógica do texto, desde à Constituição até aos mais elementares dos

estatutos ou portarias.

Eis que a concretização daqueles valores impressos pelo constituinte no Texto Magno há de acontecer, seja pelas mãos do legislador infraconstitucional, seja pelos operadores do Direito indistintamente, seja pelo cidadão enfim. Reduz-se tudo à conscientização geral: autoridades, profissionais e povo. E em sede de direito fundamental de

propriedade, muito se acomete ao legislador ordinário (infraconstitucional), ao contemplar as múltiplas situações

de índole patrimonial, quando há de partir de uma nítida definição do núcleo essencial (Wesensgehalt) do Direito

e das possíveis restrições ou limitações, estas a melhor dizerem-se em regulação ou conformação (Regelung oder Ausgestaltung).105

A afirmação dos princípios no panorama do Direito, possibilitando uma nítida abertura do sistema, não se pode dizer de uma criação laboratorial, como só acontece em setores das ciências exatas e médicas; para o Direi- to, ciência social aplicada, o laboratório é mesmo a realidade social e a evolução do bioma, submetido a toda espécie de mutações no modus vivendi da humanidade e das diversas classes sociais. Também muito contribui a

evolução extraordinariamente rápida dos meios de comunicação e do processamento dos saberes. Sob tais

100 – Cfr. Schmidt – Assma Allerhand Verfassungsstaatlichheit, p. 1002, apud MENAUT, Antonio-Carlos Pereira. Rule of law o estado de Drecho, Madrid/Barcelona: Marcial Pons, 2003, Col. Prudentia Iuris, vol. 5, Cap. V, c, no 1, p. 79.

101 – Op. loc. cit., p. 81.

102 – Cfr. LARENZ, Karl. Cfr. LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito (Methodenlehre der Rechtswissenschaft), trad. José Lamego, 3a ed., Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997,

Cap. IV, no 3, “b”, p. 495-500.

103 – REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito, p. 127.

104 – CALGARO, Gerson Amauri. Patrimônio genético: comércio e proteção de substâncias do corpo humano, in Revista de Direito Privado, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, vol. 16, ano 4, out./dez. 2003, no 1.1, p. 101.

105 – Cfr. MENDES, Gilmar Ferreira. A reforma monetária de 1990 – problemática jurídica da chamada “retenção dos ativos financeiros” (Lei no 8.024, de 12.04.1990), in Revista

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aspectos, há de ser pensado e tratado o Direito contemporâneo (pós-moderno), sempre atento a que o homem é um ser em construção.106

Não havendo como, de súbito, romper com o sistema fechado (na leitura fossilizada dos códigos), aquele

sintomático e arcaico apego à literalidade e fixidez das regras jurídicas positivadas, a saída se deu, como lembra

LUCIANODE CAMARGO PENTEADO, na fuga por expressões como função social.107 Ainda compondo este quadro, revela-se a crise da legalidade, já detectada em meados do século passado por AFONSO ARINOSDE MELO FRANCO, exteriorizada na “insuficiência de uma legalidade construída sobre postulados do individualismo jurídico, para atender às condições impostas pelo primado do social, nas relações jurídicas.”108

Há, por equívoco, quem entenda despiciendo perquirir da função social da propriedade em sede das pos-

sessórias. Julgados existem, infelizmente, embora de respeitável lavra, que não se assessoram de melhor reflexão

ao evitarem o enfrentamento das razões de nova perspectiva na concepção das possessórias à luz da vigente Cons-

tituição (inovadora no trato da propriedade e da posse). Daí o perigo de nos aferrarmos cegamente a ementas de julgados. É possível colacionar dos tribunais decisões que, ao arrepio da Constituição e da boa e mais atualizada doutrina, têm por sem importância a produtividade, o bem-estar, o respeito às leis ambientais e trabalhistas de

um imóvel rural – enfim, o cumprimento da função social –, bastando-se por vezes nas exigências de uma leitura

fundamentalista do art. 927 do CPC.109 São decisões, data venia, que acriticamente se vão constituindo em pre-

cedentes preceptivos, utilizados embora sem a salutar técnica da distinção (distinguishing – dessemelhança) ou da

superação (overruling – novo critério) deles. Não se afirmam tais decisões – ainda que várias – em jurisprudência

confiável, menos ainda em precedentes vinculantes, pois carecem de profundidade e são acanhadas na extensão

do raciocínio, daí porque não alcançam a esperada generalização. Em lugar algum do ordenamento jurídico pátrio em vigor, há inscrita a restrição de que a função social, por quaisquer de seus aspectos, seja considerada exclusiva-

mente em casos de desapropriação. Pelo contrário, em sede de excepcionalidade (e ainda há quem discorde), só

restringe um dos elementos da função social, a produtividade, para dizer que, na sua presença, mesmo ausentes os demais, o imóvel não será desapropriado (art. 185, II, da CRFB/88).110 Enfim, despidos de preconceitos e dos trapos retrógrados de uma leitura privatista do Direito, estaremos aptos e desvendados para fazer coro à melhor e

mais comezinha doutrina constitucional, destacadamente à vista de uma nova ordem jurídica em vigor.111 A posse, íntima da propriedade só será sua manifestação na justa medida do que manifesta. A propriedade

evoluiu no mundo do Direito e da juridicidade e com ela a posse (quase sempre respectiva). Assim está dito na Constituição da República Federativa do Brasil, não nos cansamos de aqui repetir isso. Já entrados no século XXI

do terceiro milênio, confrange-nos encontrar a preguiça dominando espíritos, estes de esferográficas em punho com o talhe de penas de ganso. A constitucionalização voga e é fase na ciência do Direito muito já depois da co-

dificação discutida por THIBAUT e SAVIGNY. A partir dessa compreensão, o Direito evolui. Ora, a função social não

serve, absolutamente, em excelência, para induzir expropriação; ela é muito mais e tem sentido de amplitude con-

106 – Cfr. PENTEADO, Luciano de Camargo. Sistema e Direito Privado: panorama histórico e perspectivas para uma racionalidade construtiva, in Revista de Direito Privado, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, vol. 16, ano 4, out./dez. 2003, p. 161-198.

107 – Idem, p. 178.

108 – FRANCO, Afonso Arinos de Melo. Op. cit., p. 16.

109 – Cfr., dentre outros: STJ: EDcl na IF 15/PR 1992/0032907-1 – Corte Especial – Rel. Min. ADHEMAR MACIEL – j. 17.12.1993 – publ. DJ 9.5.1994. TJMG: AI no

2.0000.00.492837-0/ 000(1) – 11a Câmara Cível – Comarca de Belo Horizonte – Rel. Des. TERESA CRISTINADA CUNHA PEIXOTO – j. 31.8.2005 – publ. 24.9.2005; AI no

2.0000.00.509471-5/ 000(1) – 9a Câmara Cível – Comarca de Belo Horizonte – Rel. Des. PEDRO BERNARDES – j. 6.9.2005 – publ. 24.09.2005; AI no 2.0000.00.519782-6

/000(1) – 11a Câmara Cível – Comarca de Belo Horizonte – Rel. Des. AFRÂNIO VILELA – j. 9.11.2005 – publ. 17.06.2006; AI no 1.0024.05.785685-8/ 000(1) – 17a Câmara

Cível – Comarca de Belo Horizonte – Rel. Des. LUCIANO PINTO – j. 17.11.2005 – publ. 1.12.2005; AI no 2.0000.00.518.899-2/000 – 14a Câmara Cível – Comarca de Belo

Horizonte – Rel. Des. RENATO MARTINS JACOB – j. 01.12.2005 – publ. 1.2.2006; AI no 1.0024.05.811922-3/001 – 15a Câmara Cível – Comarca de Belo Horizonte – Rel.

Des. GUILHERME LUCIANO BAETA – j. 20.7.2006 – publ. 5.9.2006; Ap no 2.0000.00.477227-8/000(1) c/c Ap no 2.0000.00.477221-6/000 – 9a Câmara Cível – Comarca de

Belo Horizonte – Rel. Des. PEDRO BERNARDES – j. 1.8.2006 – publ. 16.9.2006; AI no 1.0024.06.088432-7/001 – 14a Câmara Cível – Comarca de Belo Horizonte – Rel. Des.

DÍDIMO INOCÊNCIODE PAULA – j. 11.1.2007 – publ. 26.1.2007. TAMG: AI no 20000.00.478797-9/000(1) – 2a Câmara Cível – Comarca de Belo Horizonte – Rel. Juíza EVAN- GELINA CASTILHO DUARTE – j. 9.3.2005 – publ. 29.3.2005; AI no 2.0000.00.461399-2/ 000(1) – 4a Câmara Cível – Comarca de Belo Horizonte – Rel. Juiz NILO LACERDA – j.

10.11.2004 – publ. 27.11.2004; AI no 20000.00.407689-7/000(1) – 4a Câmara Cível – Comarca de Belo Horizonte – Rel. Juiz. SALDANHA FONSECA – j. 18.6.2003 – publ.

9.8.2003; AI no 353.105-3 – 6a Câmara Cível – Comarca de Patrocínio – Rel. Juiz DOMINGOS COELHO – j. 7.2.2002 – publ. 26.2.2002; AI no 2.0000.00.288830-8 – 3a Câ-

mara Cível – Comarca de Conselheiro Pena – Rel. Juiz KILDARE CARVALHO – j. 15.3.2000 – publ. 25.3.2000; AI no 20000.00.030170-4/000(1) – 1a Câmara Cível – Comarca

de Uberlândia – Rel. Juiz NEPOMUCENO SILVA – j. 13.6.2000 – publ. 1.7.2000; AI no 289.617-9 – 5a Câmara Cível – Rel. Juiz. ARMANDO FREIRE – j. 28.11.1996; TJRS: AI no

70005770664 – Rel. Des. ÍCARO CARVALHODE BEM OSÓRIO – j. 30.1.2003.

110 – Cfr. TOURINHO NETO, Fernando da Costa. Legitimidade dos movimentos populares, in A Questão Agrária e a Justiça, org. Juvelino José Strozake, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, no 5.3, p. 183.

111 – Cfr. Comentário de GUSTAVO TEPEDINO e ANDERSON SCHREIBER ao Agravo de Instrumento no 598.360.402 – TJRS – Comarca de São Luiz Gonzaga – 19a Câmara Cível – Rel.

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siderável. Mas não basta ao imóvel que se pretende cumpridor da função social se apresente apenas como objeto da

propriedade produtiva. É como lucidamente já detectou o ministro SEPÚLVEDA PERTENCE quanto a que não se reduz

“à identidade os conceitos de propriedade produtiva e de imóvel que cumpra a função social.”112 É nesse sentido que vem o

parágrafo único do art. 185 da CF/88. Eis porque o ministro insiste: “o conceito de propriedade produtiva é antes eco-

nômico do que naturalístico. Não se contenta com o fato neutro de existência de produção, mas exigirá sempre, índices positivos na equação produção-produtividade, para usar a expressão feliz do parecer do Ministério Público: ora, esses índices traduzirão precisamente o ‘aproveitamento racional e adequado’ da terra, com a utilização adequada dos recursos naturais disponíveis.”113 Na possessória, há de haver prova cabal de atendimento satisfatório ao elemento constitutivo da função social. Nas ações dessa natureza, pode-se dizer que menos importa é o título de propriedade, mesmo porque nelas é ve- dada a exceptio domini do art. 923 do CPC.

Existem mesmo opiniões quanto a participar o Judiciário do processo de pacificação dos conflitos coleti-

vos, no sentido de que haveria de se afastar da questão da reforma agrária.114 Ledo e lastimável engano!

A imprescindível presença do Estado, na espécie, é o desafio advindo da existência de um litígio por vezes ocasionado pela ausência deste mesmo Estado. Cuida-se da temática da separação dos poderes, tão cara a LOCKE e a MONTESQUIEU, para apenas mencionarmos os corifeus da matéria. Por seus diversos órgãos ou setores, o Estado, que é uma unidade a partir da diversidade (membros da sociedade política), atua na consecução de seus fins constitu-

cionais, inscritos precipuamente no art. 3o da Constituição de 1988, neste particular ainda em vigor.

As políticas públicas atinentes à clamada e proclamada reforma agrária competem ao Poder Executivo a partir de diretrizes legais oriundas do Poder Legislativo. Diante da falência desses órgãos em cumprirem a contento seu

desiderato constitucional, de maneira qualquer há o mesmo Estado de, por um órgão, dar alguma resposta insti- tucional à sociedade: eis quando entra em cena o Poder Judiciário – último bastião, derradeira porta.

É certo, no entanto, que este agir do Poder Judiciário jamais será de invasão do âmbito de competência do Poder Executivo, pena de periclitar a ordem constitucional, ofendendo a estabilidade das instituições; faz-se, pois, consoante limites já constitucionalmente postos e de maneira suplementar, contemporizando os nefastos efeitos que a omissão e ou inconveniente atuação dos outros órgãos (incluindo o Legislativo) possam causar.

Seja por que órgão for, o estudo da matéria se circunscreve especialmente ao âmbito do chamado Direito Eco-

nômico, ou até mesmo Direito Econômico das Propriedades;115 evidentemente a partir de toda a gama de consi-

derações fornecidas pelo Direito Constitucional,116 sempre atentos aos ditames dos direitos fundamentais, estes, mesmo reconhecidos e declarados no texto da Constituição, metaconstitucionais.

Contemplando a propriedade, dela sabemos que sai da Antiguidade Clássica sob o influxo marcadamente reli-

gioso para o utilitarismo econômico, ao domínio da civilização burguesa. O titular de um bem age ou mantém-se inerte, absoluta e egoisticamente sobre ele. Num giro ético, essa nova concepção alcança uma dicotomia com

reflexos ainda mais amplos, pois serva de uma distinção estabelecida entre o público e o privado, em reverência a este; Estado e sociedade civil tornam-se realidades bem distintas, e, mais que isso, nitidamente divorciadas.117 A propriedade passa a ser esteio do privado, mantendo embora um ar de religiosidade, um quê de totêmico, com uma intocabilidade tabuizante. Sob o constitucionalismo liberal, inspirado em LOCKE e ROUSSEAU, cristalizou-se, então, como garantia individual da liberdade do cidadão contra outrem. A esta altura, como ressalta FÁBIO KONDER COMPARATO, a propriedade apresenta dupla natureza: de direito subjetivo e de instituto jurídico; com isso, além de desafiar proteção contra investidas dos demais sujeitos privados ou do Estado, deve “evitar que o legislador venha a su-

112 – STF – Pleno – MS 20960-7-DF – Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE – j. 2.3.94 - pub. 7.4.95.

113 – Idem.

114 – Cfr., v. g. TJMG – Unidade Francisco Sales – Ap. Cív. no 20000.00.477227-8/000(1) – 9a Câmara Cível – Comarca de Belo Horizonte – Rel. Des. PEDRO BERNARDES – j.

1.8.2006 – publ. 16.9.2006.

115 – Cfr. VAZ, Isabel. Direito Econômico das Propriedades, Rio de Janeiro: Forense, 1992, 698p.

116 – Sendo mais específico, um Direito Constitucional Econômico (Cfr., dentre outros: SOUZA, Washington Peluso Albino. Teoria da Constituição Econômica, Belo Horizonte: Del Rey, 2002, 555p.; TAVARES, André Ramos, Direito Constitucional Econômico, São Paulo: Método, 2003; BERCOVICI, Gilberto. Constituição Econômica e Constituição Dirigente, in Constituição e Democracia: Estudos em Homenagem ao Professor J. J. Gomes Canotilho, coord. Paulo Bonavides, Francisco Gérson Marques de Lima e Fayga Silveira Bedê, São Paulo: Malheiros, 2006, p. 219-251; STOBER, Rolf; SOUSA, António Francisco de. Direito administrativo econômico geral: fundamentos e princípios: direito constitucional econômico, 15 ed., Lisboa: Universidade Lusíada Editora, 2008, Colecção Manuais, 396 p.).

117 – Cfr. BOBBIO, Norberto. Estado, governo, sociedade: para uma teoria geral da política (Stato, governo, società. Per uma teoria generale della politica), trad. Marco Aurélio Nogueira, 9a ed., São Paulo: Paz e Terra, 1992, Col. Pensamento Crítico, vol. 69, 173p.

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primir o instituto ou a desfigurá-lo completamente, em seu conteúdo essencial.”118 Hodiernamente, na linha da pregação de HESSE, “a base da subsistência e do poder de autodeterminação do homem moderno não é mais a propriedade privada em sen- tido tradicional, mas o próprio trabalho e o sistema previdenciário e assistencial instituído e gerido pelo Estado.”119 Daí porque o conceito de propriedade constitucional (necessariamente dinâmico) é, por assim dizer, extensivo, alcançando, além da já conhecida propriedade privada, outras tantas relações patrimoniais, como o são as “hipotecas, penhores, depósitos bancários, pretensões salariais, ações, participações societárias, direitos de patente e de marcas, etc.”120 Contempla, enfim, a propriedade, uma gama de compreensões, desde aquilo que é próprio, ligando-se a patrimônio (direitos

subjetivos patrimoniais), englobando direitos reais (direitos subjetivos reais) e pessoais, açambarcando a ideia

de corporiedade, mas também os bens incorpóreos; e finalmente, no mais estrito sentido, significa a propriedade

domínio (art. 1572 do CCB/1916).121

Muito embora constituições contemporâneas como, v.g., a do Brasil e a de Portugal encartem a propriedade como direito fundamental, marcadamente a privada, individual, em obediência à forte herança liberal que desde antes do século XVIII faz uso e domina entre os povos ocidentais, é de se questionar a sua inclusão no rol dos direitos

naturais. É que se confundem, por vezes, os direitos fundamentais com os direitos naturais, a despeito de serem ca- tegorias autônomas, óticas distintas de apreciação científica. Mas a propriedade não é um direito imanente; é direito criado e conformado pela lei; vem da experiência e de um modelo de relação social complexa, nitidamente afastado

da construção platônica, menos ainda de uma proposta marxista pura. A propriedade constrói-se consoante a opção de um modelo econômico. Não existe sem a sociedade, pois existe em virtude dela, é apenas uma convenção social,

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