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A posse, embora componha a propriedade, dela se aparta conceitualmente. Constitui-se num dos seus ele- mentos sem se confundir em absoluto. Na ordem natural das coisas (manifestações), a posse precedeu à proprie- dade. Em abstrato, em tese, hão de estar de braços dados, mas na experiência essa coincidência não é necessaria- mente detectável: uma sobreviverá aparentemente sem a outra. Contudo, para a propriedade a inexistência da posse compromete a sua vitalidade, conduzindo ao seu perecimento (art. 1.276, IV, do CCB/2002)82 e à sua arrecadação (art. 1.276, § 2o, do CCB/2002).

A construção do conceito de propriedade começa já nas clássicas Roma e Grécia, com fundamento familiar e religioso, para mais tarde alcançar um sentido jurídico.83 Na busca da compreensão do conceito de proprieda- de, mais especificamente do direito de propriedade, especialmente do direito fundamental de propriedade ou à propriedade, carece, por primeiro, distinguirmos a propriedade dos bens sobre os quais eventualmente recaia.

O direito de propriedade reside no campo conceitual, das ideias, materializando-se quando incide numa relação

de caráter real de um indivíduo humano ou de uma coletividade deles com um determinado bem (material,

imaterial, fungível, infungível, etc.). A Constituição prescreve, nesta relação, à propriedade exercer a sua função

social. Assim, não há imposição legal a que o bem, por si só, cumpra uma função social, pois a natureza inani- mada dos bens materiais, ou impalpável de bens imateriais, não lhes permite cumprir função social qualquer,

senão uma função econômica. Limita-se essa categoria de coisas a existir no espaço temporal. Seu sentido, sua

valoração, dará o homem nas relações.

O reconhecimento constitucional, no âmbito dos direitos fundamentais, alcança a propriedade na condi- ção de um direito. Considerando a caracterização dos direitos fundamentais (imprescritibilidade; inalienabili-

dade; irrenunciabilidade; inviolabilidade; imutabilidade; intemporabilidade; absolutividade; permanência; pessoalidade; não patrimonialidade; universalidade; efetividade; interdependência; complementaridade;

historicidade),84 abre-se um espaço válido de discussão quanto a que se deva ou não considerar a propriedade um

direito fundamental. A despeito dessa possível discussão, resta certo que a propriedade é um direito fundamental

formal, porque assim dito expressamente pela Constituição brasileira.85 Protege-a em potência, ainda antes de

concretizada em subsunção pelo homem que se torna, a qualquer tempo, proprietário. Muito mais direcionada em

benefício daquele não proprietário, prescreve a mesma Constituição (art. 5o, XXIII) a função social da proprieda-

de.86 Este dispositivo, a um só tempo, declara um direito (fundamental) passível de conceder pertença ao particular e também à toda coletividade, ao cingir a propriedade com o ônus essencial de cumprir uma função em benefício do todo, do coletivo: a função social.

O direito à propriedade que a Constituição garante é aquele referente à propriedade que ela mesma define, ou seja, à propriedade (art. 5o, XXII) que cumpre sua função social (art. 5o, XXII). Em absoluto que não se tratam de

duas propriedades as contempladas, embora nesse instituto (lato sensu) encontraremos espécies diversas (stricto

82 – Sobre o perecimento, ainda na vigência do Código Civil de 1916, cfr. TJSP – Ap. cív. no 212.726-1/8 p. 1.187 – 8a Câmara Cível – Comarca de São Paulo – Rel. Des. JOSÉ

OSÓRIO – j. 16.12.1994 (RT, 723/206-207).

83 – Cfr. COMPARATO, Fábio Konder, Direitos e deveres fundamentais em matéria de propriedade, p. 130-133.

84 – Cfr. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, 25a ed., rev. e atual. nos termos da reforma constitucional (até a Emenda Constitucional no 48, de

10.8.2005), São Paulo: Malheiros, 2007, cap. II, no 5, p. 185; ANDRADE, José Carlos Vieira de. Dos Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 3a ed.

(reimp. da edição de 2004), Coimbra: Almedina, 2006, cap. I, no 1.2, p. 19; e ALEXANDRINO, José de Melo. Direitos Fundamentais: introdução geral, São João do Estoril:

Princípia, 2007, parte I, no 4, II, p. 22.

85 – Cfr. MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional, 3a ed., rev. e actual. (Direitos Fundamentais), Coimbra: Coimbra Editora, 2000, parte IV, tít. I, Cap. I,

§1o, no 1, II, p. 8-9.

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sensu).87 O objeto de que cuida a Constituição, em sede de direitos fundamentais, é um só: a propriedade. Pro- priedade, embora, de leitura atualizada e bem delimitada no corpo do texto constitucional. Não se trata, pois, de algo displicentemente cuidado; pelo contrário, o constituinte demorou-se sobre tema, dispondo sobre ele em diver-

sos momentos e de tal sorte a contemplar em especial a propriedade de imóvel territorial rural.

Propriedade não se confunde com o seu objeto. Aquela se consubstancia numa relação teorizada, a expressão psicológica do dono, dos impulsos e pretensões de alguém sobre algo (material ou imaterial); seu conteúdo se ex-

pressa no reconhecimento pela ordem jurídica (pela comunidade dos pares) de uma relação do ser humano com a coisa. Em si, a ideia de propriedade induz exclusividade quanto a todos. O objeto de exercício da propriedade é a entidade, a coisa, corpórea ou incorpórea, sobre a qual incide a egoística vontade pessoal de se apoderar com

exclusividade em detrimento dos demais cidadãos.

Já o exercício do direito de propriedade não prescinde da posse – no caso, a manifestação fática (visualização para IHERING)88 daquele direito potencial fundamental (mas a posse não se limita a ser apenas a expressão fática, a visualização da propriedade – art. 1.196, do CCB/2002 – desafiando uma reflexão autônoma dela: a posse pela

posse – ius possessionis).89 Se a propriedade há de realizar uma função social, nos termos da Constituição e da lei,

por ilação e óbvia conclusão, a posse a ela correspondente haverá de cumprir, também, necessária função social no efetivo uso e/ou fruição do bem. A posse, nesse caso, consumará a função social (assim imprescindível para reconhecer-se como situação fática), mesmo porque se afigura impensável uma propriedade sem posse, senão como um instituto em tese, objeto acadêmico da ontologia, essencialmente laboratorial. Por fim, comprometida que se veja a consecução da função social pela posse que se exerça em determinado bem, fracassado estará o desiderato da função social da propriedade.90 E, em casos tais, o resultado deveria ser a desapropriação, única saída institucional prevista pela Constituição. E quanto aos imóveis rurais, “a existência de posse agrária ofensiva à função social do bem que conduz à perda dessa posse e do direito de propriedade”;91 a expropriação, in casu, se dará numa perspectiva de política agrária implementada (ou a implementar) pelo Governo Federal, via Incra.

87 – Tomada a propriedade na condição de um instituto jurídico, indagando se se dirá “a” propriedade ou “as” propriedades, incluindo a perspectiva de noção e conceito do instituto, Perlingieri leciona, in verbis: “Come si è già chiarito il tema delLa proprietà può interessare come situazione soggettíva, come rapporto giuridico, come istituto giuridico. Secondo quest'ultima prospettiva, la ‘proprietà’ è la risultan te di un complesso di norme giuridiche. Il problema della proprietà come istituto si traduce in sostanza nell'opportunità di verificare se essa costituisce un istituto unitario o se invece sotto la tema tica della proprietà, al singolare, si nascondono istituti diversi, tali da far considerare la proprietà non piú unitariamente, bensí come pluralità di nozioni, di concetti, come pluralità di istituti. Fin qui è stato sottolineato sempre 1'aspetto unitario della proprietà e si è tentato, sia da parte del legislatore sia da parte dei giuristi, di dare alla proprietà una definizione unitaria com plessiva di tutti gli atteggiamenti e specificazioni che essa può assumere nella realtà normativa e sociale. La dottrina, infatti, fino a poco tempo fa – specialmente la dottrina italiana – aveva sotto lineato l'unítarietà dell'istituto, rispondente, del resto, a quel la tendenza metodologica diretta a cogliere i profili comuni – cíoè quei minimi comuni denominatori che caratterizzano un istituto – anziché a sottolineare le differenze che possono esserci nell'àmbito di un istituto, in riferimento a situazioni soggettive concrete so stanzialmente diverse; si che si discorre di ‘obbligazione’ ai sín golare, di ‘proprietà’ al singolare, e cosí via. Invece, negli ultimi tempi, in Italia – ma ancor prima in Francia – si tenta di affrontare con una metodologia nuova il tema della proprietà, sostenendo che la proprietà come istituto unitario non risponde ad un'esigenza interpretativa e che invece la proprietà si atteggia pluralistica mente in forme diverse sí da escludere la valídità di una costruzione della proprietà in termini unitari, uniformi; si giunge cioè a sostenere la cosí detta teoria delle proprietà differenziate. Pian piano si è notato che una cosa è la proprietà su fondi ru stici e una cosa é la proprietà su beni industriali, che altro è la proprietà dei beni di consumo altro è la proprietà dei beni di pro duzione, che altro é la proprietà che spetta ad un soggetto privato altro è la proprietà pubblica, che altro é la proprietà che spetta ad un solo soggetto altro é la proprietà invece in comproprietà e via di séguito; la figura delia proprietà collettiva cominciò a farsi strada accanto alia proprietà personale, individualistica e alla proprietà comunista (proprietà in comunione); si notò che non si poteva costruire la comproprietà in termini di somma di proprietà singole, che la proprietà collettiva era una forma particolare di com proprietà rispondente a una determinata funzione sociale-giuridica, che particolari tipi di proprietà proprio perché rispondenti a particolari esigenze, ancor prima che di carattere patrimoníale, di carattere personale come appunto la proprietà personale (proprietà dell'abitazione, il piccolo risparmio, ecc.) erano forme di proprietà che nel nostro ordinamento - come nella gran parte degli ordina menti civili – hanno una disciplina diversa. E' evidente che uno studio di questo tipo, ispirato ad una metodologia rivolta ad individuare le differenze nell'àmbito di questa ampia tematica, era tutto intento a cogliere le differenti discipli ne in referimento alie singole concrete proprietà; entrava in crisi la nozione unitaria dell'istituto, giacché se un istituto è un complesso di norme che regola un fatto o una relazione socialmente ri levante, si potrebbe anche affermare che Ia proprietà à un istituto unitario, qualora si individuassero talune norme del nostro ordina mento appllcabili a qualsiasi forma di proprietà, minimo comun denominatore giustificante la costruzione di una categoria unitaria. Nell’àmbito, poi, di quest'eventuale, ipotetica unitarietà, che sarebbe generica, si dovrebbero poi cogliere quei complessi di norme carat terizzanti le singole particolari forme di proprietà, sí da costruire, ad esempio, la proprietà su fondo rustico come un istituto chiamandola appunto proprietà rustica, la proprietà urbana o la proprietà edilizia, individuando quel complesso di norme di carattere ordinario e speciale che disciplinano quella forma di proprietà che è appunto la proprietà edilizia.In tal guisa si procede all'individuazione della proprietá come istituto unitario sí, ma anche come istituto estremamamente generico perché consistente solcanto in quelle poche norme eventualmente ap plicabili a tutte le forme possibili di proprietà; poi, nell'àmbito di questa nozione unitaria della proprietà, è da índivtduare di vol ta in volta, con analisi minuziosa, paziente, quella che è la disci plina di particolari forme di proprietà che, sia sotto il profilo della tipicità normativa sia sotto quello della tipicità meramente sociale, hanno assunto una loro autonomia, una loro Lisionomia sí da reclamare un'indipendenza, arche in termini di istituto, nei confronti di quell'ístituto-madre unitario che si potrebbe definire la proprietà generica.” (PERLINGIERI, Pietro. Introduzione..., no 43, p. 135-138). Ainda antes o autor foca essa mesma questão sob o título “Crisi della nozione unitaria

della proprietà” (idem, no 12, p. 59-60).

88 – “A ideia de que a posse é o exercício de fato do direito de propriedade já se encontra na obra monumental de Savigny, aparecida em 1803 (Das Recht des Besitzes, 192 = Traité de la Possession, 173); reproduzem a mesma ideia, além de Mackeldey, autores divulgadíssimos: Maynz – Cours de Droit Romain I § 80; Lafayette – Cousas § 17; Lacerda – Cousas § 7 nota 2 e § 8 nota*. Ihering não repeliu essa ideia; ao contrário aceitou-a e desenvolveu-a na sua primeira obra sobre a posse intitulada Fundamento dos Interditos Possessórios (Ueber den Grund des Besitzesschutzes, 2a ed., 1869). Nessa obra, Ihering ora diz que a posse é a exterioridade (Thatsaechlichkeit) da propriedade, ora que é o exercício (Ausübung) da propriedade

(45, 158-160, 179, 187, 224 = tr. fr. 42, 141, 142, 159, 165, 197). Entre as duas fórmulas não há contradição; há apenas uma diferença extrínseca, acidental: a primeira apanha a posse em posição estática; a segunda, em posição dinâmica. São, portanto, fórmulas equivalentes. Ihering acentua explicitamente essa equivalência, em Teoria Simplificada da Posse, tr. fr. Em Oeuvres Choisies I, p. 235: ‘O que é protegido na posse é o estado de fato como tal, mas um estado de fato que pode ter por base um direito e que, por consequente, pode ser como exercício ou a exterioridade de um direito’. Essa exterioridade (ou exercício) da propriedade resume, numa palavra, toda teoria possessória, como bem assinalou Ihering ao finalizar a sua obra sobre os interditos possessórios” (PEIXOTO, José Carlos de Matos. Em defesa de Clóvis Beviláqua, in Separata da Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Ceará, Imprensa Universitária do Ceará, 1959, p. 10 – ortografia original).

89 – Cfr. TORRES, Marcos Alcino de Azevedo. A propriedade e a posse: um confronto em torno da função social, Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2007, p. 303-310. 90 – Cfr. COMPARATO, Fábio Konder. Direitos e deveres fundamentais em matéria de propriedade, p. 130-133.

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Ressalte-se, em esclarecimento, o bem imóvel territorial rural é bem de produção, vocacionado ao serviço

social, mesmo embora em mãos privadas ou particulares. E se assim é, a função social dele exigida toma o caráter

de trato sucessivo. Na categoria produtividade tem marco temporal de avaliação na coincidência do ano agrícola, a partir dos parâmetros legais (Lei no 8629/93). Quanto aos demais quesitos, há de ser de diuturna observância.

Desta sorte, em sede de ação possessória a exigência de prova da posse há de acontecer observando a exigência

constitucional. Se quanto à propriedade se pode discutir a prova de sua existência a partir de um registro carto- rário válido, a posse, por essencialmente visível no mundo fático, tem justo na sua faticidade a prova eficiente de

sua existência. Com a explícita imposição constitucional, agregou-se ao conteúdo conceitual, ao núcleo duro da posse, a observância da função social. Ora, por tudo, as estruturas jurídica e judiciária só se explicam como

criação e aplicação na ótica de um grupo social organizado; logo, fora dessa perspectiva, in casu, falar-se-á numa

mera utilização, quiçá uma mera detenção, mas não de uma posse.

Surge, pois, a questão relativa à posse exercida sem atenção ao princípio constitucional da função social. Se jungida ou fundada no direito de propriedade bastante, pode redundar na perda da propriedade. Tal se dará, no entanto, nos limites, também constitucionalmente estabelecidos, de um procedimento expropriatório, com fases administrativa e judicial; respeitados o contraditório e a ampla defesa (princípios constitucionais), ao fim, com

indenização justa, dar-se-á a expropriação compulsória.

Entretanto, os conflitos possessórios nem sempre envolverão exercício de posse fundada na propriedade, a ensejar possível desapropriação. Nessa discussão, apura-se um possível completo abandono (derrelição) do imóvel pelo pro-

prietário, e mesmo pelo eventual – ou último – possuidor direto. Em tal circunstância, a “posse anterior” não encon-

trará, no âmbito judicial, qualquer abrigo, permanecendo a realidade como tal se apresenta ao tempo da instauração

do litígio. Em síntese, haverá a perda da posse em favor dos circunstantes requeridos invasores/ocupantes/tomadores

do imóvel; no entanto, por ser ação em que se discutiu apenas o caráter da posse do(s) requerente(s), a sentença não terá qualquer teor de, por isso, declarar eventual qualidade de posse boa aos requeridos.

Por fim – e é a maneira dos casos submetidos a esta Vara especializada dos Conflitos (coletivos) Agrários –, surge a questão dos imóveis cuja posse vem sendo exercida (direta ou indiretamente) pelo proprietário, de maneira plena ou subutilizando sua área. Casos há em que a função social não vem sendo efetivamente cumprida e nem fiscalizada pelo órgão público competente. O fato – lamentável – só exsurge a partir de um evento (ilícito jurídico em princípio) de esbulho possessório.92 Já estabelecido o conflito social, surge a demanda judicial da questão. Neste foro, passa-se a discutir a qualidade da posse exercida sobre o imóvel rural, de modo a sabê-la (aquela posse) passível de ser contemplada por qualquer interdito possessório. Para alguns, em evidente radicalismo insano, o não atendimento pleno e absoluto dos requisitos da função social enseja ao Estado abandonar e tirar de sua proteção judicial à posse assim qualificada (ou desqualificada), desconsiderando nela a que grau abaixo das exigências legais referidas (a partir da obrigação cons- titucional) se encontre. Nessa perspectiva radical, pretendem seus acólitos que o possuidor perca não só a posse como a propriedade sobre o imóvel esbulhado em favor dos autores do esbulho. Mas essa posição nada tem de pacificada e muito menos vai ao encontro do espírito constitucional, porque, ou redunda numa possível desapropriação indireta, ou, de outra sorte, ensejará ambiente de ação dominial. No bojo dessa ação reivindicatória, o proprietário poderá reaver o imóvel mediante indenização aos já então possuidores, desde que não se lhe será exigido, àquela altura, provar o cum- primento da função social por si, por atos inequívocos seus, visto ser tal ônus acometido ao(s) pseudoesbulhador(es).

O legislador infraconstitucional editou normas (MP no 2.027-38/2000 ou no 2.183-56/2001) em desestímu-

lo a atos unilaterais, para ensejar, aos imóveis invadidos/ocupados/tomados, imunidade de vistoria pelo Incra para

os fins da reforma agrária, por dois ou quatro anos, contados a partir de sua efetiva desocupação. Enfim, a única maneira de obter-se o imóvel que não atenda ao preceito da função social, no Brasil, passa pela desapropriação, ja- mais pelo confisco ou o perdimento por sequestro (exceto o caso dos crimes de tráfico ilícito de drogas).93

É que a ação de invasão, ocupação ou tomada pelos movimentos sociais (organizados?) jamais encontra res-

paldo legal como capaz de determinar ou designar qualquer imóvel à expropriação. Indicar imóvel a ser contem- 92 – STF – Pleno – ADI-MC no 2.213-DF – Distrito Federal – Rel. Min. CELSODE MELLO – j. 4.4.2002 – publ. DJ 23.4.2002 – p. 00007 – Ementário vol. 02148-02 – p. 00296.

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plado no rol de incidência da política de reforma agrária, isto sim, é aceitável e louvável. Avançar o movimento além do plano administrativo, fazendo-se notar em atividade violenta (invasão resistida), cria o conflito no campo, em ofensa ao aspecto do bem-estar prescrito na Constituição. De outro lado, muita vez essa atitude reduz-se a uma

denúncia da circunstância de injustiça social no quadro de divisão de terras no Brasil, focando a existência acin- tosa de imóveis rurais manifestamente improdutivos (sobretudo). Finalmente, constatam-se, ainda, ações de cunho eminentemente político, como estratégia de pressão ao Incra para efetivar vistoria em áreas adrede indicadas pelos

movimentos sociais.

Quanto ao imóvel rural, bem foco desta ação, em torno do qual se discute o direito à posse (ou à propriedade), a sua qualidade, observamos dois enfoques imperiosos de se estudar: primeiro, quanto àquele titular reconhecido – mor parte das vezes a partir do direito de propriedade; segundo, daqueles outros todos que não os primeiros, mas que almejam direito à propriedade – ainda potencial. Daí todos nos tornarmos fiscais do exercício do direito

de propriedade à luz do atendimento da função social.

Merece atenção, ainda, o fato de que a posse em si, como um conceito no plano meramente doutrinário e espe-

culativo, aí se baste. Seu significado toma vulto no campo relacional, alçando à categoria jurídica de direito real.94

O condão de importância adquire-se pela interseção com uma personalidade qualquer, pois que esta vem imbuída do aspecto inafastável de dignidade, e com ela o direito ao livre desenvolvimento. Essa concreção mais se evidencia no palco das relações privadas, como na espécie. A proteção possessória a que se prestam o interdito, a manuten-

ção e a reintegratória são, em última instância, a proteção da dignidade humana, direito fundamental.95

A dogmática há tempos se afastou da realidade no campo possessório e, só mesmo por conveniências detectáveis sem muito esforço, mantém-se numa “crença de fixação”, ainda sob os influxos de uma ordem eminentemente priva-

da, hoje caduca, insubsistente – pelo menos – ao segundo pós-guerra do século passado.

A posse pode ser causa e consequência. Se se considera a posse como a mera exposição, elemento que evi-

dencia e externa a propriedade, ela é consequência; todavia, se se lhe reconhece uma importância ou existência

de per si, ela será causa e ensejo de exercício ou garantia de outros direitos, dentre eles a propriedade. Sob tal prisma, paradoxalmente, a posse poderia ser causa e efeito da propriedade; pode ela anteceder ou suceder no tempo. Conquanto se ligue à propriedade circunstancialmente de maneira umbilical, não é, em absoluto, neces-

sária essa relação. À vista disso, é que se impõe uma mais detida reflexão sobre a matéria.

No trato com as teorias de SAVIGNY e IHERING, epígonos das teorias subjetiva e objetiva da posse, respectivamen-

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