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2 – EStABElEcENDo oS limitES DA liDE

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Trava-se nestes autos discussão de cunho e natureza eminentemente possessórios. Por inevitável, o debate tan- genciará a temática dominial. Embora íntimos, os temas não se podem confundir de modo a tumultuar, no desvio, o rumo da demanda. Mas é certo que a decisão (extensão dela) na possessória (concessão liminar ou mérito) busca prestigiar a segurança jurídica, pois sem esta sequer se cogitará de um direito de propriedade.

Aqui o debate fixa-se mais vincado na posse contemporânea à instalação do litígio coletivo. Não importa a que

título o possuidor ocupa o imóvel ao tempo da invasão pelos requeridos, bastando que se evidencie numa posse qualquer. Essa é a realidade a se observar.

O foco da pretensão versada na petição inicial funda-se em posse exercida pelo(s) requerente(s), a ser tomada como objeto único do processo. As eventuais características ou conduta do movimento social requerido, seja na sua totalidade, seja mesmo de algum(ns) de(s) seu(s) componente(s) isolado(s), é matéria que refoge ao interesse deste feito. Contudo, não será ignorada a conduta dos requeridos quanto ao uso e à intensidade de violência ou a outros abusos noticiados. Como já teve oportunidade de se manifestar o STF, em sede de julgamento ainda não encerrado (com votos vencidos, embora):

“O ESBULHO POSSESSÓRIO – MESMO TRATANDO-SE DE PROPRIEDADES ALEGADAMEN- TE IMPRODUTIVAS – CONSTITUI ATO REVESTIDO DE ILICITUDE JURÍDICA. – Revela-se contrária ao Direito, porque constitui atividade à margem da lei, sem qualquer vinculação ao sistema jurídico, a conduta daqueles que – particulares, movimentos ou organizações sociais – visam, pelo em- prego arbitrário da força e pela ocupação ilícita de prédios públicos e de imóveis rurais, a constranger, de modo autoritário, o Poder Público a promover ações expropriatórias, para efeito de execução do pro- grama de reforma agrária. – O processo de reforma agrária, em uma sociedade estruturada em bases democráticas, não pode ser implementado pelo uso arbitrário da força e pela prática de atos ilícitos de violação possessória, ainda que se cuide de imóveis alegadamente improdutivos, notadamente porque a Constituição da República – ao amparar o proprietário com a cláusula de garantia do direito de propriedade (CF, art. 5o, XXII) – proclama que ‘ninguém será privado (...) de seus bens, sem o devido processo legal’ (art. 5o, LIV). – O respeito à lei e à autoridade da Constituição da República representa condição indispensável e necessária ao exercício da liberdade e à prática responsável da cidadania, nada podendo legitimar a ruptura da ordem jurídica, quer por atuação de movimentos sociais (qualquer que seja o perfil ideológico que ostentem), quer por iniciativa do Estado, ainda que se trate da efetivação da reforma agrária, pois, mesmo esta, depende, para viabilizar-se constitucionalmente, da necessária observância dos princípios e diretrizes que estruturam o ordenamento positivo nacional. – O esbulho possessório, além de qualificar-se como ilícito civil, também pode configurar situação revestida de tipici- dade penal, caracterizando-se, desse modo, como ato criminoso (CP, art. 161, § 1o, II; Lei no 4.947/66, art. 20). – Os atos configuradores de violação possessória, além de instaurarem situações impregnadas de inegável ilicitude civil e penal, traduzem hipóteses caracterizadoras de força maior, aptas, quando concretamente ocorrentes, a infirmar a própria eficácia da declaração expropriatória. Precedentes.”205 Praza que a espécie alberga um aparente conflito de princípios constitucionais – ambos imperiosos – a serem

ponderados na apreciação da causa: princípio da propriedade e o princípio da função social da propriedade. Se se

toma apenas o princípio que consagra o direito de propriedade, assim solteiro de sua necessária – e já ontológica – função social, esta que contamina todos e quaisquer dos poderes inerentes à propriedade – dentre eles, a posse – a matéria não acolherá dirimente isenta e acertada. Tomará, nesse diapasão, a forma capenga e a visão caolha, nada contribuindo para a compreensão da causa como um todo muito maior do que o clamor pelo sagrado direito

de propriedade; será, buscando na cultura popular cristã (aludindo à oração do Pai-Nosso) uma expressão mais apro-

priada, querer apenas o “venha a nós”, mas “o vosso reino”, nada. De outra sorte, não será indevido compartimentar o 205 – STF – Pleno – ADI-MC no 2213-DF – Distrito Federal – Rel. Min. CELSODE MELLO – j. 4.4.2002 – publ. DJ 23.4.2002 – p. 00007 – Ementário vol. 02148-02 – p. 00296.

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imprescindível conúbio da propriedade e da função social, ambas princípios expressos constitucionalmente, se tomados isoladamente (como se isso fosse preciso; que embora possível repugna à Constituição). Assim feito, se não para fins meramente didáticos ou científicos, em quando constatado, o divórcio no mundo fenomênico causará o conflito pela não convivência, pela incoincidência: é que são, por assim dizer, siameses, mais ainda, xifópagos, componentes de um único e mesmo conceito. Não há mais espaço para se conceber a propriedade senão como “propriedade que cumpre função social constitucional”.

Indubitavelmente, adentrar o que não é seu é violar o direito de alguém, de outrem, ainda que indeterminado. Mas até que se saiba, mercê de uma manifestação do Estado-Juiz, pode-se estar em res nullius, coisa abandonada. Mas não se deve partir do pressuposto da violência dos invasores/ocupantes/tomadores, certamente abusiva pela

arbitrariedade ínsita nessa ação. Pelo contrário, antes há de ser contemplada a condição do autor da ação quanto à

sua legitimidade de pedir. É mesmo uma questão de antecedência lógica, pondo-se à primeira vista a posse mesma alegada de haver no imóvel, então dita esbulhada ou turbada: se bastante ou não. É que o CPC (art. 927) prescreve a evidência em prova eficiente da posse. Aí está prescrita apenas a formalidade (provar a posse), típica de uma

norma processual, que o conteúdo lhe dá a Constituição, secundada, em harmonia subserviente, pelo Código Civil brasileiro em vigor.

Por tudo, a violência de uma invasão/ocupação/tomada não elide a inconstitucionalidade e ilegalidade da con-

duta omissiva de um proprietário ou possuidor relapso. Estabelece-se uma ordem de apreciação dessas faticidades.

O que se constatará por primeiro é exatamente a relação do proprietário ou possuidor com o imóvel rural em foco e sua responsabilidade social mercê do princípio da função social da propriedade;206 imediatamente após se aquilata a violência que eventualmente se opera contra o bem (ofensa imediata) e contra seu circunstante possui-

dor (ofensa mediata).

Tudo assim é considerado na espécie mercê de que as consequências criminais são distintas das cíveis; se de uma parte a invasão/ocupação/tomada pode constituir-se em crime(s), ilícito penal, de outro foco não cumprir a função social, para além de um ilícito civil, é ilícito constitucional.

Também não se há de cogitar quanto à situação econômica do(s) requerente(s). Perquire-se tão só a natureza

da posse que eventualmente exerça(m) sobre a terra.

No estudo da posse que sobre o imóvel recaía, ainda antes da invasão dos requeridos, busca-se saber, tecnica- mente, se se trata de um ato de ocupação ou mesmo de uma invasão. Ocupação, se comprovado que nenhum ato

eficiente de posse havia; invasão, se, concomitante à posse do(s) requerente(s), impuseram-se na área os requeridos.

Esta posse anterior definirá a condição do imóvel de modo a sabê-lo apto a ser objeto de uma posterior desapro-

priação, na sequência de um procedimento administrativo no Incra, ou, se a tanto não, por impediente legal, a

estabelecer negação ao amparo possessório aqui pleiteado.

Por abusivos e violentos hão de ser tomados aqueles atos de invasão de cunho eminentemente político, con- sistindo em pressão aos órgãos públicos responsáveis pela implementação das políticas públicas agrárias, como o Incra. E assim hão de ser considerados, pois irrazoável que o particular suporte atos dessa natureza, que o Poder Público é capaz e tem a responsabilidade de suportar. Ainda nesse caso, confrontar-se-iam direitos fundamentais (dos movimentos sem-terra e do particular – proprietário ou possuidor). Oportuno o registro, em acréscimo, que a inação do Poder Público (federal, estadual, municipal) em implementar políticas públicas fundiárias ou agrárias implica evidente inconstitucionalidade por omissão.207

Uma posse ad interdicta há de acontecer na perspectiva da Constituição. A Constituição define para a pro- priedade ou a posse a realização da já consagrada, por propalada, função social, esta consistente em atender a

quatro aspectos fundamentais: produtividade, atenção às leis ambientais, atenção às leis trabalhistas e pro-

moção do bem-estar.

206 – “Parece-nos que a função social da posse a torna uma posição jurídica digna de proteção, ainda que confrontada com a propriedade, ou outro direito sobre a coisa, quando este segundo direito não cumpre sua função social.” (CÂMARA, Alexandre Freitas. Op. cit., vol. III, Cap. XXIII, §1o, p. 385).

207 – Cfr. COMPARATO, Fábio Konder. Direitos e deveres em matéria de propriedade, p. 144; Idem, Ensaio sobre o juízo de constitucionalidade de políticas públicas, in RT, Fascículo 1, Matéria Cível, ano 86, vol. 737, março de 1997, p. 20-21.

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Não será, no entanto, a ação possessória sede de fiscalização do cumprimento da função social, para que ao inadimplente devedor dessa conduta incida a pena de perda da propriedade ou da posse. Isso não obstante a que arque com as consequências de sua inação, se e quando este agir (comissivo por omissão) conflitar com os obje-

tivos da juridicidade direcionada ao plano social. Assim, se a função social se mostra insuficientemente atendida,

fato constatado no seio do processo judicial possessório, caracterizando até um abuso de direito, tal não implicará

sanção administrativa já prevista para apuração em sede específica, em procedimento administrativo. Então, fora do âmbito da ação possessória, pode o proprietário ou possuidor responder por desrespeito às leis ambientais,

trabalhistas, fiscais e civis, estas últimas quanto ao índice de produtividade, chegando, a partir de multas, a suportar a desapropriação. Logo, jamais se desapropriará alguém em ação possessória, razão por que se deve atentar para o objetivo deste litígio judicial quanto ao resultado que poderá alcançar. Fica certo, então, haver casos em que não se constata propriamente um desrespeito ao art. 191 da CRFB/88, mas infringência às normas do poder de polícia, para cuja eventualidade há fiscalização pelo Estado que mantém órgãos especialmente competentes como Incra,

Iter, IEF, Ibama, Ministério do Trabalho, Procuradoria do Trabalho e outros.

De outro lado, pesa, em desfavor do pleito de um requerente em ação possessória, o fato de não promover ou não se habilitar a provar bastante o atendimento à função social da propriedade em sua completude. Eis que a proteção possessória deve harmonizar-se na proporção do atendimento da exigência constitucional da

função social.

Ainda cuida considerar o fato de que, diante de uma invasão/ocupação/tomada, não se munem os invasores/

ocupantes/violadores de melhor estatura relativamente à área que invadem para se titularizarem na posse do imó- vel do que outro indivíduo ou grupo qualquer. Na eventualidade, a questão será dirimida no âmbito de atuação e

deliberação do Incra.

Tem-se, ainda, dos autos, não haver pretensão dos requeridos em obter a posse ou a propriedade, mercê deste processo. Pois todos sabem não ser esta a sede para tanto. E, mais, repita-se, pela só invasão/ocupação/tomada

não se habilitam os requeridos à posse ou propriedade. A desapropriação ou desapossamento hão, ambos, de

acontecer nos moldes de um devido processo legal. Logo, o só fato de não cumprir a função social é o bastante a desamparar a propriedade ou a posse do acolhimento da lei; penitenciar-se-á o proprietário ou possuidor relapso, mas não com a perda sumária de um direito seu em favor de outrem aleatório.

3 – o cASo NA

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