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Mesmo que a lei processual regente das possessórias se mostre, de plano, inequívoca, a desafiar, para alguns, o amparo do há muito desusado brocardo in claris cessat interpretatio, cumpre-nos uma leitura crítica desses dispositi- vos para conferir-lhes a constitucionalidade (não a essencial): se se inscrevem ou aplicam conforme a Constituição. Impende, para a segura e atualizada aplicação dos dispositivos processuais, sejam decompostos em seus elementos constitutivos para compreendê-los no contexto da ordem jurídica, quando de sua aplicabilidade. Essa técnica atua- liza permanentemente as leis, já que seu órgão fautor não lhe acompanha a vida atualizando-a literalmente, pari passu à evolução social e das instituições.

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Não se pense, porém, em consagrar o fenômeno MAGNAUD, o bom juiz, primeiro presidente do Tribunal de Château-Thierry,167 com a sua jurisprudência sentimental, ou de adesão aos cânones da Escola Livre de Direito ou da Escola do Direito Vivo.168 Cuida que nos mantenhamos dentro de um sistema jurídico científico, racional, a um só tempo amplo e aberto.

Já o art. 5o da Lei de Introdução ao Código Civil brasileiro (Decreto-lei no 4.657, de 4 de setembro de 1942)

– uma lei de introdução às leis169 (lex legum, Ueberrecht) – impõe regra de hermenêutica ao juiz quanto à atenção aos fins sociais da lei, o que, no entender de BARROS MONTEIRO, vincula-se às linhas mestras traçadas pelo ordena-

mento político.170 LIMONGI FRANÇA vê na expressão “fins sociais” uma condenação legal ao método dogmático ou

exegético, na linha de ALEXANDRE ÁLVARES e BEVILÁQUA.171 E ALEXANDRE ÁLVARES concebe sociologicamente o processo de interpretação, na medida em que aplicar a lei exige a observância da marcha dos fenômenos sociais para obter-se

a “maior soma possível de energia jurídica.”172 Enfim, isso tanto não resolveria, a princípio, pois é certo, como salienta MARIA HELENA DINIZ, “não há lei que não contenha uma finalidade social imediata.”173

Ora, quando o Código de Processo Civil (art. 927, I, do CPC) exige do autor de uma ação possessória, de pron- to, a prova de sua posse, exige-a consoante ao que o ordenamento jurídico positivo e mesmo o Direito, por suas demais manifestações ou formas de expressão174 (doutrina, jurisprudência, costumes: princípio da juridicidade), entendam por posse. E a posse agrária, ou posse imobiliária rural constitucional – se assim a pudermos designar –, é a cumpridora da função social (art. 186 da CRFB/88). Mais ainda assim o será se é posse alegada em razão do

direito de propriedade concretamente considerado, a exigir, “como pressuposto para a tutela da posse a demonstração

do cumprimento da sua função social. Trata-se de pressuposto implícito, decorrente da eficácia direta e imediata do princípio constitucional da função social da propriedade.”175 Pressuposto implícito, é bem verdade, mas de importância considerá- vel, a ponto de, com FACHIN, concluirmos que “ficou sem proteção possessória constitucional a propriedade que não cumprir a sua função social.” 176

De se lamentar que alguns aplicadores se agigantem na leitura estritamente gramatical do art. 927 do CPC, e, bastando-se nela, não alcancem a semântica. O dispositivo reconheceu um pressuposto indeclinável, objetivo: provar

a posse. E assim sempre foi e é elementar às possessórias. Fica, então, uma primeira pergunta: o que é posse? Afigura-

se-nos importante a seguir responder ainda à questão: o que é provar a posse (nos termos de lei processual)? Posse é

meramente a situação fática descrita pela consecução por qualquer de atos inequívocos de efetiva ocupação?

Decisões há – e muitas – reproduzindo, embora sem enfrentamento da questão, d.v., aduzindo, à larga de

qualquer argumento, apenas afirmando por afirmar, então sem fundamentar. É que mudam os tempos, mudam as orientações, muda a doutrina, muda a Constituição, mas só não evoluem – senão a custo – algumas decisões. Um movimento de letargia mental parece empecer a vontade de discutir à base de argumentos, isso não pelo só estádio de autoridade revisora.

Há de se ter bem distintos o significado e alcance, bem como a relação que se estabelece entre os dispositivos

legais e mesmo as normas em geral de conteúdo material e processual. Assim, inquestionável, a teor do art. 927

do CPC, competir ao autor da possessória (seja qual for) o dever de, necessariamente, provar a sua posse. Até aqui prevalece a imposição da lei processual. É comando inequívoco. No entanto, não é a lei processual quem definirá o conteúdo da “posse” que exige seja provado. Para a concepção da posse, há o intérprete e aplicador da lei socorrer- se da lei material para desvelar o sentido da posse.

167 – Sobre o fenômeno MAGNAUD, cfr. CRUET, Jean. A vida do Direito e a inutilidade das leis, [s.t.], Lisboa: Aillaud e Bertrand, [s.d.], p. 83-85; SICHES, Luis Reca- séns. Nueva filosofia de la interpretación del Derecho, 3ª ed., México: Porrúa, 1980, p. 53; MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito, 7a ed.,

Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1961, p. 113.

168 – Cfr. EHRLICH, Eugen. Fundamentos da sociologia do Direito (Grundlegung der Sociologie des Rechts), trad. René Ernani Gertz, Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1986, p. 24-25 e LARENZ, Op. cit., 1978, p. 69-72.

169 – DINIZ, Maria Helena. Lei de introdução ao Código Civil brasileiro interpretada, São Paulo: Saraiva, 1994, Cap. I, n 1, p. 3. 170 – MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil, 22a ed., rev. e atual., São Paulo: Saraiva, 1983, vol. I, p. 77.

171 – FRANÇA, R. Limongi. Formas e aplicação do Direito Positivo, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1969, Cap. IV, p. 57.

172 – Apud BEVILAQUA, Clóvis. Teoria geral do Direito Civil, 7a ed., atual. Achilles Beviláqua e Isaias Beviláqua, São Paulo: Livraria Francisco Alves Editora Paulo de

Azevedo Ltda., VIII, no 38, p. 41.

173 – DINIZ, Maria Helena. Op. cit., Cap. II, art. 5o, p. 160.

174 – FRANÇA, R. Limongi. Op. cit., Cap. III, p. 21-25.

175 – DIDIER JR, Fredie. A função social da propriedade e a tutela processual da posse, p. 10.

176 – FACHIN, Luiz Edson. O estatuto constitucional da proteção possessória, in Leituras complementares de Direito Civil, Cristiano Chaves de Farias (Coord.), Salvador: Jus Podivm, 2007, p. 271 (destaque no original).

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Hipótese não afastável de pronto, com feição de paradoxo, é aquela resultante de sentença judicial dando

pela improcedência de um pedido possessório, consolidando, por isso, uma invasão/ocupação/tomada por um grupo social qualquer. No caso, reconhecido e legítimo proprietário ficar apartado de sua respectiva posse em razão de não lograr êxito em ação possessória, justo porque naqueles autos não provou o cumprimento da fun- ção social (é que se para a propriedade o comando importa continuidade e manutenção, para a posse é, antes,

essencial e vital, peremptório). A função social da posse, no entanto, implica bem mais grave do que a função

social da propriedade. A propriedade existe como direito a despeito de uma boa posse, valendo, portanto, que haja um respectivo registro cartorial (Cartório de Registro de Imóveis da circunscrição de localização do bem imóvel rural). Já a posse, por ser fato – qualificado pela função social –, é suscetível de perder densidade e essência, passando a não existir, senão, contrariamente, se estiver na plenitude do cumprimento da função social, esta tal como definida no corpo da Constituição Federal (art. 5o, XXIII, da CRFB/88). Assim, a posse sem

a correspectiva função social nem posse será, mas mera detenção (quando muito). Fica no limbo jurídico a

situação da realidade possessória resultante de uma sentença – transitada em julgado – especialmente cuidando de um conflito coletivo. Declarando, por sentença, que alguém (requerente), proprietário ou não do imóvel, a este não dá, pela posse (exercício do uso), a sua função social, admite-se, por conseguinte, a permanência de um grupo (requerido) naquele imóvel (objeto de ação), que assume, doravante, a responsabilidade do exercício da

posse ali, à ausência de outro mais habilitado.

Nessa perspectiva da hipótese levantada, cabe indicar o imóvel ao Poder Público federal, de modo a que averi- gue da viabilidade de desapropriação por desrespeito à função social (focado em qualquer dos seus aspectos), este já então reconhecido judicialmente. O Incra é o órgão federal autorizado a indicar um imóvel qualquer (dentro de prescrição constitucional) à desapropriação para os fins de reforma agrária. Não prescreve a Constitui- ção ou a legislação infraconstitucional outra “penitência” ao proprietário que descumpra a função social. É, neste particular, norma em branco – de lege ferenda. Mais ainda quando a lei (medida provisória) impede que área inva-

dida seja vistoriada pelo Incra. Mas mesmo assim pode o Judiciário determiná-la em sede de perícia judicial no

bojo dos autos da possessória, e a eventual conclusão pelo descumprimento da função social poderia redundar, aí sim, até na consideração de abandono. A situação enseja discutir-se até que ponto valeria a decisão da Justiça

Estadual perante a Justiça Federal numa possível ação expropriatória (ainda mesmo que uma desapropriação

rural por interesse social, não necessariamente destinada à reforma agrária, mas a outro fim qualquer compatível com a política agrícola e fundiária). Ou se reconheceria a mesma hipótese perda da propriedade – não em favor dos requeridos, mas do Poder Público (União), por força do art. 1.276, § 1o, do CCB/2000. Nessa linha de racio-

cínio, pode acontecer que um mesmo imóvel, conquanto não seja objeto de cumprimento da função social, de outro lado não se mostre apto ao assentamento, por não abrigar número razoável de famílias (proporção custo/ benefício). Se a tanto, a questão administrativa deve ser desvendada pelo Incra.

A permanecer, ao fim, inerte o Estado, sem conduzir o caso a uma efetiva solução, aí prevalecerá especialmente

desconsiderada a situação do proprietário (ou possuidor) relapso no exercício e fiscalização da posse, a redundar

no não cumprimento da função social. Mantém-se, embora, quanto a ele – se o proprietário – o direito à proprie-

dade do mesmo imóvel, deste não podendo ser privado sem a competente indenização, pena de confisco. Neste

particular, há quem entenda na expressão constitucional “justa indenização” incoincidência com “valor de merca-

do”, porque a desapropriação, quando acontece em caráter sancionatório, há de considerar, inexoravelmente, a

desobediência do proprietário expropriado a um dever fundamental, valendo a regra da proporcionalidade.177

Neste acaso pode cair por terra, e ainda considerando os pressupostos elencados, a necessidade de qualquer

vistoria nos termos exigidos pelo art. 2o, § 2o, da Lei no 8.629/93, ao mesmo tempo proibida pelo seu § 6o (por força

do art. 4o da Medida Provisória no 2.183-56/2001). Trata-se de uma realidade nova a ser considerada e discutida. À

parte do procedimento ordinário destinado à implementação de eventual política de reforma agrária, levada a cabo pelo Incra, surge a nova demanda oriunda de um conflito possessório por imóvel rural, questão pontualmente

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apreciada pelo Poder Judiciário de estado-membro da Federação que substitui a vistoria, adiantando-se em declarar o não cumprimento da função social. Essa linha de reflexão incide exatamente nos casos trazidos a uma vara espe-

cializada em conflitos coletivos agrários.

Considere-se também que em área subutilizada não há como indeferir parcial proteção possessória, cabendo, por vezes, o comparecimento do Incra ao processo, de modo a que, no bojo dos autos, proceda à vistoria em sede de contraditório, até mesmo com força de perícia. Em comprovado o não atendimento da função social, poderá a autarquia indicar a área para decreto do Presidente da República. Ressalte-se que o Incra está impedido de vistoriar

imóvel invadido ou ocupado apenas administrativamente.

Ora, ao declarar protegida a propriedade, sob admissível sua perda (expropriação) mediante bastante inde-

nização, a Constituição manifesta expressa escolha do constituinte – povo brasileiro – por um sistema capita- lista de propriedade privada; de outra sorte o indeferimento do pleito de proteção possessória da totalidade

de um bem imóvel rural é a declaração estatal de uma expropriação indireta pelo particular. Se o proprietário fica impedido ao acesso ao bem, por impossibilitado de usufruir dele no exercício de sua posse, isso indefini-

damente no tempo, objetivamente lhe está sendo tirada a propriedade, e maculado o direito constitucional fundamental a uma expropriação mediante indenização e dentro de um devido processo legal.

Então, a situação que melhor se apresenta num contexto de análise dos princípios conflitantes, na ponderação deles, é prestigiar a ordem no que tange ao desestímulo a ações passionais e ao largo da Constituição e da lei. Se por um lado é abusivo e desrespeitoso não cumprir o proprietário o preceito constitucional da função social da propriedade, por outro lado, menos desrespeitoso não será a busca violenta do mesmo direito de propriedade pelo uso da invasão de áreas, criando um modo enviesado de aquisição, ainda que precária, da propriedade.

Criou-se um argumento, data venia, sofístico, de que aquele que não dá função social à propriedade e, via de

consequência, à posse não teria a proteção possessória. A lógica desta assertiva é a mesma que sustenta a tese de

que “ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão”. É o absurdo de contemplar situações de barbárie ou de des-

consideração do Estado de Direito. E nós vivemos num Estado Democrático de Direito – com tantas imperfeições

– assim como tal proclamado e reconhecido pela mesma Constituição que consagra o direito de propriedade, a

função social da propriedade e a imperiosa política de reforma agrária. A par disso há de se considerar que o reco-

nhecimento de uma tese tal imporia quase que um juízo sumário, dentro dos pressupostos processuais, a redundar no indeferimento da inicial possessória.

Enfim, como haveria de ser é. O feito é processado. Concedida ou não a ordem de desocupação ou interdital

liminar, a ação corre, não no sentido de reconhecer afinal uma desapropriação da área litigiosa, mas para restabele- cer a ordem, de modo que não se prestigie nem a atitude de deslize no cumprimento da constitucional função social,

e muito menos a ação de invasão de área particular. Ao proprietário relapso há de resultar a comunicação de sua

omissão aos órgãos competentes para as providências cabíveis.

Afastar em absoluto a proteção possessória para aqueles casos de subutilização do imóvel rural – o que difere do

abandono – conduz, pois, a uma insustentável ideia de perda daquela posse, inviabilizando o exercício do direito de propriedade. Concomitantemente estimula ações violentas de invasão de terras. Por tudo, subverte-se o devido processo legal, isso nada obstante a que a subutilização conduza à negação da tutela possessória, dependendo de seu grau (razoabilidade, proporcionalidade).

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