• Nenhum resultado encontrado

1.5.2.1.1 – Da legitimidade dos movimentos sociais

Manifestação sociológica irrecusável da contemporaneidade desde antanho, os movimentos sociais repre-

sentam força marcante e considerável na formulação das regras jurídicas, e, ainda antes, no estabelecimento de um pacto estatal. A tal propósito, o das organizações sociais um tanto distantes das intencionalidades do

direito positivo, havemos de reconhecê-las como “entidades (ou objectivações) juridicamente conformadas e concei-

tualizadas, mas em que um dos termos distinguidos recebe a designação ‘de facto’ por razões particulares (juridicamente particulares), fundamentalmente diferentes das razões pelas quais, usando a expressão, se poderá opor o jurídico ao puro não jurídico; pois a designação ‘de facto’ traduz agora uma específica estrutura jurídica de certas relações e instituições concretas, quando postas em confronto com aquelas outras que mereçam, também nesta perspectiva, a predicação ‘de di- 180 – Volvido para a questão dos contratos, cfr. MACHADO. Luciano Rodrigues. A função social e a legitimação para a causa, in Questões Processuais do Novo Código Civil,

|

107

reito’, e para significar que de umas relativamente às outras se verificaria uma divergência na índole dos fundamentos das suas respectivas juridicidades – as primeiras de uma juridicidade que elas em si mesmas exibem e impõem, as segundas de uma juridicidade que lhes vai formal e antecipadamente reconhecida –, sem deixar, ao mesmo tempo, de querer assim traduzir uma diversa acentuação de validade jurídica, que só seria plena se fosse ‘de direito’ e apenas como que larvar se houvesse dizer-se ‘de facto’.”181 Bem lembra ainda C

ASTENHEIRA NEVES, que tais situações de constituição autônoma na vida social possuem juridicidade concreta e real (com relevo jurídico, seja præter ou contra legem), incoinci- dentes embora com a juridicidade legalmente positiva (ou do direito oficial, como diria C. SFORZA).182

Na visão de S. EHRLICH,183 em recolha de MANCUSO, os grupos sociais organizados são um representante único de parte da sociedade; a sua vontade é geral em relação aos seus aderentes, mas continua entretanto fragmentária em relação ao Estado.184

A esta articulação aflorada no seio da sociedade, como organização interna “extraestatal”, “não institucional”, a que modernamente se reconhece como setor organizado civil, ou simplesmente “sociedade civil organizada”,185 há quem reconheça em seus atos (atos sociais) frutos da consciência nacional, desafiando força coercitiva por “mera questão de opinio necessitatis.”186 Daí advém o direito consuetudinário, este nada mais senão que atos sociais de fato

com força jurídica, vindo a pelo dos problemas sociojurídicos.187

Para MANCUSO, na análise dos grupos ocasionais, espontâneos, quanto a usufruírem o direito fundamental de acesso à Justiça, há de se desconsiderar, dispensando, a concepção rígida ou clássica de personalidade jurídica,

à vista de se tratar de interesses metaindividuais. Nessa hipótese, buscar-se-á a qualificação “em critérios objetivos: a capacidade de expressão coletiva do grupo e a natureza socialmente relevante de seu objeto.”188 Releva a existência de certos

objetivos, e não a existência legal do grupo.189 “E, para mais, força é convir que um ente desprovido de personalidade jurídi-

ca não é um pária na ordem jurídica. (...) Em síntese, ente de fato não significa ente irrelevante do ponto de vista jurídico.”190 Vige para a teoria da pessoa jurídica a tese da desconsideração, reconhecendo, antes, a capacidade objetiva

do grupo.191 Da natureza mesmo da tutela aos interesses difusos não exigir rigor formal em matéria de personali-

dade jurídica como pressuposto da capacidade processual.192 Considerar a personalidade jurídica, em se tratan- do de interesses difusos, portanto, desafia “temperamentos especiais, à vista da natureza fluída, por vezes fugaz, desses interesses.”193 Não será, nesta linha de raciocínio, impediente à tutela jurisdicional “o mero reconhecimento da higidez jurídico-formal do grupo que deles se faz portador.”194

Questão tormentosa, no entanto, põe-se quanto à legitimidade dos movimentos sociais em sua atitude de violar um declarado direito de propriedade, quantas vezes fruto de uma cadeia dominial secular ininterrupta,

constante de registros públicos impecáveis. A invasão dos limites do direito de propriedade, fundamental, assim como o diz a Constituição, rompe com o dever de cada particular ao respeito dos direitos fundamentais na sua

perspectiva horizontal. Como sintetizou o Des. GUINTER SPODE, a invasão por força coletiva dos movimentos é sem

sustentação jurídica nos códigos, sequer havendo lei que a discipline; a ação desses grupos organizados sustenta-

se em argumentos de “natureza moral e de caráter político-social, suscitando seus direitos fundamentais, garantidos pela Constituição Federal.”195 E por tudo isso é que “não se tem notícia de que alguma dessas ocupações, de per si, tenha deter-

181 – NEVES, António Castanheira. A distinção entre a questão-de-facto e a questão-de-direito, In, Digesta: escritos acerca do Direito, do pensamento jurídico, da sua metodo- logia e outros, Coimbra: Coimbra Editora, 1995, vol. 1o, p. 502-508 (Destaque original).

182 – Idem, p. 509.

183 – EHRLICH, Stanislaw. Le povoir et les groupes de pression, Paris: Mouton, 1971, p. 6.

184 – MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesses difusos: conceito e legitimação para agir, 5a ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, Cap. 1, no 1.7, p. 38.

185 – Cfr. Dagnino, Evelina (org). Sociedade civil e espaços públicos no Brasil. São Paulo: Editora Paz e Terra e Unicamp, 2002, 364p. 186 – FRANÇA, R. Limongi. Op. cit., Cap. III, p. 37.

187 – Idem, ibidem.

188 – MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Op. cit., Cap. 3, no 3.3.2.2.2, p. 198.

189 – Idem, p. 200. 190 – Idem, Ibidem. 191 – Idem, p. 201. 192 – Idem, p. 194. 193 – Idem, p. 202. 194 – Idem, ibidem.

195 – TJRS – Agravo de Instrumento no 598.360.402 – Comarca de São Luiz Gonzaga – 19a Câmara Cível – Rel. Des. GUINTER SPODE – j. 6.10.1998 (cfr. Questões agrárias: julgados

|

108

minado a alteração da posse, perdendo-a o titular domínio para os possuidores assim introduzidos na terra.”196

As ações dos movimentos sociais organizados, ainda que ditas de conteúdo marcadamente político, têm óbice de aceitação na impossibilidade de subsumirem-se ao chamado “direito à indignação”, lembrado por CANOTI- LHO.197 É que a desobediência civil, típica forma de expressão de oposição política, tem como pressuposto a não violência, assim como um conteúdo político consciente, isto é, assimilado por todos os componentes do grupo de

maneira inequívoca. O objetivo é mesmo provocar a mudança nas leis ou programas de governo. Reside num plano

ideológico, assim mais elevado do que o plano material envolvendo barganhas com proprietários, emoldurando um

conflito mesmo de caráter privado – infelizmente.198

Afigura-se-nos elementar a distinção a se estabelecer entre a legitimidade de existência dos movimentos sociais de luta a favor da implementação de uma justa divisão de terras no Brasil e a legitimidade da ação desses mesmos grupos, particularmente da estratégia de luta que elejam na forma de invasão/ocupação/tomada de terras. Absoluta- mente ninguém há de ignorar, ainda hoje, a prevalência de profundas – e por isso ecoam injustas – diferenças sociais, a desafiarem a organização das minorias. Se já nos localizamos num Estado de Direito, seguramente democrático, a ponto de ensejar aos plúrimos grupos sociais possibilidade de manifestarem seu pensamento e interferirem na formula- ção das políticas públicas, a opção pela violência não se nos afigura como uma evoluída forma de agir, senão revela um

instinto anarquista ou demagógico, partidário de uma ideologia ultrapassada.

Aspecto importante de observação nestes autos, a partir da matéria esteio da lide, em torno do qual se es- tabelece o debate – um direito fundamental –, cuida que devemos atentar para os efeitos dos direitos funda-

mentais, porque seu titular compartilha-o com toda a comunidade (função social), ou porque a comunidade

obriga-se a respeitá-lo na titularidade do particular.

Ora, se a propriedade não cumpre sua função social, a quem caberá restituir esse direito ao seu curso cons-

titucional? Tornada a propriedade já agora um típico direito social, nesta condição assim vista como da essência do homem, igual aos ditos direitos naturais pelo jusnaturalismo, legitimar-se-ão os grupos sociais, ou mesmo o

particular, à disputa da posse a partir de um ato de invasão (violência) fundado em que o declarado possuidor não cumpre a função social da propriedade?

Há de se entender – pelo menos em tese – que o movimento social, na caracterização de um conflito coletivo, não pleiteia absolutamente nada para si, para seus circunstantes componentes. Seu pleito, sua luta, é metaindividu-

al, neste aspecto mais difuso que propriamente coletivo. Luta para além de um interesse público ou fazendário,

luta por um interesse social, típico da coletividade.199 Seus limites pessoais talvez se possam dizer divisados na coincidência do território do estado-membro da Federação, ou, quando ainda menos, se se trata de um Estado tão plúrimo quanto o das Minas Gerais deste Sudeste. Ou, ainda, contemplando uma categoria infinda de “sem-terra” de um município ou de uma região.

Acolher esta tese redunda grave para os movimentos sociais, grupos diversamente organizados sob bandeiras

multicores, quase sempre de fundo escarlate, tom quente, símbolo da humana seiva que transita, tépida, nas vias

venosas ou arteriais. É dizer, qualquer decisão num conflito coletivo agrário é erga omnes, data venia.

A posse que se discute nas ações da Vara Agrária estadual (dos conflitos coletivos) é aquela analisada à luz de um

compromisso social estruturante, por isso constitucional. Não se vincula à pessoa do então possuidor (proprietário ou

não), mas liga-se umbilicalmente ao modo de exercício, a ser universalizado na sua tipificação sob a ótica da análise es-

tatal – judiciária ou administrativa. O veredito do Estado-Juiz ou do Estado-Administração (Incra) redunda em efeitos

defensáveis pela comunidade jurisdicionada, não exclusivamente por aqueles componentes indiscriminados do proces- so. Eles, embora reconhecidos e conhecidos dentro do processo social, no seio do grupo, nem sempre são descritos nos autos do processo judicial, declinados por suas respectivas identidades (por vezes, por eles mesmos, ocultadas). 196 – TARS – Agravo de Instrumento s/no – Câmara de Férias – Rel. Juiz PERCIANODE CASTILHOS BERTOLUCI – j. 25.7.1997 (cfr. Questões agrárias: julgados comentados

e pareceres, VIII, p. 134).

197 – Cfr. CANOTILHO. Gomes, Direito constitucional..., 7a ed., Tít. 2, Cap. 2, E, IV, p. 328.

198 – Cfr. Teoria de Justiça, John Rawls, Faticidade, Habermas.

199 – Cfr. MANCUSO, Rodolfo de Camargo. A proteção judicial de interesses difusos e coletivos: funções e significados, in Processo Civil e Interesse Público: o processo como instrumento de defesa social, org. Carlos Alberto de Salles, São Paulo: Coedição Editora Revista dos Tribunais – Associação Paulista do Ministério Público, 2003, Cap. 8, p. 128-129 (destaques no original).

|

109

Assim, uma concessão liminar ou decisão de mérito obtida em feito interdital opera-se plena em face de todos e de qualquer um, valendo sobretudo diante do mais próximo “inimigo”, perigo imediato. Outra a ótica, estabelecer-se-ia uma sofismática proteção a que o comando judicial ofereceria ao requerente da tutela judiciária, que teria de renovar a todo o instante seu pleito, porque os movimentos, camaleônicos por essência, transmutar- se-iam com o só intuito de ludibriarem uma decisão judicial. Aliás, nisso está a excelência dos referidos movimen- tos que, deliberadamente, não assumem qualquer personalidade jurídica, com isso se esquivando de qualquer

responsabilidade exequível.

Finalmente, o que mais impressiona é, no bojo dos autos, a desarticulação dos movimentos sociais, estes que acabam por se fiar, mor parte das vezes, no zelo do Ministério Público na defesa de seus interesses enquanto atua na defesa do interesse público evidente na lide.200 Eles não se empolgam, têm uma atuação processual ine- ficiente, distinta do empenho e da combatividade das ruas, se sob o foco da mídia; nos autos os “sem-terra” são

marcadamente passivos, inertes e silenciosos, desinteressados na produção de provas, esquivos de assumirem- se no processo, receosos da responsabilidade civil. Muito disso, informa-nos a experiência, é fruto da banaliza-

ção das invasões, a que se têm dedicado inúmeros grupos, sem qualquer estudo prévio de área.

Outline

Documentos relacionados