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A FUNDAÇÃO DA ACADEMIA

No documento Embates em torno do Estado laico (páginas 35-40)

Uma consequência indireta de importância monumental da condenação de Sócrates foi a criação, por Platão, da primeira instituição formal dedicada à pesquisa e ao ensino das ciências e da filosofia. Trata-se da Academia, origem e modelo das universidades e academias que estruturam o conhecimento no mundo atual. O nome reporta ao herói grego Ecadêmio que dava nome à área

105 CÍCERO, De finibus, III, 60. Esta doutrina moral estoica foi muito criticada no mundo cristão, religião que opõe hoje em dia no Brasil a maior resistência à descriminalização da eutanásia, prática bem menos radical do que a proposta estoica.

campestre escolhida por Platão para estabelecer a sua escola107. Ainda sob a direção de Platão, a Academia formou filósofos-cientistas como Aristóteles e se dedicou, em sua primeira fase (chamada Velha Academia), principalmente a estudos matemáticos-cosmológicos108. A partir do século II a.C., sob a direção de Arcesilau de Pitane, retoma e radicaliza a tradição socrática, caracterizando- se pelo exame crítico de todas as doutrinas filosóficas. Valores epistêmicos que Sócrates considerava fundamentais no exercício da razão são enfatizados pela Nova Academia, especialmente a liberdade de pensamento e oposição a qualquer autoridade no âmbito do pensamento (inclusive à do próprio Platão, fundador da escola). Localizada fora dos muros de Atenas, a fundação da Academia significou o reconhecimento por Platão de que a vida na cidade, com seus interesses e crenças tradicionais, especialmente suas leis amalgamadas às tradições religiosas, cerceava a atividade intelectual livre, imprescindível para a prática filosófica/científica. A Academia fundada por Platão foi a alternativa que encontrou para o exercício da liberdade de pensamento, cerceada no âmbito da ágora. Como uma das maiores fontes de cerceamento da atividade intelectual é a religião109, não seria exagero dizer que a Academia pôde retornar ao âmbito público do Estado somente após este iniciar, no período moderno, o processo de laicização, preservando as instituições acadêmicas da influência da religião (e de outros interesses não científico-educacionais) através da instituição da autonomia universitária e da liberdade acadêmica de investigação, ensino e expressão. Liberdade acadêmica é, se tomamos o sentido original de “acadêmica”, um pleonasmo, pois a instituição mesma é criada no Ocidente para assegurar a liberdade intelectual ferida de morte no julgamento de Sócrates.

É óbvio que a solução encontrada por Platão para viabilizar a continuidade da prática e do ensino da ciência e da filosofia é uma derrota do ponto de vista de Sócrates, para quem tal prática tinha que ocorrer na ágora. A possibilidade de trazer de volta a Academia para a esfera pública estatal, viabilizada, entre outros fatores, pela laicidade, de maneira que ela possa exercer papel fundamental na 107 “Having returned to Athens [de uma viagem à Sicília onde, por pouco, não foi preso, Platão] lived in the Academy, which is a gymnasium outside the walls, in a grove named after a certain hero, Hecademus, as is stated by Epolis in his play entitled Shirkers: In the shady walks of the divine Hecademus. Moreover, there are verses of Timon which refer to Plato: Amongst all of them Plato was the leader … who perched on the trees of Hecademus. Thus the original name of the place was Hecademy, spelt with e” (DIÓGENES LAÉRCIO, Lives, III, 7-8).

108 Segundo Descartes (1999, p. 24-26), a Velha Academia esboçou os fundamentos da física-matemática, chamada por Descartes de mathesis universalis (matemática universal), origem e fundamento da física clássica que ajudou a desenvolver.

109 Evidentemente, não vem somente da religião o cerceamento da liberdade acadêmica. Interesses econômicos e políticos — alguns também indiretamente aludidos no caso socrático — podem ser igualmente danosos.

formação dos cidadãos e cidadãs, é a realização ampliada, com a inclusão das mulheres e dos descendentes dos escravos, da prática socrática. Sócrates afirmava prestar o mais valioso serviço ao Estado, que exigia a gratuidade para garantir a autonomia e liberdade do pensamento, e que por isto deveria ser sustentado por ele. A sucedânea contemporânea da Academia de Platão, a universidade, precisa assim, se formos seguir o exemplo socrático, manter-se pública, gratuita, atuante na sociedade, mas ao mesmo tempo autônoma, protegida dos interesses e tradições que se opõem à liberdade acadêmica, sobretudo os religiosos.

CONCLUSÃO

Traduzo uma breve conclusão do helenista Richard Janko, relevante não somente para o contexto brasileiro, mas para o ocidental em geral.

“A maioria dos gregos era livre para pensar como queria, e alguns deles assim fizeram com efeitos notáveis. Mas sob a pressão [...] de medos exagerados, fundamentalismo religioso, e uma constituição que conferia ao povo um poder inquestionável, os atenienses, orgulhosos inventores da democracia, sustaram o progresso científico e filosófico ao perseguirem aqueles cujas ideias julgaram perigosas, sobretudo Sócrates. Embora os seus seguidores os tenham punido ao tornarem Atenas o maior centro educacional do mundo antigo, a intolerância dos atenienses teve consequências desastrosas, pois a ciência e o pensamento livre levaram 2000 anos para redescobrir os caminhos para o conhecimento que os gregos foram os primeiros a explorar. Com sua morte, Sócrates assinalou a moral da história: limites legais à autoridade política e religiosa são vitais para o progresso intelectual da civilização.”110

Este ganho duramente conquistado após 2000 anos, que envolveu retratações obtidas mediante graves ameaças111, excomunhões112, demissões de universidades113, encarceramentos114, exílios115, e fogueiras116, está ameaçado no Brasil atual por forças que se opõem aos limites legais à ingerência político- religiosa na atividade científica e educacional.

110 JANKO, 2009, p. 61. Tradução do autor.

111 Como a de Galileu, em face à Inquisição católica romana.

112 Como a de Espinosa, da comunidade judaico-portuguesa de Amsterdam.

113 Como a de William Whiston, sucessor de Newton em Cambridge, por tornar pública sua descrença no dogma da trindade (cf. SNOBELEN, 2002, p. 269).

114 Como o de Campanella, preso durante 27 anos em Nápoles.

115 Tanto voluntários, como o de Descartes, como forçados, como o de Bayle, ambos para a Holanda.

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