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Fim da vida humana

No documento Embates em torno do Estado laico (páginas 113-117)

A rigor, as discussões sobre início e fim de vida giram basicamente em torno da compreensão religiosa de que a vida é um dom divino e que não se deve interferir nos desígnios de Deus. Estes postulados estão frequentemente associados à ideia de que o sofrimento humano não é necessariamente ruim,

mas pode ser compreendido como algo bom para quem sofre. Como o papa João Paulo II explicitou em sua Carta Apostólica Salvifici Doloris o sentido cristão do sofrimento humano está relacionado à possibilidade de sua redenção. Essa Carta Apostólica é bastante elucidativa no sentido de oferecer aos que creem uma explicação à luz não apenas do evangelho canônico, mas da Bíblia como um todo.

11. Se é verdade que o sofrimento tem um sentido como castigo, quando ligado à culpa, já não é verdade que todo o sofrimento seja consequência da culpa e tenha carácter de castigo. [...] Se o Senhor permite que Jó seja provado com sofrimento, fá-lo para demonstrar a sua justiça. O sofrimento tem caráter de prova.

12. Isto é um aspecto importantíssimo do sofrimento. Está profundamente arraigado em toda a Revelação da Antiga e sobretudo da Nova Aliança. O sofrimento deve servir à conversão, isto é, à reconstrução do bem no sujeito, que pode reconhecer a misericórdia divina neste chamamento à penitência. A penitência tem como finalidade superar o mal que, sob diversas formas, se encontra latente no homem, e consolidar o bem, tanto no mesmo homem, como nas relações com os outros e, sobretudo, com Deus. (PAPA JOÃO PAULO II, 1984).

A conclusão desta Carta não deixa dúvidas da importância do sofrimento para os que creem e seguem a doutrina, mas sem dúvida carece de significado para aqueles que não sejam seguidores dela.

31. Tal é o sentido do sofrimento: verdadeiramente sobrenatural e, ao mesmo tempo, humano; é sobrenatural, porque se radica no mistério divino da Redenção do mundo; e é também profundamente humano, porque nele o homem se aceita a si mesmo, com a sua própria humanidade, com a própria dignidade e a própria missão. (PAPA JOÃO PAULO II, 1984).

As discussões relacionadas com o fim da vida humana têm especial relevância nos tempos atuais, quando o avanço da biotecnociência possibilitou um prolongamento quase que indefinido da vida de humanos que estejam internados nas modernas unidades de terapia intensiva com os recursos de última geração disponíveis. É possível dizer que provavelmente a maioria dos óbitos ocorridos nessas circunstâncias é secundária a uma decisão médica de deixar de administrar algum medicamento ou de realizar algum procedimento técnico. Dessa forma, o prolongamento da vida de pessoas, muitas vezes com grande sofrimento pessoal ou de seus familiares, consumindo recursos (públicos ou privados) que poderiam estar direcionados para o cuidado de pessoas com chances de se recuperarem, pode se tornar uma grande injustiça ou mesmo perversidade. Há, no jargão médico, uma expressão com essa denotação: futilidade terapêutica. Particularmente não nos agrada essa expressão, pois a ideia de futilidade seria o resultado de uma avaliação do profissional e não necessariamente do sujeito autônomo enfermo. Outra expressão comumente usada no meio médico é um pouco melhor, obstinação terapêutica, embora

ainda centrada na percepção e ação do médico. Em realidade, a maioria dessas situações pode ser mais bem caracterizada como distanásia, ou seja, morte com sofrimento. É importante ressaltar que, ao contrário do que alguns religiosos buscam afirmar, a laicidade não desqualifica a vida como um bem maior, apenas não considera que ela deva ser preservada a qualquer preço, especialmente quando o enfermo considerar que o sofrimento pelo qual está passando é injustificável para ele. Muitos países têm revisto seu ordenamento jurídico no sentido de permitir, em certas condições, seja a eutanásia, seja o suicídio medicamente assistido. No Brasil, onde a vida humana é fortemente tutelada pelo Estado, ainda não há a possibilidade do titular da vida, pessoa em pleno exercício de sua autonomia, definir o quantum de sofrimento a vida pode lhe proporcionar. Ao lado disso, nos hospitais, especialmente nos centros ou unidades de terapia intensiva, a eutanásia passiva é frequentemente praticada sendo nominada por eufemismos como “limitação de suporte terapêutico” ou “ortotanásia”. A não abertura para a discussão livre de paixões ou pré-conceitos especialmente religiosos, favorece a tomada de decisão do médico, segundo as suas próprias convicções, sejam elas supostamente técnicas ou disfarçadamente religiosas, à revelia do titular da vida, sendo, em muitos sítios, após a imposição de um longo e tenebroso sofrimento. Ou, por outro lado, a tomada de decisão do médico pode resvalar para o puro assassinato quando, segundo sua avaliação a vida daquele que assiste já não mais valeria a pena.

É fato que a Igreja Católica tem emitido, em diferentes situações, posições menos absolutas em relação ao fim de vida humana, embora essas ideias não tenham uma ressonância significativa. É fato que o papa Pio XII em 1957 manifestou-se favorável a abster-se da utilização de todos os meios terapêuticos disponíveis em casos específicos. O atual papa, Francisco, em 17 de novembro de 2017, enviou mensagem aos participantes de um encontro da Associação Médica Mundial no qual afirmava que “É moralmente lícito renunciar à aplicação de meios terapêuticos, ou suspendê-los, quando o seu emprego não corresponde àquele critério ético e humanístico que, em seguida, seria definido como ‘proporcionalidade dos tratamentos’” (PAPA FRANCISCO, 2017). No campo das pesquisas científicas os atritos com visões religiosas que buscam impor seus interditos à sociedade como um todo em decorrência da interpretação que é feita das Escrituras também não são raros e, em geral, estão focados na tentativa de limitar determinados estudos que, acreditam eles, poderia transformar a natureza humana. Referimo-nos especialmente às pesquisas genéticas ou que se utilizem de células embrionárias que, de uma maneira geral, são vistas como passíveis de interferir na natureza humana. Assistimos a um exemplo desse embate no espaço público quando da discussão sobre a autorização para a realização de pesquisas utilizando-se células tronco

de pré-embriões armazenados congelados nas clínicas de reprodução humana. Religiosos entendem que essas células já se constituem em um ser humano, devendo ser, portanto, interditada sua utilização em pesquisas já que isso representaria, em última análise, um homicídio. A lei foi aprovada e pré- embriões armazenados há mais de três anos (BRASIL, 2005) poderiam ser utilizados para fins de pesquisa. A regulamentação corporativa, Conselho Federal de Medicina – CFM, não reconhece fetos natimortos com menos de 20 semanas de gestação ou pesando menos que 500 g e/ou estatura inferior a 25 cm como merecedores de certidão de óbito e, portanto, direito a enterro (CFM, 2005). Ou seja, não reconhece neles o estatuto de pessoa humana, razão pela qual esses materiais são descartados como lixo hospitalar. Já o texto da Resolução CFM nº 2.168/2017 (CFM, 2017) determina o número máximo de embriões que pode ser implantado, proíbe a redução embrionária (procedimento de impedir o desenvolvimento de mais de um embrião implantado quando mais de um tenha se desenvolvido) e determina o prazo para o descarte a partir dos três anos de congelamento (até então cinco anos). Entretanto, nos casos em que a família não esteja cumprindo suas obrigações financeiras na manutenção do congelamento dos embriões, os mesmos podem ser descartados independente da vontade dos donos do material. Ou seja, nesses casos o descarte do embrião é determinado por uma razão econômica. Ainda no campo da pesquisa científica ocorreu recentemente um episódio que demonstra o risco que pode estar relacionado com a predominância de procedimentos fundamentados por uma visão religiosa dogmática. As pesquisas científicas com medicamentos novos são geralmente realizadas inicialmente em pacientes adultos. Quando o desconhecimento de possíveis efeitos colaterais e mesmo da farmacodinâmica ainda é grande, essas pesquisas costumam estabelecer forte impedimento à participação de mulheres grávidas, devido à falta de informações sobre eventuais efeitos teratogênicos, ou seja, para o embrião ou feto. Assim, essas pesquisas usualmente determinam que toda mulher em idade fértil que vá participar do estudo deva utilizar não um, mas dois métodos anticoncepcionais para que não haja risco de uma gravidez durante o uso da nova droga. Como se sabe, a Igreja Católica tem uma posição contrária ao uso de anticoncepcionais por mulheres e ela, com a atuação de seu representante na Comissão Nacional de Ética em Pesquisas – Conep, conseguiu aprovar uma ressalva de ser aceita a informação da eventual participante da pesquisa de que se absteria de relações sexuais seja por não ser heterossexual seja por não ser sexualmente ativa. Assim, sob um argumento que consideraria a autonomia da mulher, ao contrário, essa medida permite a exposição de sua sexualidade, ou preferências sexuais, que não estariam em relevo de outra forma, configurando um desrespeito à mulher. Além disso, esta decisão, em nossa avaliação, amplia de forma insensata os eventuais riscos associados às pesquisas que determinam tal

interdição que passa a ser ignorada pelo sistema de avaliação ética brasileiro, sem que um argumento válido tenha sido apresentado.

No documento Embates em torno do Estado laico (páginas 113-117)