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ONDE AS CRENÇAS RELIGIOSAS SÃO MAIS LEMBRADAS? UM OLHAR SOBRE PESQUISAS REALIZADAS

No documento Embates em torno do Estado laico (páginas 170-174)

A compreensão das dificuldades dos estudantes no contexto do ensino de Biologia, em especial da teoria da evolução, pode ser avaliada à luz do desinteresse pelo ensino religioso detectado na pesquisa acima relatada. É o que será abordado a seguir a partir de resumos de pesquisas com destaque para os resultados referentes às crenças religiosas dos jovens e às condições em que elas se manifestam.

Gould (1997), pesquisador da Teoria da Evolução, interessado no ensino, sugere que a teoria evolutiva seja ensinada sem levar em conta as questões da origem da vida. Para ele, origem da vida remete a questões religiosas e estas poderiam ser evitadas se o foco ficasse nos fenômenos evolutivos. Pesquisamos essa possibilidade em cinco escolas do Ensino Médio (duas de rede estadual, duas da rede federal e uma da rede privada laica). Os resultados mostraram que, mesmo quando o foco está nos fenômenos evolutivos, a referência à origem do primeiro ser vivo é lembrada pelos estudantes. E vice-versa, se o foco está na origem dos seres vivos, questões sobre sua evolução são trazidas. Nessa pesquisa, as crenças religiosas, quando expressas, estavam associadas às condições socioeconômicas da escola e de seus estudantes. O perfil religioso dos estudantes das cinco escolas era semelhante: em sua grande maioria eram crentes em Deus com ou sem adesão a uma religião. Entretanto, crenças religiosas associadas às explicações para origem e diversidade da vida foram bem mais evidentes entre estudantes de escolas onde os recursos para o ensino de ciências eram precários: ausência de laboratório, atividades culturais e científicas quase inexistentes, professores nem sempre presentes nos dias regulares de aula e ausência de coordenador pedagógico. As conclusões da nossa pesquisa sugerem que, nas escolas onde as

atividades de ensino são regulares e incluem praticar ciência, a compreensão científica para a origem da vida e a teoria da evolução prevalece entre os estudantes. (SANTOS; FALCÃO; CERQUEIRA, 2016)

Possíveis crenças religiosas presentes na aprendizagem de conceitos científicos relacionados aos temas “Origem do Universo”, “Origem e diversidade da vida” e “Causas dos fenômenos naturais” foram investigadas por nós em colégio federal, onde o ensino de ciências conta com recursos adequados. O perfil dos estudantes incluía crenças religiosas, quase sempre com adesão a religiões. Crenças religiosas associadas à rejeição, ou à incompreensão, das explicações científicas revelaram-se claramente. Contudo, as dificuldades dos jovens não puderam ser atribuídas exclusivamente às influências de crenças religiosas. Outros fatores foram detectados: pouco tempo dedicado aos temas investigados e erros em explicações científicas de estudantes que tinham ou não crenças religiosas. Se foi notório o esforço de parte dos jovens para

harmonizar explicações religiosas e científicas, foi também possível constatar o aumento da adesão às explicações científicas ao final do Ensino Médio.

O colégio investigado, embora com dificuldades, contava com laboratório, coordenadores. pedagógicos e atividades culturais e científicas ao longo dos três anos do Ensino Médio. (FALCÃO; TRIGO, 2015)

Investigamos a visão da teoria evolutiva de uma docente de Biologia num colégio religioso, cujo projeto envolvia aproximação entre preceitos religiosos e conteúdos das disciplinas regulares. Observações sobre o comportamento da professora foram feitas no colégio investigado e na universidade (visitas da docente aos laboratórios). Os resultados mostraram que, em suas aulas na escola, a docente expressava restrições às explicações científicas no confronto com preceitos bíblicos. Já no ambiente universitário, revelava entusiasmada adesão à abordagem científica, buscando informação sobre pós-graduação. Concluiu-se que seu comportamento era condicionado ao vínculo institucional e ao compromisso com o projeto escolar religioso. Na universidade, ela encontrava reconhecimento e liberdade para expressar seu interesse pela ciência, no caso, teoria da evolução. A necessidade de condições laicas foi uma

das conclusões tanto para a garantia do acesso aos conteúdos científicos como para a expressão livre de tais conteúdos. (VIEIRA; FALCÃO, 2014)

Outra pesquisa identificou e analisou, de forma comparativa, nas três séries do Ensino Médio, as representações sociais de estudantes de uma escola evangélica sobre o tema evolução biológica. O perfil religioso dos jovens incluía majoritariamente estudantes evangélicos, mas incluía também católicos e cristãos sem adesão a uma religião. O colégio apresentava condições materiais adequadas e atendia estudantes de classe média. Não contava com laboratório, mas tinha biblioteca e coordenador pedagógico. Quatro discursos caracterizaram as representações dos estudantes: a) criacionista4, de maior adesão nas três 4 Criacionismo: doutrina segundo a qual as espécies são criadas por Deus. Os

séries; b) compatibilidade entre explicação científica e religiosa, que mostrou tendência de crescimento na segunda série; c) dúvida (menor adesão), expresso somente na primeira série, e d) evolucionista, expresso apenas na terceira. Foi possível associar a ampla adesão dos estudantes ao discurso criacionista ao projeto político pedagógico da escola que assumia princípios bíblicos como norteadores da educação. Concluímos que os limites de compreensão da teoria

da evolução entre os estudantes deviam-se especialmente à opção prioritária da escola pelo ensino do criacionismo. (VIEIRA; FALCÃO, 2012)

Analisamos as representações sociais da origem dos seres vivos, com destaque para o surgimento do homem e da mulher, de um grupo de estudantes do Ensino Médio de uma escola confessional católica que atendia jovens de classe média. O perfil religioso era basicamente de católicos. Influências religiosas foram identificadas na compreensão do grupo, especialmente a crença de que Deus criou o homem e a mulher. O contexto de ensino revelou sinais de deficiência (ausência de práticas científicas, aulas predominantemente expositivas) na abordagem do tema. Nesta pesquisa, foram investigadas, entre os estudantes, as fontes reconhecidas por eles para a aprendizagem dos temas tratados. As fontes mais citadas e exemplificadas foram as famílias e as

instituições religiosas. A escola, seus professores e suas atividades escolares foram pouco lembradas. (PORTO; FALCÃO, 2010)

Um estudo que realizamos sobre as representações do tema origem da vida entre estudantes de licenciatura em Ciências Biológicas de uma universidade federal no Rio de Janeiro permitiu identificar ancoragem religiosa e científica em suas visões. A análise mostrou deficiências nos conhecimentos científicos. Tais

deficiências revelaram-se associadas a dois fatores: a ausência de abordagem específica do tema no curso de graduação da universidade pesquisada e o conteúdo dos livros didáticos do Ensino Médio usados pelos investigados com erros ou imprecisões teóricas. (NICOLINI; FALCÃO; FARIA, 2010)

Em outra pesquisa, foram investigadas as visões da origem do universo e da vida de estudantes da 1ª e 3ª série do Ensino Médio de uma escola pública do Rio de Janeiro situada em contexto social precário, onde religiosos (maioria de evangélicos, mas incluía católicos) atuavam com intenso proselitismo. Os resultados mostraram não só a forte presença das explicações religiosas, como sua notável permanência ao longo do Ensino Médio. A análise da adesão dos estudantes aos preceitos religiosos colocou em foco as precárias criacionistas estritos se apoiam no Gêneses a fim de justificar a ideia de uma Criação ex nihilo. Entre os numerosos criacionistas atuais há os que compartilham a ideia do Desenho Inteligente e admitem que a evolução das espécies é um processo guiado por Deus. (GRIMOULT, 2012, p. 201)

condições socioeconômicas que condicionavam o ensino. Entretanto, foi possível identificar, nesse questionário, sinais de abertura dos estudantes para avançar na compreensão e na aceitação das explicações científicas. Se nas respostas às primeiras questões foram expressas explicações religiosas, nas últimas respostas, que buscavam as fontes de suas respostas, encontraram- se questionamentos àquelas primeiras. Alguns exemplos: um estudante escreveu “Quem tem cabeça no lugar vai saber separar religião de ciência”. Outro disse “A Biologia é um estudo necessário para sabermos da evolução humana”. E também outro: “A Biologia [...] explica algo tecnológico, é o estudo dos seres vivos”. E ainda “A minha religião é uma coisa, e as aulas de Biologia são outra”. Ao longo das respostas ao questionário, esses estudantes

desenvolveram reflexão própria e crítica sobre o tema. Provavelmente, o trabalho de responder ao questionário foi, para eles, uma nova experiência de aprendizagem, exercitaram o pensar reflexivo e escreveram seus consequentes questionamentos. (FALCÃO; SANTOS; RAGGIO, 2008)

Um segundo estudo foi feito, sete anos depois, nessa mesma escola, usando a abordagem da pesquisa-ação5 pela doutoranda (NUTES/UFRJ) Viviane Vieira, entre os anos 2014 e 2017. Resultados bastante diferentes foram encontrados. Ainda que tanto a escola quanto os estudantes tenham mantido as mesmas características, análises e intervenções foram realizadas pela pesquisa-ação com a participação do diretor e de professores de disciplinas afins. Houve a criação de um laboratório (de recursos limitados) e o oferecimento de aulas que estimulavam práticas da ciência como observar, registrar, discutir e concluir, além de visitas a espaços de ciência fora do colégio. Ao final da pesquisa-ação,

os jovens mostraram uma receptividade bem maior às explicações científicas para os fenômenos da origem e diversidade da vida, fato atestado por testes

regulares da disciplina e por suas representações sociais em relação a esses temas obtidas por questionários anônimos. Houve limites, mas a ancoragem científica de suas visões estabeleceu-se.

Em uma escola adventista, foram pesquisados estudantes do Ensino Médio em um módulo de ensino sobre a teoria da evolução, com destaque para o conceito ancestralidade comum. Este conceito é fundamental na teoria da evolução, e sua incompreensão tem sido fonte de conflitos para estudantes crentes em Deus. O módulo permitiu a imersão dos estudantes no contexto das atividades científicas. Foi iniciado com visita guiada, e de interação intensa com pesquisadores, ao Museu da Geodiversidade (UFRJ), ao Laboratório de 5 “A pesquisa-ação é um tipo de pesquisa social com base empírica que é realizada em estreita associação com uma ação ou com a resolução de um problema coletivo no qual os pesquisadores e os participantes representativos da situação ou do problema estão envolvidos de modo cooperativo ou participativo”. (THIOLLENT, 1996, p. 4)

Macrofósseis (CCMN/UFRJ) e ao Laboratório de Biologia Molecular CCS/ UFRJ (duração de sete horas ao longo de um dia). Os estudantes envolveram-se entusiasmados em todas as atividades, inclusive fotografando-se mutuamente em momento de exploração de fósseis e atividades nos laboratórios. Jogos didáticos e atividades em sala de aula com leituras, observações, questionamentos e exercícios de experimentação complementaram o módulo. Neste processo, as crenças religiosas foram muito pouco lembradas. A avaliação final mostrou compreensão correta de aspectos evolutivos e ancestralidade comum.

Concluiu-se que o ensinar ciência de forma não especulativa, e centrada em práticas de ciência tanto favorece a compreensão científica como não provoca crenças religiosas. (VIEIRA; SANTOS; FALCÃO, 2016)

Foi realizado o documentário Diversidade da Vida: o que pensam estudantes do

Ensino Médio (FALCÃO; VIANNA, 2016). O objetivo foi investigar, em nove

colégios, o que, ao final do Ensino Médio, ficou sobre explicações científicas para a diversidade da vida e das espécies. Em cada colégio, um grupo de cinco a seis estudantes aceitou, voluntariamente, o convite para conversar livremente sobre o tema. Uma única pergunta foi feita: “O que vocês pensam sobre a diversidade da vida, diversidade das espécies?” Nove colégios, incluindo a rede pública (dois estaduais e dois federais) e a privada (dois religiosos e três laicos) participaram. Naqueles colégios (religiosos ou não) onde os estudantes contavam com bons recursos (laboratório, biblioteca, atividades culturais e científicas, professores e coordenadores de presença regular), os jovens praticamente não mencionaram crenças religiosas. Nas poucas vezes em que o fizeram, foi em tom de crítica. Nos colégios onde aquelas condições não existiam regularmente, as crenças religiosas foram mais lembradas para explicações de fenômenos da vida.

No documento Embates em torno do Estado laico (páginas 170-174)