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SOMOS PRODUTOS DA SOCIEDADE EM QUE NASCEMOS E VIVEMOS

No documento Embates em torno do Estado laico (páginas 83-86)

O homem não nasce homem, ele torna-se, ou, no original, Homines non

nascuntur sed finguntur. É com esta frase que Erasmus de Rotterdam (1466-

1536), um dos mais brilhantes intelectuais do período Renascentista, inicia seu texto pedagógico De pueris, sobre a importância da educação infantil. Convencido de que tanto o corpo como o espírito são permeáveis às influências externas, da sociedade, Erasmus procura em todos os seus livros transmitir ensinamentos que orientem a melhoria do homem. Este sábio, pacifista militante que considerava o homem como um ser da cultura, teve várias de suas obras censuradas e foi atacado pelos reacionários clérigos da Inquisição espanhola.

Muitos séculos depois, um outro sábio, influenciado pelos ideais iluministas e pelo desejo de criar uma disciplina científica cujo objeto de estudo fosse a sociedade, retomou muitas das teses da pedagogia de Erasmus de Rotterdam. Emile Durkheim (1858-1917), ao se interrogar sobre a natureza dos laços sociais que fundamentam a sociedade, se deu conta da importância da transmissão dessas normas e práticas e, neste sentido, preocupou-se enormemente com a pedagogia e a educação. Republicano consequente, foi o grande suporte para a instauração de um sistema de educação pública universal que por muitos anos foi (e ainda continua sendo em menor medida) um elemento essencial na democratização da sociedade francesa, no respeito aos direitos de cidadania. A França é também um dos países que mais respeitam o princípio da laicidade e da completa separação entre Estado e Igrejas.

Para Durkheim, toda a sociedade fundamenta-se em uma moral comum, que é exterior ao indivíduo no sentido de que ela é anterior ao seu nascimento. A maior ou menor adesão comum a esta moral explicará o grau de integração (ou de desintegração) de cada sociedade. Em outras palavras, quando não mais respeitamos e acreditamos nas leis e nas imposições legais de nossa sociedade, o risco de ruptura da ordem social é iminente. A sociologia parte, assim, da evidência de que os seres humanos só sobrevivem em grupos, em sociedade. E que esta dependência do indivíduo à coletividade implica que nossa humanidade é sempre relacional, que vivemos e crescemos dentro de normas, regras e práticas que nos produzem como brasileiros, franceses ou alemães. Esta “produção” é um processo que se prolonga por toda a vida, do nascimento à morte, pois tanto o nascimento como a morte são concebidos e tratados com rituais, prognósticos e outras práticas simbólicas que variam no espaço e no tempo. Assim, voltamos à questão do “tornar-se” e, para respondê-la, temos também de ter uma perspectiva que não é apenas sociológica ou culturalista, mas que tenha como objeto o estudo da subjetividade. Porque podemos analisar detida e profundamente as instituições socializadoras por excelência, como a família, as igrejas e as escolas, mas o resultado dessa somatória de influências será sempre único, um ser humano dotado de subjetividade. O real é real porque síntese de múltiplas determinações.

Não é de se admirar, portanto, que a psicanálise, teoria da nossa constituição psíquica, tornou-se a grande interlocutora das ciências humanas e sociais. E o diálogo entre psicanálise, sociologia e política foi especialmente produtivo para a geração de intelectuais franceses dos anos 1960/70, que se tornaram conhecidos internacionalmente e cuja influência teórica ainda se faz presente, como Louis Althusser, Michel Foucault, Félix Guatari e Pierre Bourdieu, além de uma nova leva de mulheres intelectuais como Joyce McDougall e Luce Irigaray.

Do meu ponto de vista, a mais promissora das apropriações da psicanálise encontra- se no texto Idéologie et Appareils Idéologiques d’État, publicado originalmente em junho de 1970 na revista La Pensée n. 151 (ALTHUSSER, 1976). Profundo conhecedor da obra de Jacques Lacan, Louis Althusser incorporou a trilogia do Real, Simbólico e Imaginário (RSI), que só podem ser entendidos no conjunto de suas articulações (ROUDINESCO, 1998, p. 645). Muito simplificadamente, podemos dizer que o Real designa aquilo que não pode ser representado, colocado em palavras, ao passo que o Simbólico pode ser pensado como o social e o Imaginário como o ideológico. Em outras palavras, minha subjetividade tem uma dimensão que me supera, me ultrapassa, assim como minha subjetividade é continuamente (re)construída por minha existência social e pelas fabulações que faço sobre o mundo, sobre os outros e sobre mim mesma.

A tese de Althusser é a de que qualquer criança sabe que a continuidade de uma coisa requer sempre a reposição. No capitalismo, é fundamental que os meios de produzir (máquinas, equipamentos, insumos) e a força de trabalho sejam reproduzidos. Assim, o sistema precisa re-produzir novos trabalhadores, isso é, mão de obra despossuída dos meios e instrumentos de produção. A produção dessa mão de obra implica necessariamente em processos de sujeição ideológica, produzidos pela ação das instituições, organismos e aparelhos do Estado. Desta maneira, Althusser presta homenagem a Antonio Gramsci, o primeiro a intuir que o poder de Estado não se reduz ao aparelho repressivo, mas que é constituído de algumas instituições da sociedade civil, Igreja, Escola, sindicatos. Infelizmente, Gramsci não pôde aprofundar seu estudo sobre o tema, mas Althusser propõe dar continuidade à questão da adesão dos indivíduos por meio do convencimento ideológico, insistindo que nenhuma classe domina o poder de Estado sem exercer ao mesmo tempo sua hegemonia sobre e nos aparelhos ideológicos do Estado (ALTHUSSER, 1976, p. 86). Isso significa dizer que os aparelhos ideológicos não são somente o objetivo como também o lugar das lutas de classes. Pois é através dos aparelhos repressivos e dos ideológicos que uma classe (ou aliança de classes) mantém sua dominação. Trazendo esta premissa para os dias atuais, reconhecemos nas diferentes mídias, especialmente as que manipulam imagens, o poder de criar adesões ou repulsas; o poder de impor uma certa narrativa sobre os acontecimentos. Todos conhecemos os riscos envolvidos nas fake news e no mundo virtual. A importância de Althusser para a renovação do marxismo de sua época, ainda profundamente economicista, pode ser avaliada por sua compreensão da materialidade da ideologia nas práticas e nas instituições sociais. Para o autor, a ideologia constitui uma relação imaginária do sujeito com a sociedade (capitalista, de exploração, etc.) em que vive. Diz ele em sua Tese Primeira: “Na ideologia, o que está representado não é o sistema de relações reais que governa a existência dos indivíduos, mas a relação imaginária desses indivíduos com respeito às relações reais em que vivem” (ALTHUSSER, 1976, p. 86). A diferença reside, portanto, na dimensão de representação imaginária da ideologia. Com isso, Althusser nega a possibilidade de um mundo em que as relações sejam completamente transparentes e afirma mesmo que, como o inconsciente, a ideologia é eterna, no sentido onipresente, trans- histórico, e que a proximidade entre ideologia e inconsciente se justifica teoricamente pelo fato de que “a eternidade do inconsciente não deixa de ter relação com a eternidade da ideologia em geral” (ALTHUSSER, 1976, p. 87). Assim, por um lado, enquanto representação imaginária, as ideologias variam de conteúdo, mas, por outro, são universais e onipresentes em todas as sociedades humanas.

A segunda tese de Althusser afirma que “a ideologia tem uma existência material” e não pode ser reduzida a um conjunto de ideias falsas (ALTHUSSER, 1976, p. 87). É claro que tal materialidade não é da mesma natureza de um fuzil ou uma calçada, ironiza Althusser. A ideologia tem a materialidade das práticas cotidianas, seja o ato de assistir a uma missa, jogar uma partida num clube esportista, um dia de aula e assim por diante. Todos os nossos atos cotidianos – nossas práticas – inscrevem-se em aparelhos ideológicos. Os aparelhos ideológicos do Estado seriam a materialização das ideologias morais, religiosas, jurídicas e estéticas. Assim, o processo de reprodução das relações

sociais de produção é a reprodução do sujeitamento através dos aparelhos ideológicos e repressivos do Estado. Mais do que isso, o processo de submissão

à ideologia dominante constitui ao mesmo tempo o processo pelo qual o ser humano se socializa e se produz como sujeito (sujeitado).

Somos, portanto, produtos da sociedade, cujas normas e valores precedem o nosso nascimento e assim retornamos à nossa questão fundamental, formulada inicialmente por Erasmus de Rotterdam e, séculos depois, por Simone de Beauvoir: ninguém nasce homem (ou mulher); torna-se. E isso ocorre por meio da transmissão de saberes e práticas das diferentes instituições ou aparelhos, para usar a expressão de Gramsci e Althusser, especialmente o religioso.

AS RELIGIÕES UNIVERSAIS E A REPRESENTAÇÃO

No documento Embates em torno do Estado laico (páginas 83-86)