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A SAÚDE E SEUS OBJETOS DE TRABALHO NUMA PERSPECTIVA HISTÓRICA

No documento Embates em torno do Estado laico (páginas 103-106)

Uma das grandes preocupações da humanidade é a compreensão de seu ciclo de vida e as intermitências do adoecer e do que leva os indivíduos a deixarem de viver. Mais do que compreender apenas o processo, a humanidade sempre buscou estratégias para interferir no ciclo, em geral postergando ao máximo o seu desenlace. A compreensão do chamado processo saúde-enfermidade, ou seja, de como um indivíduo adoece variou ao longo dos séculos e dos saberes disponíveis na ocasião. Utilizaremos como base a análise clássica realizada por Ricardo Bruno Mendes Gonçalves (1979), que se utilizou do referencial marxiano para explicar o processo de trabalho em saúde como um fenômeno social. Como se sabe, Marx (1988) descreveu o processo de trabalho como a atividade do homem que transforma um objeto natural, com o uso de instrumentos (ou meios) e tendo a antevisão do produto final antes de se iniciar a atividade em si. Este produto atenderia a uma necessidade social. Para Gonçalves, o primeiro desafio para a compreensão do processo de trabalho em saúde está em identificar o objeto de trabalho da prática em saúde.

Gonçalves (1979) especulou que possivelmente o trabalho mais antigo relacionado ao que poderia ser identificado como uma necessidade de saúde seja aquele realizado pelo xamã, que podia ser chamado, de acordo com a cultura local, como pajé ou feiticeiro. O xamã, nas sociedades de então, era o indivíduo capaz de se relacionar com o universo como um todo, visível e invisível, e reconhecer as entidades que o compõem. A enfermidade, entendida à época como o mal, estava na interação entre uma dessas entidades e o indivíduo. O papel do xamã era, então, o de intervir ritualisticamente para afastar a entidade que estava provocando o mal, em benefício do indivíduo. Esta concepção de doença prevaleceu por longo período nas sociedades ocidentais, apresentando um breve intervalo de exceção na Grécia clássica. Naquele período Hipócrates propôs uma nova racionalidade para compreender o processo saúde-enfermidade que estava baseado na observação do doente. Não por acaso a Grécia buscava uma racionalidade diferente para lidar com a vida social como um todo, o pensamento filosófico que substituiria a razão mítica. Além disso, a intervenção curativa se baseava em fortalecer os fenômenos da natureza que eram percebidos como favorecendo ou prejudicando o bem- estar do indivíduo, em conformidade com o entendimento de então sobre as causas das enfermidades. Para o médico grego a ideia de prognóstico era importantíssima, pois determinava o sentido de sua ação.

O interregno grego na compreensão do fenômeno “adoecer” foi novamente substituído, como pode ser visto no Antigo Testamento, por uma compreensão

espiritual do fenômeno com uma diferença fundamental: de espírito do mal do xamanismo para o castigo divino. Ainda assim, o papel do ator social que executava a função equivalente à do médico era o de intermediar a relação do indivíduo doente com uma consciência cósmica que exerceria esse poder de castigar. A tradição judaico-cristã concebia o mal ou como possessão demoníaca, ou como castigo divino. O papel do sacerdote (ainda que exercendo a função de ‘médico’) era o de obter a salvação espiritual do enfermo, através de sua intermediação com o ser divino. Um exemplo pode ser visto no Levítico: “se não me escutardes e não puserdes em prática todos estes mandamentos, se desprezardes as minhas leis [...] porei sobre vós o terror, a tísica e a febre...” (Levítico, 26:16) –, embora assinale também que quando isso ocorre o castigo é bem visível, em geral atingindo a pele e implicando a segregação do pecador. O cristianismo, por sua vez, não somente manteve a concepção da enfermidade como punição aos pecadores como também incorporou a tradição da segregação dos leprosos e depois dos loucos (ambos identificados como impuros). Assim, até o final da Idade Média, era essa a ação fundamental dos médicos (sacerdotes em sua maioria).

A modernidade se inicia formalmente com a queda de Constantinopla e representa o início da mudança da forma como se vê e entende o universo, com pensadores como Nicolau Copérnico e sua teoria heliocêntrica, René Descartes, Galileu Galilei e Isaac Newton. As transformações irão progressivamente se estender ao campo da medicina, como veremos a seguir. O ensino de medicina na Universidade de Coimbra, até o final do século XV, era feito por apenas um lente, quando foi introduzida uma nova cadeira e o número de docentes passou a dois. A partir desse período, os alunos tinham a leitura das obras de Galeno pela manhã e as de Hipócrates à tarde. Saiba-se que os professores eram chamados então como lentes por se limitarem a ler as obras de referência para os alunos. Até o século XV, o ensino da medicina era atribuição dos religiosos e a eles destinado em sua maioria, mas, a partir de então, leigos (em especial os de origem judaica), passaram a ser a maioria. Apenas em 1540 foi introduzida a leitura de autores árabes (Avicena, Rhazes e Averróis – comentadores de Hipócrates e Galeno) na Universidade de Coimbra. (SANTOS FILHO, 1977).

O ensino médico em Portugal e na Espanha não foi modificado na mesma época que o do restante da Europa. No caso de Portugal, apenas com a Reforma empreendida pelo Marquês de Pombal foi possível que mudanças significativas ocorressem. Entre essas mudanças estão a demanda feita aos que desejavam frequentar o curso, que deveriam ter o conhecimento prévio do grego, da filosofia e de pelo menos uma língua estrangeira:

Cursaria, então, as matérias das faculdades de Filosofia e Matemática, matriculando- se, após os exames, no curso médico, composto de cinco cadeiras, uma em cada ano: matéria médica e farmácia, no primeiro; anatomia, prática das operações e arte obstétrica, no segundo; instituições (teoria médica) com a prática da medicina e da cirurgia no hospital, no terceiro; aforismos (de Hipócrates e Galeno), continuando com a prática no hospital, no quarto ano; prática da medicina e da cirurgia, novamente no hospital, no quinto e último ano, findo o qual submetia-se a exame perante todos os lentes, recebendo, se aprovado, o grau de ‘bacharel em Medicina e Cirurgia. (SANTOS FILHO, 1977, p. 291).

A Reforma Pombalina promoveu grandes mudanças no ensino em Portugal, incluindo o afastamento dos jesuítas dessas funções por representarem uma oposição à política de Estado que buscava favorecer a acumulação de capital público e privado. Não se deve entender, contudo, a reforma pombalina como anticlerical ou antirreligiosa. Tanto Portugal como Brasil tinham uma religião oficial. Embora os cursos não tivessem as mesmas características de antes da Reforma Pombalina e a assimilação das descobertas e invenções europeias não tivessem mais nenhum tipo de restrição – ao contrário, eram apreciadas – não se deve pensar que o ensino nas escolas do Estado, no Império, fosse secularizado. A religião católica era, pela Constituição, a religião oficial do Estado.

Por isso, os funcionários governamentais, entre eles os professores, tinham de prestar juramento de fé católica, podendo ser punidos por perjúrio; os estatutos das faculdades proibiam a professores e alunos ofensas à religião oficial; os doutorandos de medicina, particularmente, estavam proibidos de apresentar teses que contivessem princípios ofensivos à religião e à moral que ela legitimava; na base de todo esse aparato coercitivo, o código criminal proibia o ateísmo e a descrença na imortalidade da alma. (CUNHA, 1986, p. 86).

As mudanças ocorridas na compreensão do processo saúde-enfermidade foram significativas na modernidade, sendo especialmente importantes os avanços no conhecimento a partir do século XVIII. As bases da medicina deixam de ser erigidas sobre o princípio da autoridade religiosa sendo cada vez mais influenciada pelo crescente saber científico em geral. Um marco desse período foi a explicação dada por William Harvey, em 1628, para a circulação sanguínea. Foucault (1979) também chama a atenção para as transformações de como a sociedade lidava com enfermos no âmbito das cidades. Enquanto na Idade Média a resposta básica para lidar com o leproso era a exclusão da cidade através do banimento, no caso da peste negra no século XVIII a resposta foi bem diferente: o confinamento e o controle dos enfermos, não mais como uma ação purificadora, mas de controle, com o modelo da quarentena.

Tais transformações, como apontou Foucault (1979) ocorreram também na função dos hospitais. Até meados do século XIX o hospital era destinado apenas à segregação do enfermo que não possuía família e era para lá levado para morrer e ter ao menos sua alma salva. Os hospitais eram mantidos por instituições

dedicadas à caridade, e os médicos não eram frequentadores habituais desses espaços, nem mesmo no Brasil (REGO, 2008). Apenas a título de exemplo, veja-se o texto do então estatuto do Hospital dos Lázaros no Brasil:

para assistir os enfermos, teria ‘um médico para fazer duas visitas por semana e um cirurgião para assisti-los continuamente’ e ‘haverá um capelão que deve assistir dentro dele, para acudir mais prontamente com os socorros espirituais aos miseráveis enfermos, e nenhum destes será recolhido ao hospital, sem que primeiro, por informações do Rev. Capelão, conste haver se confessado’ (ARAÚJO, 1982, p. 168)

O fato é que no Ocidente o processo de medicalização do hospital só ocorreu plenamente em fins do século XIX, após a disciplinação primeiro do espaço hospitalar militar e depois estendida aos demais. Rosen (1979), entretanto, destacou que já no século XII, em Constantinopla, havia um hospital onde funções terapêuticas já eram valorizadas, daí a relevância de se destacar que essas observações são, em princípio, válidas para a sociedade ocidental.

Inúmeros outros marcos históricos poderiam ser apresentados para demonstrar o progressivo avanço do conhecimento científico sobre o processo de saúde- enfermidade, mas fugiria aos limites deste capítulo. Para nós aqui, o importante é demonstrarmos que a compreensão do adoecer e das ações necessárias para lidar com este adoecimento variaram amplamente.

Retomando o processo histórico aqui apresentado em linhas gerais, o corpo adoecido já foi visto como objeto de uma possessão por uma entidade, de um castigo enviado por um ente divino, de uma interação não compreendida com o ambiente, até o momento atual, em que reconhecemos desde agentes microbianos que contaminam um corpo, até o reflexo de ações nocivas de contaminantes ambientais, hábitos de vida e práticas de trabalho, além das determinações genéticas. Não mais se atribui a entes sobrenaturais o adoecer reconhecendo explicitamente as múltiplas causalidades do processo, envolvendo fatores biológicos, ambientais e sociais.

A PRÁTICA MÉDICA HOJE: ENTRE A MORAL

No documento Embates em torno do Estado laico (páginas 103-106)