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A interpretação de conceitos jurídicos supostamente neutros e a perspectiva religiosa

No documento Embates em torno do Estado laico (páginas 64-71)

Conforme mencionado anteriormente, para compreender o alcance da laicidade do Estado na Constituição de 1988 é preciso analisar as regras diretamente relacionadas a regular a interação entre Estado e religiões (como a liberdade religiosa, as imunidades tributárias, o ensino religioso e as vedações à adoção, ao embaraço, à subvenção de religião pelo Estado), mas também outras normas jurídicas que não se endereçam imediatamente a estas questões. Essas normas, que poderiam escapar às análises sobre laicidade – caso o foco exclusivo fossem as regras expressas da Constituição –, em razão de seu conteúdo supostamente neutro, guardam em sua origem, aplicação e interpretação profundas disputas entre as razões de Estado e as perspectivas religiosas.

A grande pergunta que organiza esse tópico é: a Constituição de 1988 permite que perspectivas religiosas influenciem ou definam o alcance de conceitos jurídicos?

O Supremo Tribunal Federal precisou enfrentar essa questão algumas vezes – e mais frequentemente nas últimas duas décadas – em casos relacionados aos conceitos de vida, família, identidade e ciência.

Porém, um caso pode ser visto como o abre-alas desse debate no Supremo: a ação que provocou o tribunal a responder qual o status jurídico da expressão “sob a proteção de Deus” prevista no Preâmbulo da Constituição de 1988 (BRASIL. STF, 2002). A ação questionava a necessidade de reprodução7, pelas 6 Está pendente de julgamento um recurso extraordinário com repercussão geral RE/ RG 611.874, que traz esse caso e cuja decisão, vinculante, poderá pôr fim ao debate.

7 Com a promulgação da Constituição de 1988, os estados federados tiverem o prazo de um ano para elaborar as respectivas Constituições estaduais, de acordo com o artigo 11 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT. Algumas normas da Constituição Federal, segundo interpretação do STF, seriam de reprodução obrigatória pelos Estados. É sobre este ponto que se debruça a ação: seria a expressão preambular “sob a proteção de Deus” de reprodução obrigatória pelas Constituições estaduais? Sobre normas de reprodução obrigatória

Constituições estaduais, de referida expressão. O tribunal considerou que o Preâmbulo da Constituição de 1988 não é norma jurídica e, portanto, não acarreta qualquer obrigação no âmbito jurídico:

Essa invocação [sob a proteção de Deus], todavia, posta no preâmbulo da Constituição Federal, reflete, simplesmente, um sentimento deísta e religioso, que não se encontra inscrito na Constituição, mesmo porque o Estado brasileiro é laico, consagrando a Constituição a liberdade de consciência e de crença (CF, art. 5º), certo que ninguém será privado de direitos por motivos de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política (CF, art. 5º, VIII). A Constituição é de todos, não distinguindo entre deístas, agnósticos ou ateístas. (BRASIL. STF, 2002, p. 227).

É destacável trecho de voto do ministro Sepúlveda Pertence quando, com certa ironia, afirma que não poderia nunca o preâmbulo ser considerado uma norma jurídica, já que os constituintes brasileiros não poderiam ter a pretensão de criar obrigações para a divindade:

Sr. Presidente, independentemente da douta análise que o eminente Ministro- Relator procedeu sobre a natureza do preâmbulo das constituições, tomado em seu conjunto, esta locução ‘sob a proteção de Deus’ não é uma norma jurídica, até porque não se teria a pretensão de criar obrigação para a divindade invocada. Ela é uma afirmação de fato – como afirmou Clemente Mariani, em 1946, na observação recordada pelo eminente Ministro Celso de Mello – jactanciosa e pretensiosa, talvez – de que a divindade estivesse preocupada com a Constituição do Brasil. De tal modo, não sendo norma jurídica, nem princípio constitucional, independentemente de onde esteja, não é ela de reprodução compulsória pelos Estados- membros. Julgo improcedente a ação” (BRASIL. STF, 2002, p. 229).

Essa decisão desmobiliza pretensões de uma parte considerável de setores religiosos que disputavam que a expressão “sob a proteção de Deus” deveria guiar a interpretação de toda a Constituição. Essa derrota imposta a esses setores acaba sendo corroborada em uma série de outras ações julgadas pelo Supremo Tribunal Federal.

Nas ações sobre a constitucionalidade de pesquisa com células-tronco embrionárias, de antecipação de parto de feto anencéfalo e descriminalização do aborto, o tribunal precisou responder qual a proteção jurídica que a Constituição confere à vida humana em diferentes estágios de seu desenvolvimento. Nessas ações, a perspectiva dos setores religiosos foi assumida oficialmente, através de participação formal no processo como amicus curiae8 (ALMEIDA, 2018) ou

em audiências públicas (GUIMARÃES, 2017), reivindicando a interpretação jurídica a partir da perspectiva religiosa.

(COUTO; ABSHER-BELLON, 2018).

8 Amicus curiae, do latim, amigo da corte, são pareceres, manifestações e posições apresentadas aos juízes para influenciar suas decisões

Não por outra razão o tribunal se dedicou, em cada um desses casos, a afastar a posição religiosa através da delimitação da laicidade na Constituição de 1988. Em três julgamentos envolvendo o debate sobre a proteção jurídica da vida e a extensão da autonomia da mulher, o tribunal constrói um percurso argumentativo9 no qual cada decisão contribui para conformar a laicidade constitucional.

No julgamento sobre a constitucionalidade de pesquisas com células-tronco embrionárias, o tribunal precisou responder se a legislação que previa a destruição de embriões excedentes dos processos de fertilização in vitro, congelados por tempo que os torna inviáveis, violava o direito à vida; uma disputa, portanto, sobre qual o momento em que se inicia a proteção jurídica da vida. Pela perspectiva religiosa em questão, expressa pelos amici curiae, a vida deveria ser protegida de forma absoluta desde a concepção. O tribunal, por sua vez, rechaçou essa posição10, construindo o argumento de que, se por um lado, a laicidade exige do Estado o respeito à liberdade religiosa, por outro impede que as suas decisões sejam confessionais ou orientadas por qualquer pré-compreensão religiosa ou de fé.

Nesse contexto, e considerado o delineamento constitucional da matéria em nosso sistema jurídico, impõe-se, como elemento viabilizador da liberdade religiosa, a separação institucional entre Estado e Igreja, a significar, portanto, que, no Estado laico, como o é o Estado brasileiro, haverá, sempre, uma clara e precisa demarcação de domínios próprios de atuação e de incidência do poder civil (ou secular) e do poder religioso (ou espiritual), de tal modo que a escolha, ou não, de uma fé religiosa revele-se questão de ordem estritamente privada, vedada, no ponto, qualquer interferência estatal, proibido, ainda, ao Estado, o exercício de sua atividade com apoio em princípios teológicos ou em razões de ordem confessional ou, ainda, em artigos de fé, sendo irrelevante - em face da exigência constitucional de laicidade do Estado - que se trate de dogmas consagrados por determinada religião considerada hegemônica no meio social, sob pena de concepções de certa denominação religiosa transformarem- se, inconstitucionalmente, em critério definidor das decisões estatais e da formulação e execução de políticas governamentais.

O fato irrecusável é que, nesta República laica, fundada em bases democráticas, o Direito não se submete à religião, e as autoridades incumbidas de aplicá-lo devem despojar-se de pré-compreensões em matéria confessional, em ordem a não fazer repercutir, sobre o processo de poder, quando no exercício de suas funções (qualquer que seja o domínio de sua incidência), as suas próprias convicções religiosas. [...]

9 Não se trata propriamente de precedente, enquanto dever de observância de decisões anteriores vinculantes no regime do Novo Código de Processo Civil, mas mais aproximada da noção de romance em cadeia, no qual o juiz considera as interpretações anteriores e constrói, a cada nova decisão, um novo capítulo sobre determinado tema (DWORKIN, 2007, p. 275-279). 10 A decisão, entretanto, não foi unânime. Alguns ministros se alinharam às reivindicações dos setores religiosos, citando vastamente teóricos teólogos para fundamentar seus votos.

O único critério a ser utilizado, portanto, na solução da controvérsia ora em exame é aquele que se fundamenta no texto da Constituição e das leis da República e que se revela informado por razões de ordem eminentemente social e de natureza pública, estimuladas pela necessidade de desenvolvimento das pesquisas científicas em nosso país, em ordem a viabilizar o domínio de técnicas que permitam o manejo e a utilização de terapias celulares, com células- tronco embrionárias, destinadas ao tratamento de doenças ou de alterações degenerativas. (BRASIL. STF, 2008a, p. 558).

A mesma lógica de afirmação da laicidade enquanto impeditivo ao acolhimento de perspectiva religiosa se fez constar na decisão que permitiu a antecipação de parto de feto anencéfalo. O “conteúdo de atos estatais” não pode ser influenciado pela perspectiva religiosa, ainda que se trate de uma determinada confissão majoritária ou até unânime.

Se, de um lado, a Constituição, ao consagrar a laicidade, impede que o Estado intervenha em assuntos religiosos, seja como árbitro, seja como censor, seja como defensor, de outro, a garantia do Estado laico obsta que dogmas da fé determinem o conteúdo de atos estatais. Vale dizer: concepções morais religiosas, quer unânimes, quer majoritárias, quer minoritárias, não podem guiar as decisões estatais, devendo ficar circunscritas à esfera privada. A crença religiosa e espiritual – ou a ausência dela, o ateísmo – serve precipuamente para ditar a conduta e a vida privada do indivíduo que a possui ou não a possui. Paixões religiosas de toda ordem hão de ser colocadas à parte na condução do Estado. Não podem a fé e as orientações morais dela decorrentes ser impostas a quem quer que seja e por quem quer que seja. Caso contrário, de uma democracia laica com liberdade religiosa não se tratará, ante a ausência de respeito àqueles que não professem o credo inspirador da decisão oficial ou àqueles que um dia desejem rever a posição até então assumida. (BRASIL. STF, 2012a, p. 42) A mais recente decisão que dá seguimento a este percurso argumentativo no qual se confrontam perspectivas religiosas e seculares sobre o direito à vida se deu em um caso concreto sobre a criminalização do aborto (BRASIL. STF, 2016b), tema que sintetiza a disputa de setores religiosos no (e pelo) Estado, não só no âmbito do Judiciário, mas também do Legislativo11.

11 No original: “Retracing the political process on abortion in Brazil, we showed that the movement and counter-movement dynamics between the executive and the legislative branches during two governments that progressively opened space to the pro-choice movement, FHC (1995–2002) and Lula’s first term (2003–2006), is key to understanding the backlash against the pro-choice agenda after 2006 [...]. Part of the pro-choice movement explored the Constitutional Court as an escape route to legislative disputes. Three positive decisions for the pro-choice movement (the biosafety law case in 2008, the anencephalic fetus case in 2012, and the concession in 2016 of a habeas corpus considering unconstitutional the pre-trial prison of two doctors accused of abortion) showed political opportunities for the pro-choice agenda in the court. Two cases are still pending there: the Zika infection case from 2016 (demanding authorization to proceed to abortion in case of microcephaly of the fetus) and the most recent one, filed in March 2017, finally addressing decriminalization until 12 weeks. After the political backlash, the Supreme Court appears to be the sole institutional arena still receptive to the pro- choice movement”.

Machado e Maciel (2017) analisam com precisão os movimentos pró-vida e pró-escolha na agenda legislativa e diante das recentes decisões do Supremo Tribunal Federal, as autoras explicam:

Revisando o processo político sobre o aborto no Brasil, mostramos o movimento e as dinâmicas entre o Poder Executivo e o Legislativo durante dois governos que abriram progressivamente espaço ao movimento pró-escolha, FHC (1995-2002) e o primeiro mandato de Lula (2003-2006), o que é fundamental para entender a reação contra a agenda pró-escolha após 2006 [...]. Parte do movimento pró- escolha explorou o Tribunal Constitucional como uma rota de fuga para disputas legislativas. Três decisões positivas para o movimento pró-escolha (o caso da lei de biossegurança em 2008, o caso de fetos anencéfalos em 2012 e a concessão em 2016 de um habeas corpus considerando inconstitucional a prisão preventiva de dois médicos acusados de aborto) revelaram oportunidades políticas – alianças para a agenda pró-escolha no tribunal. Dois casos ainda estão pendentes: o caso da infecção pelo Zika a partir de 2016 (exigindo autorização para proceder ao aborto em caso de microcefalia do feto) e o mais recente, protocolado em março de 2017, abordando finalmente a descriminalização até 12 semanas. Depois do retrocesso político, a Suprema Corte parece ser a única arena institucional ainda receptiva ao movimento pró-escolha”. (MACHADO; MACIEL, 2017, p. 129).

No caso sobre a criminalização do aborto, ficou mais explícita a relação entre a opção do Estado diante do dever de laicidade e de, portanto, observância de liberdade religiosa:

Deixe-se bem claro: a reprovação moral do aborto por grupos religiosos ou por quem quer que seja é perfeitamente legítima. Todos têm o direito de se expressar e de defender dogmas, valores e convicções. O que refoge à razão pública é a possibilidade de um dos lados, em um tema eticamente controvertido, criminalizar a posição do outro.

[...] Em temas moralmente divisivos, o papel adequado do Estado não é tomar partido e impor uma visão, mas permitir que as mulheres façam sua escolha de forma autônoma. O Estado precisa estar do lado de quem deseja ter o filho. O Estado precisa estar do lado de quem não deseja – geralmente porque não pode – ter o filho. Em suma: por ter o dever de estar dos dois lados, o Estado não pode escolher um. (BRASIL. STF, 2016b, p. 24).

Um dos ministros que votaram a favor da descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação nesse caso, Edson Fachin, citou o Papa em seu voto:

E concluo, embora seja apenas uma nota a latere, Senhor Presidente, para registrar que nesta semana, à página 44 da revista Carta Capital, há uma notícia da Carta Apostólica “Misericordia et Misera” do Papa Francisco, onde se acentuou a possibilidade de absolvição sinalizada pelo Pontífice jesuíta, que alcança mulheres e profissionais da saúde que porventura tenham alguma participação na interrupção de uma gravidez após a confissão. É apenas uma anotação obviamente a latere, mas, ainda que seja metajurídica e não integre a fundamentação do meu voto, vai ao encontro da dimensão que Vossa Excelência traz. (BRASIL. STF, 2016b, p. 30).

Mas não só no tema do direito à vida esse embate aconteceu de forma explícita no tribunal. Em ações envolvendo orientação sexual, novamente setores religiosos se organizaram e se manifestaram oficialmente no processo, buscando influenciar os juízes sobre uma correta, moral e única aceitável concepção de família e de relacionamento afetivo ou sexual: aquela entre homem e mulher. A Constituição de 1988 conferiu à família especial proteção do Estado (art. 226), dando efeitos civis aos casamentos religiosos (art. 226, §2º); determinou também que “para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento” (art. 226, §3º) e promoveu a igualdade de direitos e deveres de homens e mulheres em relação à sociedade conjugal (art. 226, §5º), além de prever a dissolução do casamento civil mediante divórcio (art. 226, §6º), nesse caso, retirando a restrição a um único divórcio inscrita na Lei de 1977. Essas expressões “homem e mulher” nos referidos artigos foram usadas, durante décadas, para negar a possibilidade de união estável ou casamento entre pessoas do mesmo sexo, ainda que o texto constitucional se referisse a formas de proteção à mulher, sem vedação expressa da união homossexual e com proibição a quaisquer formas de discriminação.

Nesse ponto, vale recuperar a pesquisa de Pinheiro (2008) sobre os debates religiosos na Assembleia Nacional Constituinte. Em trecho selecionado do deputado Salatiel Carvalho (PFL/PE), revela-se o esforço dos constituintes religiosos para excluir do texto constitucional a proibição por “orientação sexual”, empreitada em que foram bem-sucedidos:

A inclusão da expressão ‘Orientação Sexual’ na alínea ‘f’, inciso III, art. 12, passa a estabelecer a garantia constitucional aos portadores e praticantes de qualquer impulso, tendência ou inclinação sexual. Permitir que tal expressão seja mantida no texto do Projeto é, no mínimo, contribuir para uma Constituição contraditória, já que consideramos fundamental e básico a nova Carta Constitucional ser precisa e clara nos dispositivos que defenderão a moral, os bons costumes e a família. [...] É sabido que a inclusão do termo ‘Orientação Sexual’ atende à solicitação dos grupos homossexuais. Se o parágrafo pretende garantir constitucionalmente o homossexualismo, já é falho por garantir uma anomalia sexual, que, mesmo sendo uma realidade, não deve receber garantia constitucional explícita. (PINHEIRO, 2008, p. 92).

Mais explícito foi o deputado constituinte Eliel Rodrigues, do PMDB/PA: Não se trata, portanto, da necessidade de respeito a uma característica própria, adquirida ou normal, das pessoas, como o sexo, a cor, a posição social, a religião, etc., e, sim, de uma deformação, de ordem moral e espiritual, reprovável sob todos os pontos de vista genuinamente cristãos, constituindo-se num dos maiores veículos de disseminação do terrível mal da AIDS. (PINHEIRO, 2008, p. 92).

Esse propósito discriminatório da exclusão da proteção por “orientação sexual” na Constituinte, aliado ao texto “homem e mulher” na redação do art. 226 da Constituição deixaram, por décadas, os casais homossexuais à margem de qualquer proteção legal. Ao finalmente analisar o caso, em 2011, o tribunal afirmou, assim como havia feito no julgamento sobre pesquisa com células-tronco, que ao Estado, em razão do mandamento da laicidade, não seria permitido escolher uma única concepção de família fundada em uma determinada concepção religiosa:

“[...] é incorreta a prevalência, em todas as esferas, de razões morais ou religiosas. Especificamente quanto à religião, não podem a fé e as orientações morais dela decorrentes ser impostas a quem quer que seja e por quem quer que seja. As garantias de liberdade religiosa e do Estado laico impedem que concepções morais religiosas guiem o tratamento estatal dispensado a direitos fundamentais, tais como o direito à dignidade da pessoa humana, o direito à autodeterminação, o direito à privacidade e o direito à liberdade de orientação sexual. [...]

A proibição de instrumentalização do ser humano compõe o núcleo do princípio, como bem enfatizado pelo requerente. Ninguém pode ser funcionalizado, instrumentalizado, com o objetivo de viabilizar o projeto de sociedade alheio, ainda mais quando fundado em visão coletiva preconceituosa ou em leitura de textos religiosos”. (BRASIL. STF, 2011b, p. 205; BRASIL. STF, 2011a, p. 211). Mesmo com essa decisão, o tribunal precisou voltar a debater a questão da discriminação de casais homossexuais frente aos casais heterossexuais em relação ao regime jurídico de sucessão:

Não há razão para aplicar ao caso de uniões estáveis homoafetivas solução diversa da que apliquei em meu voto no RE 878.694. Como afirmei naquele julgamento, inexiste fundamento constitucional para estabelecer-se diferenciação entre os múltiplos modelos de família, que, embora não constituídos pelo casamento, sejam caracterizados pelo vínculo afetivo e pelo projeto de vida em comum, incluindo-se aí as uniões entre pessoas do mesmo sexo. [...] Ante o exposto, divirjo do voto do ministro relator, para dar provimento ao recurso, reconhecendo de forma incidental a inconstitucionalidade do art. 1.790 do CC/2002, por violar a igualdade entre as famílias, consagrada no art. 226 da CF/1988, bem como os princípios da dignidade da pessoa humana, da vedação ao retrocesso e da proteção deficiente. Como resultado, declaro o direito do recorrente de participar da herança de seu companheiro em conformidade com o regime jurídico estabelecido no art. 1.829 do CC/2002, que deve ser aplicado nos casos de uniões hétero e homoafetivas. Assento, para fins de repercussão geral, a seguinte tese: “É inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros prevista no art. 1.790 do CC/2002, devendo ser aplicado, tanto nas hipóteses de casamento quanto nas de união estável, o regime do art. 1.829 do CC/2002”. (BRASIL. STF, 2017e).

Ainda no âmbito da liberdade sexual e do seu enfrentamento, no campo jurídico, com acepções religiosas, o tribunal julgou inconstitucional as expressões “pederastia ou outro” e “homossexual ou não”, mencionada art.

235 do Código Penal Militar (BRASIL. STF, 2015). A ação apresenta a lei questionada em um “contexto internacional de leis antissodomia, cuja origem remonta ao período colonial, no qual predominava a visão religiosa de que a homossexualidade era condenável” e o tribunal acolhe esse argumento, na esteira de que a laicidade exige do Estado uma posição deferente à diferentes formas de vida dos indivíduos em seus assuntos privados: as liberdades de expressão, sexual e religiosa.

Em mais de uma ocasião, este Supremo Tribunal já garantiu exatamente que os tempos, graças a Deus, são de liberdades. E quanto mais amplas forem as liberdades em suas manifestações de pensamento, de vida, de escolha do modo de cada um viver, em todos os campos - profissional, sexual, religioso, de crença, de ideologia -, haverá de prevalecer o que é exatamente o contrário do que se

No documento Embates em torno do Estado laico (páginas 64-71)