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O ESTUDO DOS FENÔMENOS DA VIDA NO ENSINO MÉDIO

No documento Embates em torno do Estado laico (páginas 163-167)

Eliane Brígida Morais Falcão

INTRODUÇÃO

Conflitos entre ciência e religião são parte da história da humanidade. Desde a revolução científica do século XVII, a tarefa de descrever e teorizar o mundo natural pareceu rivalizar com ideias tradicionalmente propostas por religiões. O caso Galileu ilustra essa disputa (BROOKE, 1991; RUSSEL, 2002). No século XIX, em particular, houve o conflito entre novas descobertas em Geologia e Biologia (Darwin é um exemplo) e interpretações religiosas do mundo natural. A continuidade de crenças religiosas no mundo moderno é muito estudada, cercada de muito interesse e controvérsias na academia, mas não é objeto deste artigo. Nosso interesse é o ensino dos fenômenos evolutivos da vida no Ensino Médio. Pesquisas revelam que crenças religiosas influenciam a aprendizagem de muitos estudantes. No Brasil, os dados do IBGE não deixam dúvidas sobre a importância de crenças religiosas no repertório cultural do brasileiro, fato corroborado pela experiência dos professores em sala de aula. Trata-se, portanto, de dimensão cultural a ser cuidadosamente abordada nas pesquisas e nas ações docentes. E isto não tem faltado: a área acadêmica de ensino de ciências dispõe de variados e relevantes estudos sobre esse tema.

Neste artigo, a partir de um conjunto de resultados de pesquisas1 realizadas no Rio de Janeiro, entre 2006 e 2017, pretendemos trazer algumas reflexões sobre as condições de expressão das crenças religiosas que cercam os estudantes nas aulas de Ciências, em especial nas aulas de Biologia, nas quais a Teoria da Evolução é ensinada.

1 Projetos de Pesquisa apoiados pelo CNPq e desenvolvidos no Laboratório de Estudos de Ciência NUTES/UFRJ: 1- Ensino da Origem da Vida e Teoria Evolutiva: uma pesquisa para inovação em quatro colégios. 2- Origem da Vida e Evolução Biológica: controvérsias teóricas, diversidades culturais e repercussões no ensino e 3- A escola como cenário das relações entre ciência e religião.

O que nos motivou foram os resultados de uma pesquisa2 sobre a implementação da disciplina Ensino Religioso no Ensino Médio das escolas públicas. Se as crenças religiosas compõem o perfil dos estudantes de diferentes escolas e se tais crenças parecem importantes ao ponto de se confrontarem com as explicações científicas oferecidas na escola, que receptividade teria, entre os alunos, a disciplina Ensino Religioso? Como os alunos reagem ao ensino religioso? A receptividade ou o especial interesse por essa disciplina poderiam ampliar o conhecimento daquela dinâmica e fornecer úteis subsídios aos planos de aula. Entretanto, os resultados da mencionada pesquisa foram no sentido contrário à receptividade. Prevaleceu o desinteresse, conforme expresso pela maioria dos estudantes nos discursos que compõem sua representação social sobre a implantação do ensino religioso.

Segundo Moscovici, as representações sociais expressam a maneira específica de um grupo compreender e comunicar o que sabe. Para esse autor, as representações sociais relacionam-se com o meio, além de se apresentarem como um modo de interpretar e pensar a realidade na qual aquele grupo está imerso, tendo em vista que as pessoas e a coletividade têm ideias, opiniões e valores e, quando manifestam um pensamento sobre algo, elas estão usando um ou vários discursos sobre o tema. Ao formar a representação sobre um objeto, o sujeito, de certa forma, o constitui, o reconstrói em seu sistema cognitivo de modo a adequá-lo aos seus sistemas de valores, os quais, por sua vez, dependem da história e do contexto social e ideológico no qual está inserido este sujeito. (MOSCOVICI, 2003, p. 17)

Abaixo estão os discursos dos estudantes investigados:

1ª série

Escola A Escola B Escola C

Não acho necessário ter aulas de Ensino Religioso porque cada um tem a sua religião. Isso não serve para nada. É uma bobagem. Na escola devemos aprender outras coisas e não discutir religião. Escola é para outra coisa (...). (abrangência 55%)

É desnecessário (...) religião não é para se aprender na escola; não é matéria de escola até porque, religião e escola não se combina (...) Não tem nada a ver ensinar religião na escola (...). Ensino Religioso não serve para o futuro. (abrangência 62%)

Desnecessário aprender religião. O que isso vai ajudar na minha vida? É errado, pois não precisamos aprender qual religião seguir, pois o Brasil é um Estado laico. Não acho legal, porque vai tomar todo o tempo de outras disciplinas que a gente precisa mais, se eu quisesse aprender religião, iria para igreja. Já tem igrejas, templos e cursos sobre o assunto. (abrangência 69%) 2 Os dados apresentados relativos ao ensino religioso em três escolas, mencionadas nesse artigo, compõem a base de dados da pesquisa de Alessandra Guida dos Santos (doutoranda do Programa de Pós-Graduação Ensino de Ciências e Saúde (NUTES/UFRJ), orientanda de Eliane Brígida Falcão).

2ª série

Escola A Escola B Escola C

Desnecessário e inútil. O governo poderia fazer ofertas de coisas que nos acrescente mais no profissionalismo. (...) Quem quer aprender sobre religião vai à igreja; lê a bíblia. (...) Ensino religioso não tem que ser ensinado na escola. Escola não é lugar para se aprender religião. (abrangência 55%)

(...) Não sei para que ensinar religião em escola pública. (...) É uma perda de tempo, (...) Temos igrejas em todos os lugares para isso. (...) Cada aluno tem uma religião, então, cada um que procure em outro lugar sua religião. (...) Há matérias mais importantes como Matemática e Português (...). Também não deveria ter porque nosso país é laico e a gente tem a opinião que quiser sobre a religião. (...) Quem não tem religião tem que ser respeitado. (abrangência 59%)

Quem quiser ensino religioso vai para igreja ou para macumba. Acho que não tem necessidade de ter Ensino Religioso, não precisamos ter essa disciplina no Ensino Médio. Se o aluno é crente (...) ele vai procurar saber as coisas da religião dele na igreja. Eles tinham que investir mais em Português e Matemática. Na escola poderia ter algo melhor como música, teatro. Acho que vivemos num país laico, onde existem diversos tipos de religião. (abrangência 63%).

3ª série

Escola A Escola B Escola C

Acho que o ensino religioso deveria ser na igreja porque na escola existem muitos tipos de religião. A religião é uma escolha pessoal e já tenho uma igreja onde discuto sobre a minha própria religião; a igreja serve exatamente para isso (...) por favor, dê-me paciência, vivemos num Estado laico. (abrangência 73%)

Se eu quisesse saber sobre alguma religião procuraria a igreja. Não precisamos disso! (...) Precisamos de matérias que nos ajudem na vida, que comprove fatos e não somente histórias sem qualquer prova de sua ocorrência e cheias de ilusões. (abrangência 68%)

Esta matéria acaba tirando o lugar de uma matéria mais importante. A escola poderia investir em mais aulas de Português e Matemática. Os alunos pensam que já bastam as igrejas, não temos interesse em ter religião na escola. Se o país e o estado são laicos, não deveria ter aula da mesma. Se pudesse não assistir aula de Ensino Religioso, eu não iria assistir. (abrangência 78%)

Esse conjunto de discursos compõe a representação social de estudantes do Ensino Médio em relação à implementação do Ensino Religioso e expressa visões e valores em relação a esse ensino. Foi surpreendente a identificação desses discursos nas três séries pesquisadas em função da coerência e do entendimento demonstrados pelos jovens em relação ao tema e à sua abordagem. Os termos laico e laicidade, presentes nos discursos, surpreenderam. Não são expressões esperadas dentro do repertório de estudantes tão jovens.

Ideias, imagens e visões de laicidade podem ter crescido em divulgação e interesse entre diferentes grupos sociais. Assim, é possível que já tenham chegado aos jovens. Três outros discursos expressos nas três escolas complementaram a representação dos estudantes para a disciplina Ensino Religioso (ER). São três discursos, de pequena abrangência na maioria das escolas, cada um em

torno de três ideias centrais: 1- A disciplina ER é importante para aprender sobre religiões, melhorar o comportamento, esquecer problemas pessoais, unir os alunos. Esse discurso teve abrangência que variou entre 12% e 21% nas três séries das três escolas. 2- Não tenho interesse ou opinião sobre o tema. Esse discurso teve abrangência que variou entre 4% e 16% nas três séries das três escolas. 3- ER poderia servir para ampliar a cultura, conhecer novas religiões, diferentes etnias e costumes. Esse discurso teve abrangência que variou entre 2% e 24% nas três séries das três escolas.

No conjunto, os estudantes mostram interesse na ampliação da cultura histórica e na contribuição para o desenvolvimento do respeito à diversidade. De certo modo, esses são objetivos da História, da Sociologia, da Filosofia e da Antropologia.

As respostas dos estudantes foram escritas num contexto de demanda para que falassem, com suas próprias palavras, o que pensavam a respeito do tema. Ressaltamos que eles não tiveram nenhuma informação ou sugestão prévia acerca do tema questionado e que os discursos só contêm expressões e termos usados pelos próprios estudantes3. Ao expressarem suas respostas os jovens escreveram extensamente, se envolveram com o assunto e diversos aspectos da questão foram explorados espontaneamente. Os discursos estão editados, as expressões e termos usados foram muito semelhantes nas três séries investigadas.

O conjunto dos discursos sugere que esses jovens têm testemunhado a presença de várias religiões e se mostram sensibilizados com as possíveis discordâncias entre colegas de diferentes religiões nas aulas sobre o assunto. Além disso, de forma intuitiva, aproximam-se das implicações práticas da laicidade quando afirmam que locais apropriados para o estudo de religiões são os espaços de suas instituições religiosas (igrejas, templos, terreiros, por exemplo). Segundo suas próprias experiências de vida, os espaços religiosos disponíveis são suficientes para todos que se interessem pelos assuntos religiosos, conforme os argumentos da laicidade.

3 A identificação da representação social dos estudantes foi feita com o uso da técnica de análise do Discurso do Sujeito Coletivo (DSC). Consiste em organizar os relatos orais e escritos dos sujeitos da pesquisa no que Lefèvre e Lefèvre (2012) chamam de figuras metodológicas – ancoragem, ideia central, expressões-chave e discurso do sujeito coletivo. Para cada pergunta são identificadas as expressões-chave de todas as respostas. Cada conjunto de expressões-chave semelhantes é nomeado pela ideia central que traduz seu conteúdo básico. Cada conjunto homogêneo de expressões-chave irá formar um DSC. Em resumo, diante de cada ideia central e de suas respectivas expressões-chave, constrói-se, com a ajuda de conectivos, o discurso do sujeito coletivo (DSC). Uma representação social pode incluir mais de um discurso que podem se diferenciar por intensidade de adesão ou abrangência no âmbito do grupo investigado.

Esses resultados são provenientes de três escolas da Região Metropolitana III, que abrange um grande contingente de jovens de diferentes bairros da zona norte da cidade do Rio de Janeiro. Penha, Bonsucesso, Complexo da Maré, Complexo do Alemão e Méier são alguns desses bairros. Duas dessas escolas (A e B) possuem perfis semelhantes: foram construídas há menos de cinco anos, e suas instalações abrigam laboratórios de ciências e informática, auditório, sala multimídia, piscina e sala de artes. A Escola A atende, quase exclusivamente, estudantes de um complexo de favelas que possui cerca de trinta igrejas evangélicas em seu entorno, além de cinco católicas. A escola B, além de atender clientela semelhante à escola A, também recebe estudantes dos bairros vizinhos. Cerca de sete igrejas evangélicas e três católicas estão aí localizadas. A Escola C situa-se em um bairro próximo a uma favela, seus alunos são jovens de ambos os espaços. Ao seu redor, encontram-se cerca de doze igrejas evangélicas e duas católicas. Esta escola segue os padrões da maioria das unidades escolares estaduais da Secretaria de Estado de Educação, ou seja, não possui laboratórios ou espaços que possam ser utilizados para atividades práticas e diversificadas. Além disso, apresenta carência de professores em diversas disciplinas. Durante o período de pesquisa, a Escola A começava o processo de implementação do Ensino Religioso, ainda sem turma constituída. Nas Escolas B e C, já havia turmas dessa disciplina. O grupo investigado constituiu-se de 296 estudantes na escola A (1ª série – 87, 2ª série – 82, 3ª série – 127); 417 na escola B (1ª série – 133, 2ª série – 150, 3ª – série – 134) e 359 na escola C (1ª série – 115, 2ª série – 125, 3ª série – 119).

No documento Embates em torno do Estado laico (páginas 163-167)