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POR QUE A PENA DE MORTE?

No documento Embates em torno do Estado laico (páginas 32-35)

Como dito acima, a justiça ateniense da época facultava ao condenado um segundo discurso no qual propunha uma pena alternativa à proposta pelo acusador (no caso de Meleto, a pena capital), prosseguindo-se em seguida a uma segunda votação pelos mesmos juízes que decidiam qual das duas penalidades adotar. Na Apologia de Platão, Sócrates começa manifestando maior surpresa com o placar relativamente apertado da condenação do que com a mesma. Com efeito, uma característica marcante das duas Apologias é a total falta de pragmatismo de Sócrates. Ao invés de moldar o seu discurso 87 PLATÃO, Apologia, 33c. Sócrates afirma ainda, neste sentido, que “aquilo com que realmente me importava sumamente era não fazer nada injusto ou irreligioso” (Ibidem, 32d). Buscar persuadir os juízes a não o condenar por meios emotivos e não racionais seria contrariar a razão, a justiça e a piedade (Ibidem, 35c-d). Entendo como sinônimos para Sócrates irreligiosidade, injustiça e irracionalidade.

88 PLATÃO, Apologia, respectivamente, 30a e 31d.

89 PLATÃO, Apologia, 31d, 40a-b; Teêteto, 151a; Eutidemo, 272e; Fedro, 242b-c.

90 Esta interpretação racionalista é fundamentada na Apologia de Platão e não na de Xenofonte. Nesta, a comunicação do signo divino tem também a função positiva de determinar ações e conselhos específicos que, portanto, teriam justificativa sobrenatural e não exclusivamente racional. Ver XENOFONTE, Apologia, 12-13.

tendo em vista o fim de obter dos juízes sua absolvição, parece buscar o contrário. Não que em ambas não negue, como evidenciado acima, a validade das acusações91, elaborando argumentos neste sentido. Mas deliberadamente abre mão de recursos não racionais usualmente empregados por acusados ou seus advogados para sensibilizarem os juízes a votarem a seu favor, como apresentar mulher e filhos em lágrimas no tribunal92. Ao contrário, Sócrates

ataca os juízes, colocando-se, no relato de Xenofonte, acima dos mesmos pois,

como revelado pelo oráculo, é mais justo, mais livre e mais prudente do que eles e por isso mais próximo dos deuses93. Na Apologia de Platão, Sócrates indica os protestos furiosos de jurados quando afirma preferir morrer a deixar de fazer o que faz94, que defende mais eles do que a si próprio, pois eles é que sofrerão se o condenarem95, que face a este mesmo tribunal (bem entendido, não as mesmas pessoas mas a mesma instituição) outrora numa ocasião em que ele o presidia, resistiu a uma decisão ilegal, “embora os oradores estivessem prontos a afastar-me e prender-me, e embora vós — aos brados — os incitassem a fazer isso”96, enfim chega mesmo a dizer como os juízes devem julgar, a saber, “não distribuir favores ao seu bel prazer, mas julgar de acordo com as leis”97. Estimando-se “uma espécie de dádiva do deus à cidade”98, justamente por ser aquele que estimula o uso da razão entre os cidadãos, especialmente nos jovens, a pena alternativa que inicialmente propõe na Apologia de Platão é receber as refeições no pritaneu99, visto que sua dedicação pedagógica gratuita à cidade implicou a negligência dos próprios negócios e, consequentemente, a pobreza. Dado o caráter inusitado e claramente provocativo desta pena alternativa, afinal já havia sido considerado culpado, Sócrates considera outras alternativas. O encarceramento ser-lhe-ia inaceitável, pois significaria tornar-se “escravo da perpétua autoridade dos magistrados”100. O exílio seria incoerente, pois como não deixaria jamais de praticar filosofia, se era inoportuno para os atenienses, 91 Exceto a de introduzir novas divindades, pois não nega as comunicações que recebe do seu dáimon, embora negue que a admissão do seu signo contrarie as leis.

92 PLATÃO, Apologia, 34c-e. 93 XENOFONTE, Apologia, 14-18. 94 PLATÃO, Apologia, 30c. 95 PLATÃO, Apologia, 30c-d.

96 PLATÃO, Apologia, 32b-c. Trata-se do caso em que o tribunal queria punir coletivamente os generais atenienses que não resgataram os cidadãos mortos na batalha de Arginusa por causa de condições meteorológicas adversas. Sócrates queria que as responsabilidades individuais fossem apuradas (cf. Bini in Platão, Apologia, p. 154).

97 PLATÃO, Apologia, 35c. 98 PLATÃO, Apologia, 31a-b.

99 O pritaneu era um “edifício público em Atenas onde atuavam os magistrados. Era no pritaneu que se oferecia acolhida pública, particularmente aos que se sagravam vencedores nos Jogos Olímpicos” (cf. Bini in Platão, Apologia, p. 159n).

porque não o seria para os cidadãos do Estado onde se exilaria?101 Uma multa? Dada a sua pobreza, muito pouco poderia pagar, mas termina sendo esta a pena alternativa proposta, pois durante o seu discurso amigos ricos presentes, inclusive Platão, contribuem com um valor significativo.

No relato de Xenofonte102, Sócrates simplesmente se recusa a propor — nem permite que seus amigos proponham — qualquer pena alternativa pois, pela justiça, não merece nenhuma pena. Xenofonte e Platão no Críton relatam sua recusa de fuga da cadeia mediante o suborno do carcereiro, planejada por seus amigos ricos. No diálogo platônico, que dá detalhes do plano e da recusa de Sócrates, o argumento principal é o de que ele agiria contra as leis de Atenas, contra as quais jamais atentou. Deixando implícito que poderia ter obtido a pena alternativa do exílio (caso a tivesse proposto no tribunal), diz que poderia provavelmente “ter conseguido a permissão do Estado para o que te [Críton] propões a fazer agora sem sua permissão”103.

Sócrates foi tão pouco pragmático em sua defesa que Xenofonte concluiu que, já tendo ultrapassado os 70 anos, queria ser condenado à morte para evitar os males da velhice. Teria sido por esta razão, além é claro por considerar- se inocente, que no relato de Xenofonte Sócrates não propõe nem permite que seus amigos proponham nenhuma pena alternativa à de morte. A defesa claramente não visando uma eventual absolvição nem uma pena mais branda teria sido uma espécie de astúcia para Sócrates ser injustamente condenado (desta forma expondo a perversidade humana) e ao mesmo tempo evitar a velhice sem cometer suicídio, um ato que seria injusto, senão em relação aos homens, certamente em relação aos deuses. Esta interpretação é ausente do relato de Platão, embora nele seja dito algo que pode, dependendo do que se entende por “transtornos”, corroborar a interpretação de Xenofonte:

isso que aconteceu a mim não aconteceu por acaso; vejo com clareza que é melhor para mim morrer agora e livrar-me de transtornos. Eis a razão por que o sinal [divino que nos relatos platônicos atua sempre no sentido de impedir Sócrates de fazer algo de forma precipitada, como proposto acima] em momento algum interferiu em minha conduta.104

Os estoicos, filósofos de uma escola filosófica que floresceu durante os séculos III a.C. e I d.C., foram influenciados por Sócrates no que tange à filosofia moral. Sustentavam que o sábio deveria cometer suicídio quando o envelhecimento

101 PLATÃO, Apologia, 37c-d. 102 XENOFONTE, Apologia, 23.

103 PLATÃO, Apologia, 52c.; XENOFONTE, Apologia, 23. 104 PLATÃO, Apologia, 41d.

começasse a incapacitar suas faculdades cognitivas105. Apesar deste indício possivelmente favorável a Xenofonte na Apologia de Platão, a interpretação que podemos colher nesta última para a recusa das penalidades alternativas do exílio, do encarceramento ou de algum acordo pelo qual Sócrates se comprometeria a não mais praticar filosofia, é que “a vida sem esse exame [racional] não é digna de ser vivida”106. Os “transtornos” acima referidos seriam externos, causados por um ambiente social cerceador da prática filosófica, e não internos, isto é, relativos às faculdades intelectuais de Sócrates. Como dito, Sócrates representa em Platão a atitude racional humana. Cerceá-lo em sua atividade própria — a prática filosófica — significaria eliminá-lo. O que seria um Sócrates sem o exercício dos seus questionamentos em praça pública? Igualmente inconcebível seria uma eventual tutela conservadora do exame socrático, por exemplo proibindo-o de examinar determinados temas, notavelmente os que entravam em conflito com a religião tradicional. A intervenção de Ânito no julgamento, citada na terceira seção, deixa clara esta impossibilidade. Sócrates livre inevitavelmente continuaria sua prática filosófica que, segundo os acusadores, implica impiedade e corrupção da juventude.

Esta interpretação retirada da Apologia de Platão da razão da morte de Sócrates é extremamente relevante para os dias atuais. Nesta hipótese, o Sócrates de hoje no Brasil, a prevalecerem determinadas tendências religiosas conservadoras, não poderia investigar, pelo menos em instituições públicas, entre outras, questões de gênero, o uso medicinal da cannabis, a teoria da evolução e o golpe parlamentar-jurídico de 2016. Um pensamento científico-filosófico tutelado, impedido de abordar determinados temas, seria a negação deste pensamento. Ou o pensamento racional crítico se exerce em plena liberdade ou já não se trata de pensamento racional crítico.

No documento Embates em torno do Estado laico (páginas 32-35)