• Nenhum resultado encontrado

Início da vida humana

No documento Embates em torno do Estado laico (páginas 117-121)

Não é novidade que as religiões em geral procuram especialmente regular a vida sexual e reprodutiva das mulheres, como já mencionamos. O pequeno extrato de uma carta do Padre José de Anchieta, nos idos de 1560, exemplifica essa preocupação e esforço:

Entre estas casas acontece que se baptizam y mandam ao cielo algunos niños que nacem médio muertos y otros movidos lo qual acontece muchas vezes mas por la humana malicia que por desastre, porque estas mulheres brasiles muy facilmente muovem, o iradas contra sus maridos o, las que no los tienem, por miedo o por otra qualquer ocasion muy leviana, matam los hijos o beviendo para essa algumas brevages, o apretando la barriga o tomando carga grande y com otras muchas maneras que la crueldade inumana hace inventar. (ANCHIETA, 1560 apud CASTRO, 2015).

A moralização da prática abortiva não era apenas pelo pretendido atentado contra a vida do feto, mas também pela possibilidade de significar uma possível relação extraconjugal, que a Igreja Católica condenava igualmente, conforme pode ser visto na narrativa de Del Priore (2009).

A Igreja perseguia o aborto porque ele impedia o incremento de almas cristãs no céu, mas também porque era denotativo de ligações extraconjugais, enquanto a medicina passava a responsabilizar a mulher diretamente pelo aborto, e em última instância, pela existência de suas femininas “paixões”, o metabolismo venal e perigoso que as afastava da vida familiar. Apenas no casamento a mulher estaria a salvo de tantos preconceitos, fugindo às consequências do sistema binário católico- cristão, dentro do qual concepção e aborto se opunham. (DEL PRIORE, 2009). Nos dias atuais, pouca coisa mudou. A interrupção da gravidez é um problema atual, no entanto os aspectos éticos envolvidos nessa temática têm sido muito distintos. Enquanto no passado o único problema ético estava relacionado à concepção religiosa de que, a partir da concepção o embrião já deve ser considerado como pessoa de plenos direitos, nos dias atuais a questão ética se coloca como conflito de direitos, como conflito relacionado a qual vida deve ter maior valor, enfim, como veremos, o aborto está sob fogo cruzado há muito tempo.

Em primeiro lugar, é preciso que se tenha uma ideia da dimensão do problema, que não pode ser desconsiderado como um grave problema de saúde pública no Brasil. Em 2009 o Ministério da Saúde lançou um livreto apresentando uma revisão dos estudos realizados no Brasil sobre o aborto. As dificuldades de se pesquisar o tema, já que é uma atividade ilegal, estão bastante discutidas na

publicação. Por isso mesmo devemos estar muito atentos para as limitações dos estudos e considerar os dados como estimativas da magnitude do problema e suas consequências. A publicação recupera as pesquisas desenvolvidas na década de 90 do século passado que apontavam o aborto induzido como a terceira e quarta causa de mortalidade materna. “A estimativa oficial da razão de morte materna é de 76/100.000” (BRASIL, 2009). Os estudos realizados entre meados dos 90 e 2000 acusavam uma queda do número de mortes e a correlacionavam à introdução do misoprostol. Um dos estudos citados (BRASIL, 2009, p. 30) aponta para um aumento de 50% dos casos de complicações infecciosas, provocadas pelo método utilizado para interromper a gravidez, atendidas na rede de saúde com a proibição da comercialização do misoprostol nas farmácias.

A Organização Mundial da Saúde – OMS estima que 22 milhões de abortos inseguros sejam realizados no mundo e 47.000 mulheres morram por esse motivo (OMS, 2013). A esse respeito a Assembleia Mundial da Saúde em 2004, asseverou:

O abortamento inseguro, uma causa evitável de mortalidade e morbidade maternas, deve ser abordado como parte do Objetivo de Desenvolvimento do Milênio relativo à melhoria da saúde materna e de outros objetivos e metas internacionais de desenvolvimento. (OMS, 2013, p. 18).

Em termos de sequelas, a estimativa é de que cerca de “5 milhões de mulheres passam a sofrer de disfunções físicas e/ou mentais como resultado das complicações decorrentes de um abortamento inseguro”. Outro dado importante que a OMS divulga é que não importam o uso de contraceptivos e a redução de gravidezes indesejadas, a previsão é de “umas 33 milhões de usuárias de anticoncepcionais, isto é, usando métodos anticoncepcionais, fiquem anualmente grávidas acidentalmente”. Essas ou vão entrar nas estatísticas do aborto inseguro ou irão a termo com suas gravidezes indesejadas. Ambas as alternativas trazem graves prejuízos para as mulheres. Ainda mostra a OMS que “o abortamento ser ou não legal não produz nenhum efeito sobre a necessidade de praticá-lo, porém, afeta dramaticamente o acesso das mulheres a um abortamento em condições seguras”. (OMS, 2013, p. 17)

No Brasil, em 2005 um estudo estimou em 1.054.242 abortos induzidos. Esse dado foi produzido a partir de informações de internação na rede pública por complicações do aborto, considerando que 20% dos abortos induzidos cursariam com hospitalização. Observaram que a grande maioria dos casos foi no NE e SE, e estimaram uma taxa anual de aborto induzido de 2,07 por 100 mulheres entre 15 e 49 anos. (BRASIL, 2009)

A Pesquisa Nacional do Aborto, realizada em 2010, foi a que mais próximo chegou de uma medida de magnitude do problema. O inquérito foi levado a cabo nas capitais dos estados brasileiros e regiões metropolitanas, o Brasil urbano foi ouvido. Foram selecionadas 2002 mulheres entre 18 e 39 anos, uma por domicílio, de uma amostra aleatória de domicílios, o que configurou uma amostra representativa das mulheres urbanas do Brasil (DINIZ; MEDEIROS, 2010). Quinze por cento das mulheres entrevistadas informaram ter realizado pelo menos um aborto até o momento da entrevista. O dado de 22% das mulheres entre 35 e 39 anos é ainda mais significativo. De um lado temos uma estimativa para a população de mulheres de 15 a 39 anos de 15%, mas de outro lado temos uma expectativa de que 22% das mulheres ao chegarem aos 40 anos terão feito pelo menos um aborto. Ainda se acrescente as que não sobreviveram ao aborto e a soma de mulheres que passaram pela experiência será enorme. A pesquisa não se interessou por coletar informações sobre quantos abortos cada mulher realizou o que não permite inferir o número total praticado, mas sim o de mulheres que abortaram. Mulheres com escolaridade até a quarta série do Fundamental praticam mais aborto (23%) do que as que têm ensino médio e superior (12 e 14% respectivamente). A religião não é um fator que interfira na realização do aborto, não há variação entre os grupos religiosos e os sem religião (DINIZ; MEDEIROS, 2010).

Esses dados falam por si. A magnitude do problema do aborto inseguro mostra que é um problema de saúde pública. As mulheres morrem e/ou são internadas nos hospitais públicos para corrigir as falhas do processo e recuperar sua saúde. O aborto inseguro atinge mais as mulheres de baixa escolaridade, como a OMS observou na África, e Diniz e Medeiros no Brasil, no Nordeste. Mulheres ainda mais vulneráveis pela falta de acesso a serviços e bens.

E a pergunta que devemos nos fazer é: Como o Estado deixa sem proteção essa população? Para responder a essa pergunta vamos recorrer aos clássicos da controvérsia religiosa. Finnis é um filósofo que se destacou no debate contra o aborto nos EUA, como um ideólogo para os grupos pró-vida. Seus argumentos serão vistos a seguir.

Finnis baseia sua concepção na ideia de que desde a concepção, uma única célula, é já a pessoa humana.

Qualquer entidade que, permanecendo o mesmo indivíduo, se desenvolverá em uma instância paradigmática de um tipo substancial já é um exemplo desse tipo. O organismo humano de uma célula originando-se com a mudança substancial que ocorre após a penetração de um óvulo humano por um esperma humano tipicamente se desenvolve, como um e o mesmo indivíduo, em uma instância paradigmática da pessoa física racional, a pessoa humana, e em cada caso, portanto, já é um exemplo real da pessoa humana. (FINNIS, 2008, p. 19)

É digno de nota, que embora com uma roupagem “laica” o que o autor defende é que há uma “natureza humana” que está presente desde a concepção. Esse é um dogma relacionado à ideia de que a vida humana é criada por Deus, e essa substância divina está presente desde a concepção.

Em outro texto Finnis afirma:

Toda sociedade, liberal ou iliberal, assume uma posição pública sobre a questão de saber se o aborto é ou não uma forma de atividade criminosa. Se essa questão fosse deixada ao julgamento privado, as pessoas que o julgam homicídio teriam o direito de usar a força para impedir que seus concidadãos se envolvessem nisso (assim como têm o direito de usar a força para impedir o infanticídio ou relações sexuais entre adultos e crianças de oito anos de idade). (FINNIS, 1998, p. 361)

Esse trecho remete ao que Boaventura chama a atenção, ao jogo perigoso do fundamentalismo religioso. Tal postura deixa às claras a não aceitação de outra forma de ver o mundo além da que mostra as lentes da religião.

Sobre a clonagem por exemplo, Finnis (1998) defende que a manipulação genética para a clonagem de um ser humano é o mesmo que matar. “Como o feto tem o direito de não se tornar o objeto de tal intenção de matar, também tem o direito de não ter sido concebido, criado, como produto.” Aqui novamente a ideia de criação divina está presente. Como se a vida não fosse já muito manipulada pela medicina que a todo o momento interfere no “curso natural” de uma vida humana.

Sarmento discute do ponto de vista do Direito Constitucional a questão do aborto no Brasil. A legalização do aborto encontra viabilidade constitucional? Sarmento inicia sua argumentação apresentando o problema, conforme já apontávamos acima: o aborto inseguro ceifa milhares de vidas ano a ano. O autor parte da ideia de que a criminalização do aborto não impede as mulheres de praticá-lo, mas torna sua prática extremamente insegura, especialmente para as parcelas mais vulneráveis da população. Ao lado disso, pontua o jurista, estão as conquistas das mulheres a partir dos anos 60, que pouco a pouco vão derrubando uma a uma as barreiras erigidas contra sua emancipação. De sorte que “hoje, não há mais como pensar no tema da interrupção voluntária da gravidez sem levar na devida conta o direito à autonomia reprodutiva da mulher, questão completamente alheia às preocupações da sociedade machista e patriarcal do início da década de 40 do século passado”, década que produziu o código penal que tipifica como crime tal ato.

Chama a atenção o autor que muitos países já reviram seu ordenamento jurídico no que diz respeito à legalização do aborto, como parte do reconhecimento dos

direitos conquistados pelas mulheres. Seu entendimento acerca das decisões de tribunais constitucionais de todo o mundo é de que o nascituro tem, sim, uma vida que deve ser protegida, como um bem jurídico, mas não com a mesma intensidade daquela com que se protege a vida humana depois de nascida. Ademais, a intensidade de proteção deve variar na medida em que avança a gestação até que haja o nascimento com vida, quando terá plena proteção. Sarmento defende, então, a tese de que embora seja garantido o direito à proteção da vida do nascituro, essa proteção é menos intensa que o direito da mulher “ao respeito da integridade física, psíquica e moral (Art. 5º, I), do direito à liberdade e segurança pessoais (Art. 7º, I), do direito de proteção à vida privada (Art.11, 2), entre outros” (SARMENTO, 2005, p. 70).

O autor lembra, ainda, que há garantia de direito fundamental à liberdade religiosa (Art. 5º, inciso VI) e um princípio apresentado no Art. 19, inciso I, da laicidade do Estado “que impõe aos poderes públicos uma posição de absoluta neutralidade em relação às diversas concepções religiosas” (SARMENTO, 2005, p. 61). A laicidade do Estado é trazida para afirmar que não importa que uma religião ou um conjunto de religiões seja hegemônico, a sociedade é pluralista e esta característica é reconhecida pela Constituição Federal (CF) como um dos fundamentos da República (Art. 1º, inciso IV, CF). Quando se ignorar a pluralidade moral, ideológica, religiosa ou de concepção de vida boa e feliz, lembra Sarmento “haverá tirania – eventualmente tirania da maioria sobre a minoria – mas jamais autêntica democracia”. Assim, fica claro que o argumento religioso de que a alma está presente desde a concepção e por isso o aborto deve ser considerado tão criminoso quanto tirar a vida de qualquer pessoa inocente, não pode ser razão para o Estado considerar crime. Se assim é, há a imposição de uma determinada crença religiosa sobre o conjunto da população em franca colisão com os princípios constitucionais da laicidade e da pluralidade.

No documento Embates em torno do Estado laico (páginas 117-121)