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Negociação do voto religioso

No documento Embates em torno do Estado laico (páginas 188-190)

Apoios políticos são negociados com dirigentes de instituições religiosas, como fizeram os candidatos José Serra à Assembleia de Deus e Dilma Rousseff à Igreja Universal do Reino de Deus, na eleição presidencial de 2010. Em reação às denúncias da campanha de seu adversário de que seria abortista, Dilma divulgou, logo antes do segundo turno, a Carta Aberta ao Povo de Deus, na qual se declarou pessoalmente contra o aborto e se comprometeu a não tomar iniciativas que alterassem a legislação em vigor. Acrescentou que, se eleita, não tomaria medidas que alterassem a livre expressão de qualquer religião. Mais do que isso, prometeu um governo que tivesse a família como foco principal. Pelo que se viu em seguida, o apoio evangélico, penosamente negociado, não foi capitalizado por Dilma. Reeleita por pequena margem de votos nas eleições de 2014, ela foi objeto de impeachment negociado justamente por Eduardo Cunha, presidente da Câmara e líder evangélico que participara da busca de apoio de seus confrades. Quando o impedimento foi votado no Congresso, ela nem mesmo teve o apoio do bispo Marcelo Crivella, membro de seu ministério. Ele é um interessante personagem a acompanhar para se entender como o 3 O texto integral do manifesto pode ser acessado em AZEVEDO, F. et al. Manifesto

dos pioneiros da Educação Nova (1932) e dos educadores (1959). Recife: Fundação Joaquim

Nabuco, Editora Massangana, 2010. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/ download/texto/me4707.pdf>. Acesso em: 25 jan. 2018.

aparelhamento religioso da administração pública ocorre em nosso país. Não é um caso excepcional, mas certamente o de maior visibilidade nos últimos anos. Filiado ao Partido Republicano Brasileiro, hegemonizado pela Igreja Universal do Reino de Deus – IURD, na qual é bispo, Marcelo Crivella foi eleito senador pelo Rio de Janeiro em 2002 e reeleito em 2008, em pleitos nos quais o voto religioso desempenhou papel relevante. Em 2012, ele foi nomeado por Dilma ministro da Pesca e da Aquicultura. O “aparelhamento” do ministério revelou- se na nomeação de correligionários partidários e religiosos para as delegacias estaduais, onde os cargos foram usados para reproduzir e ampliar a base eleitoral do seu partido. O caso objeto de denúncias recorrentes foi a distribuição de carteiras de pescador a eleitores potenciais. Tais documentos, que antes eram preenchidos em formulários impressos pela Casa da Moeda, passaram a ser emitidos em papel timbrado comum, facilitando sua multiplicação. Como o documento atestando que seu possuidor era pescador garantia o recebimento de um salário mínimo nos meses em que a pesca de certas espécies é proibida (seguro defeso), o documento era cobiçada moeda de troca na política eleitoral. Em 2014, Crivella deixou o ministério para se candidatar a governador do Estado do Rio de Janeiro. Sua candidatura foi cassada pelo Tribunal Regional Eleitoral, com base em denúncia de que ela teria se beneficiado de cultos evangélicos, bem como a “imposição de mãos” de líderes religiosos durante a transmissão de programas de TV. No entanto, o Tribunal Superior Eleitoral entendeu que o número de cultos e de programas não era suficiente para configurar abuso do poder econômico, além do que não era possível calcular quantas pessoas teriam sido atingidas pelo culto e pelas transmissões televisivas. O processo foi arquivado e o bispo readquiriu plenos direitos políticos.

Eleito prefeito do Rio de Janeiro em 2016, num pleito em que não faltaram denúncias de uso de templos religiosos evangélicos para propaganda eleitoral, desta vez não só da IURD, Crivella prometeu governar para todos, não apenas para seus confrades. Com efeito, sua base de apoio foi ampla, sem o que não venceria o segundo turno. Além disso, a coligação vencedora na eleição do prefeito elegeu uma bancada diminuta, de modo que ele foi obrigado a reduzir suas pretensões.

No âmbito da competência direta do prefeito, a prática mostrou-se diferente do pluralismo prometido na campanha. Para começar, cortou pela metade a verba destinada às escolas de samba para o desfile do carnaval de 2018, mas declarou que isso não se deveu a motivação religiosa. A percepção popular não aceitou a desculpa, a ponto de o samba-enredo da Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira incluir o refrão: “Eu sou Mangueira meu senhor, não me

leve a mal/ Pecado é não brincar o Carnaval!/ Eu sou Mangueira meu senhor, sou Universal/ Pecado é não brincar o Carnaval!” As expressões “pecado” e “Universal” (esta inserida no lugar de “não me leve a mal”) não deixam dúvidas quanto ao endereço crítico do enredo.

Em outubro de 2017, Crivella mandou mudar os nomes das ruas da grande favela Vila do João, sem consultar os moradores. Os nomes passaram a ser Gratidão, Cordialidade, Adoração e Perfeição, Éden, Perdão, etc., mas a prefeitura negou existir motivação religiosa.

O bispo-prefeito nomeou numerosos confrades para postos da prefeitura, os quais foram empregados no seu mister religioso, direta ou indiretamente, como nas perguntas sobre a religião de funcionários ou beneficiários de serviços públicos. Para definir um projeto de capelania, a direção da Guarda Municipal enviou aos seus funcionários questionário identificado, perguntando a cada um se tinha religião (opções católico, evangélico, espírita e outra), e se era praticante. A Secretaria de Assistência Social adotou semelhante registro com os candidatos à “Academia Carioca” (esportes e ginástica): cada um deveria registrar se tinha religião e qual era ela. Diante do mal-estar provocado pelos dois órgãos da administração pública municipal, o deputado estadual Átila Nunes, ligado aos cultos afro-brasileiros, declarou existir um verdadeiro “aparelhamento religioso” da prefeitura, e decidiu acionar o Ministério Público – MP, o que levou as duas instituições a reverem suas iniciativas. Aliás, ambas eram inconstitucionais, porque a Carta do Rio de Janeiro determina que “Não poderão ser objeto de registro os dados referentes a convicções filosófica, política e religiosa, a filiação partidária e sindical, nem os que digam respeito à vida privada e à intimidade pessoal, salvo quando se tratar de processamento estatístico, não individualizado.” (art. 21)

A presença da religião na política ficou patente no processo de destituição de Dilma Rousseff, quando muitos parlamentares emitiram seus votos com evocações religiosas. Para justificarem seus votos em prol do relatório favorável ao impeachment, 59 deputados pronunciaram a palavra Deus, apesar de nenhuma questão religiosa constar da pauta da sessão da Câmara em 17 de abril de 2016. E não foi essa a única evocação religiosa naquela tumultuada sessão.

No documento Embates em torno do Estado laico (páginas 188-190)