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LAICIDADE E SECULARIZAÇÃO

No documento Embates em torno do Estado laico (páginas 49-53)

Um tanto diferente da laicidade, campo próprio do Estado, a secularização, é inerente à sociedade civil. Embora não idênticas, laicidade e secularização podem convergir entre si.

O termo secularização vem de século que, por sua vez, tem sua etimologia no latim de saeculus, saeculi cujo significado refere-se a um período de cem anos. Entrementes, por se referir à categoria tempo, este termo ganhou uma conotação própria no latim eclesiástico: o tempo secular distingue-se do tempo próprio da eternidade que tem, como uma de suas expressões, a vida religiosa. Desse modo, século significa o mundo, o mundo terreno onde se vive a passagem provisória deste tempo mundano, na expectativa do tempo da eternidade após a morte. Desse modo, o século é este tempo em que se vive o cotidiano com todas as suas características. Em contraste com a vida secular, a vida religiosa mostra-se, por vezes, apartada do mundo terreno, ocupando espaços próprios.

Se a laicidade se refere ao contexto político, a secularização é um processo social pelo qual pessoas, costumes e instituições que estavam sob o domínio do religioso passam para o domínio da terrenalidade privilegiando a vontade humana em achar soluções terrenas para os problemas terrenos. Nela, os indivíduos ou grupos sociais se distanciam da definição dos valores e das normas religiosas quanto ao ciclo do tempo e quanto a regras e costumes. Secularização é a presença do racional, do utilitário e da terrenalidade no campo da economia, da política e dos costumes. Um exemplo interessante é o calendário. Este registro do tempo, antes religioso, calcado nas datas das festas litúrgicas e comemorações religiosas, agora é um registro oficial civil, dividido em dias, meses e anos.

A secularização é, pois, um processo que se distancia, na vida social, do sagrado, do transcendente ou mesmo de um imanente considerado como inviolável ou absoluto. Nesse sentido, ela revela a perda de hegemonia ou da influência das instituições religiosas sobre o cotidiano das pessoas, seus hábitos, costumes, opções e sobre as próprias instituições.

Os indivíduos, em posse de sua liberdade de consciência, podem se professar crentes, agnósticos, ateus ou mesmo ignorantes com relação ao sentido das festas e de símbolos e rituais religiosos. Hoje, essa dimensão é, por exemplo, bastante visível nos costumes que traduzem processos muito claros de secularização nos ethos comportamentais das pessoas. Formas não religiosas de comemoração do Natal, da Páscoa e de outras manifestações do calendário litúrgico podem ser aduzidas como exemplos de secularização do religioso por meio de símbolos e rituais muito mais próximos do mercado e do lazer do que de celebrações religiosas.

Um Estado pode ser laico e presidir a uma sociedade mais ou menos religiosa, como é o caso da França ou do México, ou mais ou menos secular, como a dos países nórdicos, em que os indivíduos seguem as opções de consciência que lhes convêm como seres religiosos, agnósticos ou ateus. E pode haver o caso de um Estado ser, oficialmente, identificado com uma religião e, garantida a liberdade de culto, ter, ao mesmo tempo, uma sociedade tendencialmente secular, como no caso da Inglaterra ou da Dinamarca.

A laicidade, então, garante tanto espaços da secularização quanto a expressão da liberdade de culto. Decorre disto que a laicidade reconhece e garante a mais ampla liberdade de expressão religiosa, não discrimina os cidadãos por razão de suas crenças ou não crenças, seja por meio de privilégios, seja mediante vantagens quaisquer. Tal modo de ser converge para uma postura de neutralidade e de igual distanciamento do Estado ante os cultos e as manifestações de expressão religiosa e de garantia de liberdade dos cidadãos nesse assunto.

Como nos afiança Zanone (1986, p. 670):

A relação entre temporal e espiritual, entre norma e fé, não é relação de contraposição e sim de autonomia recíproca entre dois momentos distintos do pensamento e da atividade humana. Igualmente a separação entre Estado e Igreja não implica, necessariamente, um confronto entre os dois poderes.

Uma sociedade secularizada, em princípio, valorizadora de um mundo desencantado com relação à religião, relega os dogmas e as verdades reveladas como os das religiões monoteístas nos limites dos espaços privados dos

indivíduos e da sociedade civil, embora respeitando-os. De todo o modo, a religião também ganha espaços próprios de liberdade inclusive para o recrutamento de fiéis no âmbito da sociedade.

FINALIZANDO

A laicidade está na agenda atual de nossas sociedades, mais ou menos secularizadas, porque convivemos com uma multiplicidade de culturas, de modos de vida e, ao mesmo tempo, nos deparamos com um surto de fundamentalismos de toda ordem, inclusive religiosos.

A laicidade, tal como aqui definida, por ser a expressão neutra do Estado perante estes modos de ser, de crer e não crer, ressalvados os princípios da ordem jurídica, permite a coexistência e a convivência pacíficas entre as várias manifestações desta pluralidade, não se identifica com nenhuma delas e as respeita como campos próprios da sociedade civil.

A laicidade é um antídoto à fragmentação da sociedade, possibilita o compartilhamento do espaço público como espaço comum a todos, respeita as particularidades nos espaços privados e da sociedade civil, pelo que se torna respeitosa das opções religiosas e não religiosas dos cidadãos.

Desse modo, a laicidade é uma garantia do pluralismo, próprio da democracia, e do respeito às formas culturais e religiosas, próprio da liberdade, da igualdade e da paz. E para que tais valores possam vicejar, a laicidade é também combatente das causas que conduzem à desigualdade e à discriminação.

REFERÊNCIAS

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992.

BOBBIO, Norberto, VIROLI, Maurizio. Diálogo em torno da República: os grandes temas da política e da cidadania. Rio de Janeiro: Campus, 2002. DÍAZ-SALAZAR, Rafael. Democracia laica y religión pública. Madrid: Santillana, 2007.

Facultad de Derecho de México, Ciudad de México, vol. 57, n. 248, p. 267-

277, 2007.

GAUCHET, Marcel. La religion dans la démocratie. Paris: Folioessais, 1998. ROMANO, Roberto. Ensino laico ou religioso? In: CUNHA, Luiz A. (Org.).

Escola pública, escola particular e a democratização do ensino. São Paulo:

Cortez, 1985. p. 13-30.

SANCHÍS, Luís Prieto. El constitucionalismo de los derechos: ensayos de filosofía jurídica. Madrid: Editorial Trotta, 2013.

SCHNAPPER, Dominique. Qu’est-ce que la citoyenneté? Paris: Gallimard, 2000.

ZANONE, Valerio. Laicismo. In: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. Brasília: UNB, 1986. p. 670-674.

SOBRE O AUTOR

Carlos Roberto Jamil Cury

Doutor em Educação. Professor Titular (aposentado) da UFMG e dela Professor Emérito. Atual Professor Adjunto IV da PUC Minas. Foi membro do Conselho Nacional de Educação e presidente da CAPES. Foi membro da Comissão de Educação da SBPC da qual, atualmente, é seu vice-presidente. É pesquisador 1A do CNPq e professor há 53 anos. Tem escritos em livros, capítulos de livros e artigos em periódicos sobre o direito à educação e legislação educacional.

CONSTITUIÇÃO E

No documento Embates em torno do Estado laico (páginas 49-53)