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INTRODUÇÃO: A CONSTITUIÇÃO COMO PACTO ASSIMÉTRICO

No documento Embates em torno do Estado laico (páginas 53-58)

Não é fácil a tarefa de estabelecer uma teoria constitucional sobre a laicidade. Os métodos tradicionais de interpretação constitucional compartilham a premissa de que o texto da Constituição perfaz um todo coerente, sendo impossível cogitar-se de incongruência entre as suas normas.

Ainda que essa perspectiva continue sendo relevante para a resolução de conflitos e informe, portanto, órgãos de interpretação constitucional, ela não se mostra útil para entender a configuração constitucional da laicidade.

Isto porque a Constituição de 1988 (CF88) não pode ser entendida como um documento que representa a síntese de um processo; tanto o contrário, a Constituição deve ser interpretada como a composição dos interesses de diferentes atores que, minimamente organizados, conseguiram influir no processo constituinte. Essa seria, para Vieira, a principal característica da Constituição brasileira: o seu “compromisso maximizador”. (VIEIRA, 2013, p.18). Como explica o autor, nenhum grupo, no período de transição democrática, tinha condições de impor um determinado projeto hegemônico. Essa seria uma das razões explicativas para que interesses tão diversos e muitas vezes contraditórios tenham sido, ao final, incorporados no texto constitucional. Evidentemente, tais interesses não foram igualitariamente considerados; a Constituição representa um pacto assimétrico, a conciliação possível “entre as forças políticas que moldaram a transição brasileira” (VIEIRA, 2013, p.18). Se considerarmos os debates na Assembleia Nacional Constituinte sobre as regras expressas sobre laicidade e de mediação do Estado com as religiões ou

liberdade religiosa, essa percepção de que distintos grupos de interesse atuaram de forma nem sempre coordenada para influenciar o texto constitucional parece bem acertada.

Pesquisa de Pinheiro (2008) recupera as discussões, pronunciamentos e votos da Assembleia Nacional Constituinte de grupos que, à época, autodenominavam- se religiosos, mostrando considerável cisão entre os constituintes evangélicos e católicos, esses últimos tidos como privilegiados no acesso a outros constituintes. A regra constitucional básica sobre a configuração laica do Estado, a separação entre este e as igrejas e cultos, está assim expressa:

Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público; [...] III - criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si.

Esse dispositivo estabelece um regime de vedações à atuação do Estado em matéria de religião, sendo aplicável igualmente a todas as esferas federativas e aos três poderes da República (Executivo, Legislativo e Judiciário). Em suma, estabelece o dever de abstenção nesse campo, proibindo o Estado de subvencionar ou estabelecer dependência ou aliança com igrejas e cultos, abstendo-se também de qualquer ação que venha a embaraçar o seu funcionamento. Há uma ressalva, que é a autorização genérica para a colaboração de interesse público.

Esse regime de separação é, em grande medida, reprodução do arranjo presente na Constituição de 19341, produzida no contexto de “retrocesso na laicidade republicana” que marcou a Era de Vargas (CUNHA, 2016). Assim como em 1934, a Constituição de 1988 adota uma “separação com colaboração”, no que diferem da Constituição republicana de 18912 e sua “separação sem colaboração” (ZYLBERSZTAJN, 2012).

1 Constituição de 1934: “Art. 17 - É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I - criar distinções entre brasileiros natos ou preferências em favor de uns contra outros Estados; II - estabelecer, subvencionar ou embaraçar o exercício de cultos religiosos; III - ter relação de aliança ou dependência com qualquer culto, ou igreja sem prejuízo da colaboração recíproca em prol do interesse coletivo”.

2 Constituição de 1891: “Art. 11 - É vedado aos Estados, como à União: [...] 2º) estabelecer, subvencionar ou embaraçar o exercício de cultos religiosos; Art. 72 - A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: [...] § 7º - Nenhum culto ou igreja gozará de subvenção oficial, nem terá relações de dependência ou aliança com o Governo da União ou dos Estados.”

O reconhecimento civil do casamento religioso (CF88, art. 226, §2º) e, principalmente, a previsão de ensino religioso nas escolas públicas (CF88, art. 210, §1º), são marcas da Constituição de 1934, reescritas no texto atual. Apesar da estabilidade quanto à laicidade do Estado brasileiro na Constituição, os avanços no campo da secularização da cultura são visíveis, com reflexos na interpretação constitucional, conforme analisaremos.

O enquadramento jurídico-constitucional da laicidade, contudo, não se resume à regra expressa de separação entre Estado e religião.

A laicidade requer a articulação de três princípios: “respeito à liberdade de consciência e a sua prática individual e coletiva; autonomia da política e da sociedade civil com relação às normas religiosas e filosóficas particulares; nenhuma discriminação direta ou indireta contra os seres humanos.” (Declaração Universal da Laicidade no Século XXI, artigo 1). O inciso I do art. 19 da Constituição, nesse sentido, dá conta de estabelecer vedações formais a iniciativas que venham a colocar em risco a autonomia do Estado ou a estabelecer preferências em razão de religião ou crença. Além disso, como veremos, a interpretação constitucional entende que a imunidade tributária aos “templos de qualquer culto” (CF88, art. 150, VI, ‘b’) é uma decorrência do dever abstenção estatal, especificamente, o dever de não embaraçar o seu funcionamento.

Complementa esses dispositivos constitucionais, portanto, o regime de reconhecimento e proteção à liberdade de consciência e crença, inscrito nos seguintes dispositivos de 1988:

Art. 5º [...]

VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;

VII - é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva;

VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei; Art. 143. O serviço militar é obrigatório nos termos da lei.

§ 1º Às Forças Armadas compete, na forma da lei, atribuir serviço alternativo aos que, em tempo de paz, após alistados, alegarem imperativo de consciência, entendendo-se como tal o decorrente de crença religiosa e de convicção filosófica ou política, para se eximirem de atividades de caráter essencialmente militar.

Há, portanto, uma densa proteção à liberdade religiosa na Constituição de 1988. Esse regime de proteção exige do Estado a implementação de deveres de respeito e proteção. Dever de respeito à consciência, à crença e à organização do campo religioso, bem como respeito, nas condições estipuladas em Lei, às restrições de conduta particular que decorram de tais crenças ou convicções, que são parte do direito fundamental à liberdade de consciência e de crença. Dever de proteção à liberdade religiosa, sempre que esta estiver sob ameaça ou venha a ser violada por terceiros ou por agentes do próprio Estado.

O reconhecimento desses deveres do Estado em matéria de liberdades religiosas – respeito (ou abstenção) e proteção – é a base que caracteriza a própria proteção constitucional a esse direito fundamental, portanto, compatível com a autonomia jurídica que caracteriza o Estado laico, ainda que essa afirmação, como veremos no debate de interpretação constitucional, não seja isenta de polêmicas.

O ponto crítico, contudo, se dá na delimitação de um eventual dever de atuação do Estado. A Constituição de 1988 autoriza expressamente essa atuação em colaborações de interesse público entre Estado e Igreja. Um primeiro problema de interpretação e aplicação da Constituição, portanto, decorre da delimitação do que seria o interesse público passível de colaboração. O caso sobre ensino religioso nas escolas públicas (BRASIL, STF, 2017), entretanto, amplifica esse problema, conforme veremos.

Porém, a delimitação constitucional dos princípios da laicidade vai além das regras expressas atinentes às relações entre Estado e as religiões ou sobre liberdade religiosa. Isso fica evidente quando se percebe que não apenas essas regras expressas foram objeto de preocupação e incidência de grupos religiosos organizados na Assembleia Nacional Constituinte. Os debates mostram também que institutos jurídicos como divórcio, casamento geraram intensos debates com os constituintes. Pinheiro (2008) recupera o discurso de Salatiel Carvalho (PFL/PE), constituinte evangélico, fazendo um balanço da atuação, é ilustrador desse ponto:

Comissões Temáticas que prepararam o primeiro esboço da nova Constituição. Como estratégia, o número foi maior na Comissão da Educação, Comunicação, Família e do Menor e na das Garantias e Direitos Individuais e Coletivos. Na primeira foram tratados temas importantes e do nosso interesse, como a legalização do aborto, o divórcio, a censura nos meios de comunicação, o ensino religioso nas escolas públicas, atividades das escolas confessionais, a questão da família, do menor, do idoso etc. O Relator desta Comissão rejeitou uma parte das nossas propostas e não quis fazer acordo com o nosso grupo. Lá éramos um número de doze numa Comissão de sessenta e três, e o Relator precisava de trinta e dois votos para aprovar o seu projeto. Com notável esforço de mobilização, os evangélicos conseguiram adesão de 25 Parlamentares não evangélicos e juntos

derrotaram por duas vezes seguidas o trabalho do Sr. Relator Artur da Távola. Foi a única Comissão que encerrou seus trabalhos sem o respectivo relatório. O fato mereceu destaque na grande imprensa nacional. Na outra Comissão, onde foi inclusive tratada a questão da liberdade de culto, o Relator preferiu chamar o grupo evangélico para um acordo, onde conseguimos firmar nossas posições. Com nosso apoio, o projeto foi tranquilamente aprovado. [...]

Outra questão polêmica enfrentamos na Comissão da Ordem Social, que tratou das minorias e onde os homossexuais reivindicaram a legalização dos seus movimentos e direitos na futura Constituição. Esta é uma batalha que ainda não terminou. Apesar do nosso veemente protesto, também registrado pela imprensa, os membros da Comissão votaram favoravelmente aos interesses dos homossexuais, ficando no texto do anteprojeto a garantia constitucional para o exercício de qualquer comportamento sexual. (PINHEIRO, 2008, p. 85-86).

Esse é um fato importante para notar que, atrás de uma suposta neutralidade de regras jurídicas, há o reconhecimento de um determinado ponto de vista a partir do qual são estabelecidas e reproduzidas hierarquias. Esta crítica é central na teoria do direito feminista ao apontar que a normatividade teoricamente neutra foi criada por homens brancos e considerando o homem branco como o destinatário preferencial de sua proteção.

[...] quando o pressuposto referencial de igualdade é revelado como o padrão masculino branco em disfarce neutro,o punho da dominação sob uma luva da igualdade, [...] a dominação essencializada como diferença se torna o ponto central da agenda por igualdade (MACKINNON, 1991, p. 1.295, tradução livre).

Em síntese, é preciso considerar que tanto as regras que estabelecem diretamente as formas de relação entre Estado e religiões e a liberdade religiosa como outras, supostamente neutras, são essenciais para decolonizar (MALDONADO- TORRES, 2016) o estudo da laicidade na Constituição de 1988.

Esta breve digressão se justifica para problematizar o estudo da laicidade na Constituição brasileira: ela demanda não apenas a consideração das regras diretamente referentes à relação entre Estado e religião e liberdade religiosa, mas também temas sensíveis sobre os quais ainda incidem disputas dos setores religiosos, onde proteção à vida, direitos sexuais e reprodutivos e pautas identitárias ganham destaque.

Se a Constituição incorporou, ainda que de forma assimétrica, a reivindicação de diversos grupos de interesse, criando um compromisso maximizador sem acolher um único projeto constituinte vencedor, as disputas sobre o “real sentido” da Constituição permanecem abertas e transferidas ao sistema político e ao Judiciário, como sustenta Vieira (2013). A tese é particularmente verdadeira sobre a laicidade na Constituição de 1988, cujas regras explícitas sobre liberdade religiosa e relações Estado e religiões, bem como outros

conceitos jurídicos, supostamente neutros, continuam a ser objeto de disputa. Esta é a razão que move este artigo a perquirir as regras constitucionais referentes à liberdade religiosa e às relações Estado e religiões, sem extrair forçosamente um modelo coerente de laicidade constitucional.

É também a partir desse recorte que o artigo trará a interpretação do Supremo Tribunal Federal sobre essas regras constitucionais referentes às relações Estado e religiões e também sobre outros temas, como direito à vida, direitos sexuais e reprodutivos e pautas identitárias. Ademais das regras e interpretações que estão postas, o artigo buscará traçar um horizonte de possíveis mudanças constitucionais, através de propostas de emenda à Constituição e ações de controle de constitucionalidade que estejam em tramitação, mas sem resolução.

No documento Embates em torno do Estado laico (páginas 53-58)