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O FEMINISMO POLÍTICO BRASILEIRO

No documento Embates em torno do Estado laico (páginas 94-99)

Vou chamar de feminismo político as diversas iniciativas que foram vanguardistas na luta pelas liberdades democráticas no Brasil. A luta contra a ditadura se deu em várias frentes e a emergência do movimento de mulheres e das feministas, ocorre na brecha do Ano Internacional da Mulher em 1975, que permitiu os primeiros encontros públicos e congregou feministas em vários grupos de ação e militância. Assim surgiu o primeiro jornal se assumindo como feministas (e não feminino, como eufemisticamente se usava), o Nós Mulheres, de 1976, com a ajuda financeira de Ruth Escobar e Ellis Regina. Em 1978, Ruth abre as portas de seu teatro para o Primeiro Congresso da Mulher Paulista, que foi realizado em 1979 na PUC (Pontifícia Universidade Católica) de São Paulo, sob a reitora Nadir Kfouri que, em seus oito anos de gestão, democratizou a universidade, criou uma creche para alunas e funcionárias, demonstrando na prática seu feminismo. Ao mesmo tempo, para ganhar legitimidade política e difundir seus pontos de vista, as feministas elaboraram teorias sobre a opressão da mulher e começaram a reescrever a história. Enquanto isso, as intelectuais feministas acadêmicas criaram grupos de pesquisa sobre mulheres, e a Fundação Carlos Chagas, com o apoio da Ford Foundation, criou uma linha de pesquisas sobre a Mulher, com concursos a partir de 1978 e os grupos de trabalho sobre o tema cresceram nas universidades. As economistas fizeram avaliações críticas do método de coleta de dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) e a invisibilização do trabalho da mulher rural,

escondido na fórmula produção “familiar”. Também a metodologia de coleta de dados com respeito ao suporte financeiro das famílias exigiu mudanças, pois sempre que havia um homem na unidade familiar havia o pressuposto de que ele era o “chefe de família”.

O feminismo, ademais, era um estilo de vida. Mulheres saindo em grupo; frequentando discotecas, embaladas do som de abertura da novela Dancing Days. Abra suas asas, cantavam as Frenéticas, vestidas com os estereótipos, dos maiôs apertados, calças-ligas, pintura exagerada. A partir de 1976, a censura passou a ser diretamente enfrentada, como no episódio do Chico e Gil em Cálice; Ney Matogrosso encarnava uma figura andrógina, de uma sensualidade eletrizante, com sua voz metálica. O medo foi diminuindo, o cansaço com a arrogância dos militares, com a proibição de reuniões, com a arbitrariedade policial em nome da segurança nacional e outras pequenas e grandes arbitrariedades das ditaduras. As mulheres tinham a vantagem de não serem consideradas perigosas. Logo, desfrutavam de uma maior liberdade de ação. Foi um feminismo gozoso por assim dizer. Era muito divertido ser feminista. A maior parte era jovem, namorando ou ficando. Ademais, o desconforto com a censura prévia de filmes, jornais e programas de TV, a proibição de músicas consideradas “subversivas” e o fato de que os maiores apoiadores da ditadura também estavam descontentes com os rumos da economia, enfim, um conjunto de descontentamentos, somados à violência policial, o reconhecimento dos métodos bárbaros de repressão aos “subversivos”, tudo isso junto foi fortalecendo as fileiras dos que lutavam pelas “liberdades democráticas”. E esse feminismo dos anos 1975/85 é de oposição à ditadura. E as feministas improvisam outras maneiras de sair às ruas como ocorreu no assassinato da cantora e compositora Eliana de Grammont, em 1981, denunciando os assassinos de mulheres que se defendiam com o argumento de “defesa da honra”, vestidas de preto e exibindo faixas com os nomes das vítimas da violência de ex-maridos ou namorados. A dimensão lúdica também esteve presente nas festas e pequenas ou grandes manifestações artísticas, como foi o Primeiro Festival das Mulheres nas Artes, coordenado por Ruth Escobar em setembro de 1982, com o apoio da Editora Abril.

A redemocratização e a Constituição de 1988 marcam as conquistas dos movimentos sociais, especialmente das feministas. A forte participação feminina foi determinante para que nas primeiras eleições livres, realizadas em 1982, as feministas participassem do governo do Estado de São Paulo e criassem o primeiro Conselho da Condição Feminina, nos moldes da experiência francesa. E, finalmente em 1988, quando a redemocratização jurídica do país se completou, com a nova constituição, conhecida como Constituição Cidadã,

as juristas feministas tiveram um papel importante na redefinição dos direitos das mulheres, especialmente no que se refere à família.

O texto do artigo 226 da CF (Constituição Federal) de 1988 aboliu o sistema de desigualdades entre homens e mulheres, consagrado pelos preconceitos seculares do Código Civil de 1916. Esse código apoiava-se inteiramente no Direito Canônico para o qual o casamento era o único meio de se constituir uma família. Nesse sentido, o Código de 1916 estabelecia caber ao marido a chefia, vale dizer, administração dos bens, a manutenção material da família, o direito de fixar residência, enquanto à mulher era outorgada a função de ser a “companheira, consorte e colaboradora do chefe da família, cumprindo-lhe zelar pela direção material e moral desta” (artigos 233 e 240).

A família que aparece na CF de 1988 fundamenta-se no princípio da igualdade entre homens e mulheres e é descrita como base da sociedade a quem o Estado garante proteção. Nessa nova família, ambos os cônjuges exercem igualmente os direitos e os deveres referentes à entidade familiar, prevalece o princípio constitucional da igualdade jurídica entre todos os filhos, nascidos ou não no casamento, naturais ou adotados, e a redução dos prazos e das exigências para o divórcio. Finalmente, o preceito legal de família passa a incluir a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, reconhecendo a existência de muitas possibilidades de arranjos familiares.1

Uma consequência paradoxal da resistência católica ao divórcio foi o fato de que inúmeras crianças nasciam fora do casamento legal, colocando-se a questão de seu estatuto jurídico. O que provocou uma situação de fato que foi o crescimento das famílias consensuais e o reconhecimento de seus direitos pela jurisprudência. Assim, quando o ditador Ernesto Geisel, protestante, não barrou a emenda constitucional que introduzia o divórcio, da autoria do senador divorcista Nelson Carneiro, em 1978, a união consensual já era uma realidade e uma tendência. Hoje, a jurisprudência avança no reconhecimento dos casais homossexuais e seus direitos de união e adoção. Em 2005, o modelo familiar majoritário (e tradicional) diminui para 50%, enquanto cresce o número de mulheres chefes de família e pessoas vivendo só.

É interessante observar que a igualdade jurídica entre os gêneros na família não levou à sua dissolução ou enfraquecimento, mas, simplesmente, permitiu sua modernização frente às novas realidades da autonomia financeira das mulheres; a diminuição do número de filhos e os rearranjos familiares.

1 Seguido das leis especiais subsequentes em matéria de família (Leis 8.971/94 e 9.278/96 sobre união estável; Lei 8.069/98 sobre a proteção das crianças e adolescentes; Lei 8.560/92 sobre reconhecimento de filhos fora do casamento).

CONCLUSÃO

Neste ano em que comemoramos os 200 anos do nascimento de Karl Marx, eu terminaria com uma citação do filósofo alemão sobre o fato de o racismo ser uma biologização das diferenças sociais. Assim, ele pergunta: “O que é um escravo negro? Um homem de raça negra. Uma explicação vale tanto quanto a outra. Um negro é um negro. Só em determinadas relações sociais é que ele se torna escravo” (MARX, [1849] 1971 apud RUBIN, 2017, p. 10). A feminista norte-americana Gayle Rubin, em artigo de 1975, analisava o sistema sexo- gênero, parafraseando Marx:

O que é uma mulher domesticada? Uma fêmea da espécie. Uma explicação vale tanto quanto a outra. Uma mulher é uma mulher. Ela só se transforma em mulher do lar, em esposa, em escrava, em coelhinha da Playboy, em prostituta, em ditafone humano, dentro de determinadas relações. Fora dessas relações, ela não é mais a auxiliar do homem, assim como o ouro em si não é dinheiro, etc. Quais são, então, essas relações pelas quais uma mulher se torna uma mulher oprimida? (RUBIN, 2017, p. 10).

Parafraseando Marx e Rubin, eu diria que um corpo de sexo feminino é um corpo de sexo feminino. Ele só vai se transformar em gênero feminino sob certas relações sociais. E essas relações sociais, por sua vez, são a síntese de várias determinações: nossa classe social, nossa cor, nossa idade, nossa aparência física, nossa subjetividade. Cada uma de nós está situada num feixe de determinações, como diria Simone de Beauvoir. Assim, o feminismo é e só pode ser um projeto radical de superação das relações sociais baseadas em diferentes formas de opressão.

Finalmente, no que concerne ao feminismo brasileiro, ultrapassamos a fase em que o movimento era constituído principalmente por uma vanguarda emancipada ou por intelectuais nas universidades, para abrir caminho aos novos feminismos, compostos por coletivos de meninas e jovens de várias classes sociais que denunciam o machismo, o assédio no transporte coletivo e a violência contra a mulher. E que se manifestam nas ruas, nos blogs e com novas atitudes. Acho mesmo que são as feministas as maiores agentes de transformação em nossos dias.

E assim como na época da ditadura militar a oposição se uniu em torno das “liberdades democráticas”, hoje a defesa do Estado laico une as forças de oposição ao conservadorismo e à intolerância. Porque cada vez fica mais evidente que o Estado laico é a única garantia da cidadania e da democracia contra todos os tipos de fundamentalismos, especialmente os religiosos.

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