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RESISTÊNCIAS E RUPTURAS

No documento Embates em torno do Estado laico (páginas 176-178)

Existe uma tendência a considerar com muita naturalidade que a visão de mundo6 dos estudantes brasileiros é, ou quase sempre é, religiosa, porque a cultura brasileira inclui traços religiosos. Entretanto, é bom lembrar que essa “visão de mundo” tem sido ensinada e reforçada em muitas escolas. Visões religiosas para fenômenos da origem e diversidade da vida têm sido promovidas, seja porque são intencionalmente ensinadas, seja porque aos estudantes a abordagem da ciência não lhes é oferecida. Podemos pensar que visões religiosas para os fenômenos da vida são mantidas entre os estudantes porque eles não conhecem outra. Os jovens praticamente não têm opção. É o que as pesquisas mostram. Mas as pesquisas mostram também que quando isto é feito, isto é, quando aos jovens são oferecidas as condições para exercitarem a observação de fenômenos da natureza via práticas da ciência, eles tornam-se protagonistas de seu próprio processo de conhecimento e a resposta positiva se desenvolve. Eles se envolvem com as questões provocadas pelas atividades da ciência. Prevalece o envolvimento com o pensar, o questionar, o interagir com a situação do ensino de ciências.

O panorama das pesquisas, caracterizando se há ou não estrutura adequada 6 Assumimos o sentido da expressão “visão de mundo” conforme a proposta por Geertz. “Na discussão antropológica recente, os aspectos morais (e estéticos) de uma dada cultura, os elementos valorativos, foram resumidos sob o termo ethos, enquanto os aspectos cognitivos, existenciais foram designados pelo termo “visão de mundo”. O ethos de um povo é o tom, o caráter e a qualidade de sua vida, seu estilo moral e estético, e sua disposição é a atitude subjacente em relação a ele mesmo e ao seu mundo que a vida reflete. A visão de mundo que esse povo tem é o quadro que elabora das coisas como elas são na simples realidade, seu conceito de natureza, de si mesmo, da sociedade.” (GEERTZ, 2017, p. 93)

ao ensino de ciências, expõe uma tendência: onde a ciência é ensinada via exercício das práticas científicas e familiaridade com espaços de ciência como museus, laboratórios e feiras científicas, as crenças religiosas são bem menos lembradas. Ao contrário, num contexto dogmático de ensino (com ou sem objetivos religiosos declarados), e sem recursos adequados, as crenças religiosas são mais lembradas pelos estudantes. Estes, sem dificuldade, estabelecem comparações entre ciência e religião. E nesse caso, tendem a restringir-se ao que já conhecem e já são mais familiarizados, ou seja, muitas vezes acomodam- se às explicações religiosas para fenômenos da vida.

A acomodação a conteúdos aos quais já se está familiarizado foi também identificada por Kuhn na comunidade científica. Ainda que haja relevantes diferenças entre a dinâmica de cientistas e a dos jovens estudantes, o esforço de comparar os dois grupos, como nos ensina a Antropologia, pode colaborar para a compreensão da resistência/aceitação de novas ideias, visões e conceitos. Desde a recepção de GALILEU ao trabalho de KEPLER, à recepção de NAGELI ao trabalho de MENDEL, à rejeição dos trabalhos de GAY LUSSAC por DALTON, à rejeição de MAXWELL por KELVIN, as novidades inesperadas nos fatos e nas teorias têm, o que é significativo, encontrado resistências e com frequência têm sido rejeitadas por muitos membros, dos mais criativos, da comunidade profissional científica. O historiador, pelo menos este, de fato não precisa que seja PLANCK (1948) a lembrar-lhe que: “Uma verdade científica nova não é geralmente apresentada de maneira a convencer os que se opõem a ela... simplesmente a pouco e pouco eles morrem, e nova geração que se forma familiariza-se com a verdade desde o princípio.” (KUHN, 1974, p. 54)

É a dinâmica do trabalho científico, em diferentes contextos de apresentações, discussões e críticas ao longo do tempo que promove avanços e novas familiarizações com conceitos e interpretações. Para jovens e adultos, a compreensão e aceitação das explicações científicas demandam tanto familiaridade quanto tempo. Condições históricas e sociais influenciam essas demandas.

Entre tantos, escolho Kuhn como exemplo de cientista e educador que argumentou a favor da familiarização dos estudantes com as práticas da produção científica. Kuhn criticou o fato de a educação científica, que supõe uma atividade criativa, se dar através de manuais escritos especialmente para estudantes.

Até que ele esteja preparado, ou quase preparado [...] o estudante raramente é posto ante ao problema de conduzir um projeto de investigação, ou colocado ante os produtos diretos da investigação conduzida por outros, isto é, as comunicações profissionais que os cientistas escreverem para seus colegas. (KUHN, 1974, p. 56-57)

escola, e isso está declarado nos documentos oficiais do Ensino Básico. As salas de aula são para isso. Essa aproximação precisa tê-los como protagonistas e não como espectadores das falas de seus professores, que é de fato característica do espaço religioso.

Embora a educação científica nas escolas tenha sido baseada no conhecimento estabelecido em vez de no método experimental e no pensamento crítico, hoje é essencial fazer com que os alunos compreendam, desde uma idade muito jovem, sua verdadeira natureza. Da ciência, baseada não apenas em observações e conhecimentos clássicos, mas também em experimentação e sua abordagem hipotético-dedutiva. Aprende-se ciência observando-se fenômenos a serem explicados e colocando-se questões. Em ciência, é preciso aprender a se colocar questões para avançar [...] Por muito tempo o ensino do método, e da cultura científica, foi reservado unicamente aos pesquisadores para os quais ele parecia diretamente útil. Hoje é necessário compartilhá-lo com o maior número de pessoas, para que toda a sociedade seja tomada por suas especificidades. (GRIMOULT, 2012, p. 192-195)

No documento Embates em torno do Estado laico (páginas 176-178)