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Práticas religiosas nas escolas públicas

No documento Embates em torno do Estado laico (páginas 196-200)

Há um tema de sensibilidade crescente quando se trata da laicidade do Estado: a presença da religião nas escolas públicas. Ela pode ser observada nos 16 COUTINHO, M. Justiça anula passaporte diplomático de RR Soares. Época, São Paulo, 12 maio 2017. Disponível em: <https://epoca.globo.com/politica/noticia/2017/05/justica- anula-passaporte-diplomatico-de-rr-soares.html>. Acesso em: 10 maio 2017.

17 GUERRA, F. Ex-prefeito condenado por descontar salário de servidores para construir igreja. Jornal do Commercio, Recife, 30 nov. 2017. Disponível em: <http://jc.ne10.uol.com.br/ blogs/rondajc/2017/11/30/ex-prefeito-condenado-por-descontar-salario-de-servidores-para- construir-igreja/>. Acesso em: 02 maio 2018.

nomes das escolas, nas imagens de santos(as), nos textos inscritos nos murais, nas festividades, nas orações puxadas pelos professores antes das aulas e da merenda, e, particularmente, na disciplina Ensino Religioso.

No Brasil imperial, o ensino da religião do Estado, isto é, a católica, era obrigatório nas escolas primárias e secundárias públicas. Nas primárias, os alunos não católicos, vistos com desdém ou hostilidade, podiam ser dispensados dessas aulas, dependendo do grau de tolerância dos professores. No Colégio Pedro II, estabelecimento público padrão para o ensino secundário, situado na capital do país, os alunos não católicos podiam ser dispensados do ensino religioso a partir da reforma estatutária de 1878, bem como podiam fazer o juramento de formatura com referência diferente do Evangelho. A República suprimiu o ensino religioso das instituições públicas, mas, aos poucos ele foi retornando, em velocidade diretamente proporcional à recuperação da força política da Igreja Católica e à multiplicação das crises políticas18.

Por ocasião do primeiro centenário do período republicano, a Igreja Católica era a única instituição religiosa que reivindicava o ensino religioso nas escolas públicas. As Igrejas Evangélicas defendiam o ensino público laico, assim como os espíritas kardecistas. Outras instituições religiosas nem mesmo se manifestavam sobre esse assunto. Mas, com o crescimento do segmento evangélico, particularmente do pentecostal, parte dessas igrejas passou a defender o ensino religioso nas escolas públicas, como elemento de sua estratégia de expansão e consolidação em confronto com o catolicismo. Essa situação se tornou ainda mais complexa com a assinatura da concordata com o Vaticano, o que veremos mais adiante. Agora, será tratada a situação de fato do ensino religioso, que aparece na Constituição de 1988 como facultativo para os alunos das escolas públicas de Ensino Fundamental. Na prática, essa disciplina tem sido chamada de facultatória, isto é, facultativa de direito, mas obrigatória de fato.

Os dados da Prova Brasil19 são eloquentes quanto à obrigatoriedade de fato do ensino religioso nas escolas públicas. Os questionários respondidos pelos diretores de todo o país, em 2013, mostraram que 70% das escolas públicas de Ensino Fundamental ministravam aulas dessa disciplina. Dentre as que 18 CUNHA, L. A. A educação brasileira na primeira onda laica: do Império à República. Rio de Janeiro: Edição do Autor, 2017. 530 p. Disponível em: <www.luizantoniocunha.pro.br>. Acesso em: 02 maio 2018.

19 Prova Brasil é o apelido da Avaliação Nacional do Rendimento Escolar do Ensino Fundamental, promovida pelo MEC, que aplica a cada dois anos testes de conhecimento aos alunos dos quintos e nonos anos das escolas públicas, além de questionários a professores e diretores.

o faziam, 54% confessaram exigir presença obrigatória; e 75% não ofereciam atividades para os alunos que não queriam assistir a essas aulas.

Se os professores católicos, monitorados pelos comitês eclesiásticos, assumem o viés missionário que ainda povoa o imaginário da categoria, para impor aos alunos práticas religiosas, seus competidores evangélicos, que beberam na mesma fonte, procedem de modo similar. Assim, a presença de práticas religiosas cristãs no interior das escolas públicas passa (ou continua a ser) a ser vista como algo natural. Várias pesquisas, inclusive teses e dissertações acadêmicas, comprovam isso.

A sobreposição do campo religioso ao campo educacional é uma herança do passado colonial e imperial, quando a Igreja Católica tinha o monopólio religioso. Mas, há uma variável nova, que a reforça. Ao fim de pesquisa realizada na rede estadual de ensino do Rio de Janeiro, em meados da década passada, Ana Maria Cavaliere20 concluiu que a escola pública foi colonizada pela religião, com iniciativa ou o apoio de governantes e de parlamentares. Os professores, os dirigentes educacionais e os políticos, de um modo geral, acreditavam existir uma ameaça de descontrole social nos bairros populares, ameaça essa que estaria, também, dentro das escolas públicas, na forma de comportamentos indesejados, de agressividade e de resistência dos alunos à escola. A religião foi a solução encontrada pelo Estado e pelo magistério. O Estado abdicou de sua função socializadora e cedeu às instituições religiosas parte de suas responsabilidades. O magistério, por sua vez, sobrecarregado pela falta de pessoal, não conseguia dar conta das atividades correntes da escola nem promover atividades artísticas, culturais, esportivas, comunitárias ou de lazer que fossem capazes de enriquecer o ambiente escolar e as vidas das crianças e dos jovens que as frequentavam e as de suas famílias. As bibliotecas eram inexistentes e, frequentemente, tinham acesso restrito. Tampouco havia atividades multiprofissionais de apoio aos alunos, que contassem com a intervenção de psicólogos, assistentes sociais ou profissionais da saúde. Numa palavra, havia um vazio na escola, que era preenchido pela religião.21 Mesmo existindo um sentimento mais ou menos difuso de que a escola deveria ser laica, o professorado capitulava e acabava aceitando a oferta que vinha de fora. Na prática, as aulas de religião eram justificadas pelos professores como uma ferramenta a mais no controle dos alunos e consequente preservação de sua autoridade. A percepção generalizada de que havia predisposição da maioria das famílias dos alunos de adesão a um credo religioso, fazia com que esse 20 CAVALIERE, A. M. Quando o Estado pede socorro à religião. Revista Contemporânea

de Educação. Rio de Janeiro, v. 1, n. 2, 2006.

21 Quando não eram as instituições religiosas, as ONGs e as empresas se dispunham a preencher esse vazio.

caminho parecesse útil, inclusive para professores e diretores que não estavam pessoalmente envolvidos na prática de alguma religião. O professor de ensino religioso passou, então, a ocupar o lugar de auxiliar da direção da escola nas atividades de orientação educacional, nos projetos coletivos, nas atividades culturais e comemorativas. Em certos casos, esse professor adquiriu um papel estratégico na definição e na execução da proposta pedagógica da escola. Nos municípios da área metropolitana do Rio de Janeiro, são ostensivos os mecanismos de colaboração entre professores e diretores, adeptos das duas principais vertentes do cristianismo na manutenção do que lhes é comum, como a leitura da Bíblia e a oração do “Pai Nosso”, bem como a oposição ao que lhes é adverso, como as tradições religiosas afro-brasileiras e, sobretudo, o ateísmo, o agnosticismo e o indiferentismo. Como Vânia Fernandes22 mostrou em sua tese de doutorado, ademais dessa colaboração inter-religiosa, existem mecanismos de competição, nem sempre aberta, entre católicos e evangélicos, quando se trata do calendário e dos festejos religiosos. Por exemplo, o costume sincrético de distribuição de doces às crianças no dia de São Cosme e Damião é anatemizado pelos evangélicos. Além de não aceitarem a figura dos santos, tão valorizados pelo catolicismo popular, não dissimulam sua ojeriza pela origem sincrética do costume, pois o candomblé e a umbanda cultuam orixás que assumem a forma de crianças gêmeas. O mesmo se dá com o presépio, montagem icônica em todo o país, muito valorizado no âmbito familiar e no escolar, que é rejeitado pelos evangélicos como prática idólatra. Diante dos alunos provenientes de famílias evangélicas, os professores e diretores católicos recuam constrangidos de suas pretensões por causa da ofensiva dos rivais, em proveito da plataforma comum. O fim de eventos tradicionais, mas de origem católica, como as festas juninas, a supressão dos presépios e da “Ave Maria” nas orações coletivas são exemplos de concessões católicas em prol da cooperação intereclesiástica no âmbito da escola pública. A celebração conjunta da Páscoa e do Natal, bem como a citação reiterada de trechos bíblicos, convenientemente escolhidos, reforçam tal colaboração.

O dossiê organizado por Roseli Fischmann para a revista Notandum23 propicia um panorama diversificado de redes municipais, a partir de estudos de casos conduzidos por pesquisadores de cinco estados. Vejamos os resultados dos estudos empíricos constantes do dossiê. Em São José dos Campos (SP), Salvador (BA), Porto Alegre (RS) e Campo Grande (MS), pesquisadores, 22 FERNANDES, V. C. (As)simetria nos sistemas públicos de ensino fundamental em

Duque de Caxias (RJ): a religião no currículo. 2014. 241 f. Tese (Doutorado em Educação) –

Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014.

23 NOTANDUM. Ensino religioso em escolas públicas: ameaças ao Estado laico. Edição

mestrandos e doutorandos encontraram símbolos e práticas religiosas inscritas nas dependências das escolas, além de crucifixos e imagens de Jesus e Nossa Senhora; orações católicas eram feitas no pátio antes da entrada dos alunos nas salas de aula, em geral o “Pai Nosso” ou a leitura de trechos da Bíblia. Em um caso bastante significativo, os pais preferiram aulas de reforço escolar para os filhos, ao invés do ensino religioso, alternativa que é comumente ignorada nos currículos escolares. Em escolas privadas conveniadas com as prefeituras, havia missionárias que conduziam atividades religiosas, inclusive a preparação para a eucaristia. Os valores morais eram apresentados aos alunos como se fossem intrinsecamente religiosos, não havendo possibilidade de discussão fora desse campo.

Dito isso, passemos a indagar sobre os meios e modos pelos quais o missionarismo cristão atinge particularmente as crianças e os jovens adeptos de religiões afro- brasileiras, assumindo, inclusive, formas racistas.

Stela Caputo24 observou crianças adeptas do candomblé e as vicissitudes por que passaram em escolas públicas permeadas pelo missionarismo cristão. A discriminação religiosa convergia com a racial: candomblé, macumba, etc. eram “coisa de negro”. Houve depoimento de alunos que diziam que uma certa professora chegou a passar óleo ungido na testa deles para que ficassem mais tranquilos e para “tirar o diabo de quem fosse do candomblé”. A reação dos alunos foi diversa, uns abandonavam a escola para evitar a discriminação; outros inventavam maneiras de se tornar “invisíveis”. Esta “solução” se expressava na omissão da religião que efetivamente professavam – o candomblé – para se declararem católicos.

Os livros didáticos para o ensino religioso constituem um repositório de concepções discriminatórias. Pesquisa realizada em 2009 pelo Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero – ANIS analisou 25 livros para uso nessa disciplina, publicados por editoras religiosas e não religiosas brasileiras25. A primeira e mais ostensiva constatação foi a desigualdade na presença das religiões: para cada menção às religiões afro-brasileiras havia cerca de 20 referências às cristãs. As religiões de origem africana eram mencionadas em número inferior até em relação a outras que não tinham tantos adeptos efetivos (em oposição aos declarados) no Brasil, como a islâmica e a judaica. Dentre as referências cristãs, a maioria era constituída de menções católicas, como a figura de Maria, os santos e as orações próprias desse credo. Ao computar as 24 CAPUTO, S. G. Educação nos terreiros e como se relaciona com crianças do

candomblé. Rio de Janeiro: Pallas, 2012.

25 DINIZ, D.; LIONÇO, T.; CARRIÃO, V. Laicidade e ensino religioso no Brasil. Brasília: UNESCO, 2010.

No documento Embates em torno do Estado laico (páginas 196-200)