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ENVOLVENDO A LAICIDADE DO ESTADO NO BRASIL

No documento Embates em torno do Estado laico (páginas 183-186)

Luiz Antônio Cunha

As ideias sobre o Estado laico variam muito, na prática, quase tanto quanto as de democracia, da qual ele é um elemento constitutivo. Num extremo estão os que pensam no Estado laico como sinônimo de Estado antirreligioso, que combate, interdita e persegue toda e qualquer religião, por razões as mais diversas; uns gostariam que esse Estado existisse, outros o temem. Noutro extremo estão os que identificam Estado laico a um protetorado político e financeiro das instituições religiosas, que distribui os recursos públicos entre elas com equidade, além de interditar a manifestação pública dos ateus. Nos países onde vigorou o padroado, isto é, onde o catolicismo foi religião oficial, como na Europa e na América Latina, a separação jurídica entre o Estado e a Igreja Católica é considerada por muitos como suficiente para garantir a laicidade. Não é bem assim, pois há mais de uma instituição religiosa em jogo, além do que há indivíduos e grupos indiferentes à religião, outros que vivem em dúvidas sobre questões transcendentais e até mesmo os que são contra a validade de crenças e práticas religiosas. Por baixo dessas diferenças todas, há um verdadeiro campo de disputas entre as instituições religiosas pela hegemonia, senão pelo monopólio, por mais que seus dirigentes digam o contrário em discursos que prometem convergência de valores e de práticas. Para efeito do panorama aqui esboçado, o Estado laico é entendido como o que se situa fora do campo religioso, não favorecendo nem prejudicando alguma crença e/ou prática religiosa. Consequentemente, o poder estatal não está disponível para as instituições religiosas o utilizarem no exercício de suas atividades, seja para manterem destinatários cativos, para se financiarem, para obterem acesso aos meios de comunicação ou outros recursos estratégicos. O Estado laico somente interfere no campo religioso para proteger a liberdade de crença e de prática de religiosos e de não religiosos, o que faz mediante a prevenção e a repressão a agressões entre pessoas e grupos. Por isso, o panorama da laicidade do Estado é aqui traçado a partir do campo político, não do campo religioso.

No Brasil do tempo do Império, o Estado incluía a Igreja Católica no âmbito de seu funcionalismo e das despesas orçamentárias, enquanto as outras igrejas cristãs estavam submetidas a fortes restrições. Cultos evangélicos (protestantes) eram confinados em lugares fechados, sem sinais externos de templos, e o Código Penal previa penas de multa e prisão para a divulgação de ideias contrárias à religião do Estado. A República separou a Igreja Católica do Estado, assim como liberou o campo religioso de todo e qualquer controle. As Igrejas Evangélicas e os Centros Espíritas Kardecistas cresceram, cada qual em seu próprio ritmo.1 Menos de uma década após a instituição do regime republicano, as ligações políticas privilegiadas entre a Igreja Católica e o Estado foram retomadas, de modo que a Liga Eleitoral Católica logrou inserir na Constituição de 1934 todos os pontos de sua plataforma, como a validade civil do casamento religioso e o ensino religioso nas escolas públicas.

Mas, o campo religioso não permaneceu estático. O crescimento das Igrejas Evangélicas se acentuou a partir de 1960: a proporção de católicos declarados, que era de 93%, caiu a 65% em 2010. Os evangélicos, em contrapartida, aumentaram de 4% para 22%. Os “sem religião” passaram de 0,5% a 8% no mesmo período. As disputas internas no campo religioso cresceram muito, principalmente entre católicos e evangélicos, além destes com os afro-brasileiros.

Com essas mudanças do campo religioso, as instituições religiosas buscaram no Estado apoio para manter e/ou ampliar o espaço conquistado (católicos e evangélicos), assim como buscar proteção contra os ataques (umbanda e candomblé).

As disputas no interior do campo religioso são mais intensas no Estado do Rio de Janeiro, particularmente na capital e em sua área metropolitana, talvez pela mais rápida secularização da cultura, isto é, pelas mudanças nos valores e nos costumes fora das prescrições religiosas. No Censo de 2010, a religião católica não foi declarada a da maioria da população fluminense, mas o declínio no número de seus adeptos não se reverteu todo para as Igrejas Evangélicas. Seus crentes superaram a média nacional, mas o aumento foi menos que proporcional: 30%, contra os 22% do Brasil como um todo. Parte da queda do número de católicos no Estado do Rio de Janeiro passou para a categoria dos “sem religião”, que atingiu 16%, o dobro da média nacional. Ou seja, a perda de fiéis da Igreja Católica não se deu unicamente em benefício das Igrejas Evangélicas ou de outra religião institucionalizada.

1 Na verdade, o espiritismo kardecista, assim como os cultos afro-brasileiros sofreram restrições, que foram atenuadas com o tempo.

Assim, o quadro das disputas no campo religioso pode ser resumido em três movimentos principais:

• evangélicos em luta pelo crescimento, avançam sobre o contingente católico e afro-brasileiro; no segmento evangélico, são as igrejas pentecostais que crescem, em detrimento do protestantismo de colonização ou de missão;

• católicos em luta contra o declínio, principalmente contra o avanço evangélico, buscam manter seus adeptos;

• afro-brasileiros lutam pela sobrevivência cada vez mais ameaçada pelo proselitismo dirigido, secundado pela violência material dos evangélicos pentecostais contra adeptos e locais de culto.

Vale a pena sublinhar a existência desses três movimentos principais, pois as crônicas políticas e até mesmo estudos acadêmicos preferem focalizar o protagonismo dos evangélicos, deixando na sombra o da Igreja Católica. Não se deve esquecer que, apesar das disputas com as evangélicas, a Igreja Católica tem sua própria estratégia política (por vezes contraditória) e se alia às pentecostais, ostensiva ou tacitamente, em questões importantes.

Nessa disputa, o Estado torna-se campo de luta e aliado disputado no embate contra os adversários. Em cada um dos poderes, a luta assume características próprias. No âmbito governamental e das instituições púbicas (como de educação, saúde e segurança), a luta é para obter apoio de presidente, governador ou prefeito na concessão de benefícios, como a ocupação de cargos que propiciem o benefício das respectivas instituições religiosas (políticas diferenciadas, transferência de recursos financeiros para as igrejas ou suas instituições, emprego de quadros, etc.). Também no âmbito do Poder Executivo estão os órgãos públicos, como de educação, de saúde, de segurança pública, todos muito visados para a atuação religiosa, assim como a supervisão das concessões de meios de comunicação de massa. Nesses órgãos, as instituições religiosas buscam estar presentes, como no caso da inserção do ensino religioso como disciplina curricular e da interdição de procedimentos por elas condenados, como o aborto em qualquer circunstância, mesmo quando permitido pela legislação.

No Poder Legislativo, introduzem-se rituais religiosos nos plenários e luta-se para aprovar leis federais, estaduais e municipais que beneficiem instituições religiosas, em termos materiais e simbólicos, assim como para barrar as que as prejudiquem.

No Sistema Judiciário (Poder Judiciário + Ministério Público), cujos quadros são providos mediante concursos e promovidos por cooptação2, a atuação das instituições religiosas é mais indireta, pois não depende da votação popular, como no Poder Executivo e no Legislativo. Para juízes, desembargadores, ministros, procuradores e promotores, a formação ou adesão religiosa individual é que vai definir a interpretação da legislação e o acionamento do aparelho de Estado visando sentenças que beneficiem ou prejudiquem atores individuais ou coletivos.

Delineemos o panorama, começando com os poderes/sistema da República. A separação entre eles não será estanque, porque as decisões de um podem ter desdobramento em outro ou ser até mesmo contestadas. Por exemplo, uma medida tomada por um prefeito pode ser anulada por decisão judicial, de modo que nem sempre será possível tratá-las separadamente. A ênfase é no presente estendido, isto é no período iniciado pela Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988. Algum recuo histórico será feito apenas para exemplificação. Ficará para o fim a questão das concordatas entre o Brasil e o Vaticano, a primeira firmada em 1989 e a segunda, em 2008. Nessa matéria, os três poderes do Estado se envolveram: o Executivo, que assinou os acordos; o Legislativo que discutiu e aprovou um deles, do qual derivou o projeto de

lei geral das religiões; e o Sistema Judiciário, onde nasceu e foi julgada a Ação

Direta de Inconstitucionalidade – ADI sobre o segundo desses acordos. Foram variadas as fontes das informações utilizadas neste texto. Parte delas está acessível no portal do Observatório da Laicidade na Educação [www. edulaica.net.br]. Além da bibliografia nele listada, foram de especial valia as seguintes seções: biblioteca, posições, legislação, concordata e notícias. A mídia digital foi uma fonte inestimável de notícias, e inúmeras referências foram feitas a jornais e revistas acessados pela internet.

No documento Embates em torno do Estado laico (páginas 183-186)