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CONSIDERAÇÕES TEMPORAIS

No documento Embates em torno do Estado laico (páginas 179-183)

As pessoas não reagem uniformemente a situações, visões e conceitos. A plasticidade e a diversidade são inerentes ao ser humano. Cabe à educação oferecer condições de informação e reflexões a todos.

Em resumo, a visão religiosa de fenômenos da natureza é ensinada e aprendida. Muitos jovens mantêm a visão religiosa porque a visão científica não lhes foi apresentada em condições educacionalmente adequadas. Não tiveram chance de exercitar seu pensamento sob a ótica de ciência, resta-lhes consolidar aquilo a que já estão familiarizados ou aculturados. As pesquisas mostram que muitos jovens adotam a explicação religiosa não por escolha, mas por condição única. Tão logo experimentam a imersão no mundo da ciência, via práticas de observação e reflexão, a resposta é positiva, o engajamento é feito com entusiasmo juvenil. As crenças religiosas não são provocadas, a compreensão científica dos fenômenos da natureza encontra seu lugar sem provocar confronto. Não se trata de confronto com a religião, mas de uma experiência de aprendizagem. A comparação entre os estudantes de escolas onde se ensina ciência com práticas de ciência e as que não ensinam dessa forma expõe essa realidade.

Excluir a ótica da observação e da experimentação que vem pelas atividades científicas pode configurar uma situação de desonestidade intelectual dos dirigentes ou responsáveis pela Educação. De certa forma é o que disse Kuhn: aos jovens têm sido impostas situações incompletas para a educação científica. Conteúdos científicos estudados de forma desarticulada às formas de sua produção limitam as possibilidades de compreensão.

Algumas conclusões são possíveis: estudantes mais pobres e em colégios com recursos precários são mais religiosos, resistem mais à ciência e expressam, por exemplo, mais dificuldades em relação ao estudo da teoria da evolução. Entre jovens de classe média, classe média alta e em bons colégios onde há boas condições de ensino, mesmo com perfil cultural que incluem crenças religiosas, os alunos são bem menos religiosos no sentido de expressarem suas crenças em confronto com a ciência. Para ambos os grupos, o exercício de observar e questionar nas salas de aula e nos espaços de ciência como museus e laboratórios é muito enriquecedor. Não se lembram de suas crenças religiosas e rapidamente se envolvem e se entusiasmam com as explicações científicas.

[...] só um ensino objetivo e imparcial de uma ciência relativa e refutável poderá permitir a nossas sociedades avançar, não somente na direção de novas descobertas científicas, mas também na direção de um espaço equilibrado, eventualmente construtivo ou simplesmente tolerante entre ciência e religiões. (GRIMOULT, 2012, p. 184)

É no exercício das práticas da ciência que o aluno é apresentado às suas próprias possibilidades de tomar para si o trabalho de compreender os fenômenos da natureza. As pesquisas mostram que prevalece entre os estudantes o interesse na compreensão daquilo que eles observam e discutem. O aluno passa a perceber diversidade e origem da vida como fenômenos observáveis ao alcance de seu entendimento. Aos jovens, a experiência de investigar fenômenos da natureza, fazendo uso de sua capacidade de observar e questionar, é insubstituível porque é nela que seu potencial físico, intelectual e afetivo é mobilizado. Pesquisas no ensino de ciências permitem afirmar que praticar ciência é a situação laica de ensinar e estudar ciência. É a situação onde o pensamento crítico do estudante é exercitado. Por ele mesmo.

Entretanto, se esse trabalho não existe de forma sistemática, o potencial dos alunos não se transforma em comportamento bem estruturado; ao contrário, tende a desaparecer. Os estudantes, no contexto de não envolvimento acomodam-se. A resposta inicial entusiasmada não se transforma em comportamento estável. Mas, conforme foi visto no início deste artigo, os jovens estudantes querem outra opção, querem outro destino. E veem em suas escolas, nas disciplinas regulares e científicas do Ensino Médio em contexto laico de estudo, chances de transformação de suas vidas.

REFERÊNCIAS

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SOBRE A AUTORA

Eliane Brígida Morais Falcão

Professora do Programa de Pós-graduação “Educação em Ciências e Saúde” do Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde (NUTES) da UFRJ. Tem doutorado realizado na COPPE/UFRJ e pós-doutorado na Universidade de Cambridge (Reino Unido). Membro do Grupo de Trabalho Estado Laico da SBPC.

No documento Embates em torno do Estado laico (páginas 179-183)