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Objeção de consciência

No documento Embates em torno do Estado laico (páginas 121-124)

Objeção de consciência pode ser entendida como um direito individual à integridade moral. Recusar-se a fazer algo em oposição absoluta ao que dita sua consciência é algo que deve ser garantido a qualquer um. Diniz discutindo esse tema apresenta duas teses antagônicas que permeiam a literatura sobre o assunto, indicador da complexidade do tema. A tese da incompatibilidade defendida por Savulescu, de um lado, e a tese da integridade defendida por alguns autores do outro. Na primeira tese Savulescu defende que toda e qualquer recusa ao atendimento, como no caso da recusa de médico para realizar o aborto legal, deve ser proibida por violar os deveres da profissão à assistência ao paciente em suas necessidades de saúde.

Um médico deve ter o direito de professar privadamente sua religião ou suas crenças filosóficas, o que pode, inclusive, significar militância política contrária ao aborto, mas deve se manter neutro quando representa o Estado em um serviço público de saúde. (DINIZ, 2011, p. 983)

Do outro lado, a tese da integridade parte da ideia de direito do médico de recusar-se a fazer qualquer procedimento que julgue atentatório a suas convicções morais. Diniz (2011) revela que desse lado há um variado espectro de posições entre os que defendem o direito absoluto do médico e os que admitem algumas situações em que o direito à objeção de consciência não se aplica. Cita o código de ética médica que procura acomodar responsabilidade e direito do médico afirmando que “não é obrigado a prestar serviços que contrariem os ditames de sua consciência ou a quem não deseje, excetuadas as situações de ausência de outro médico, em caso de urgência ou emergência, ou quando sua recusa pode trazer danos à saúde do paciente”. Nesse diapasão a recusa do médico em realizar os procedimentos para interromper a gravidez em caso de aborto legal, só seria aceitável se houvesse a possibilidade de outra pessoa realizar o procedimento. Sem isso a recusa seria uma tentativa de obstrução de um direito da mulher ao aborto legal.

Diniz (2011) traz à luz um novo conceito, o de objeção de consciência seletiva. Muito interessante porque se aplica à objeção de consciência de alguém que aceita trabalhar em um serviço de aborto legal, mas alega objeção de consciência para a prática de um aborto específico, em um caso concreto. É assim que, constatado o fenômeno da objeção seletiva, Diniz sustenta que é preciso justificá-la. O médico deve justificar, e o serviço acatar ou não, suas razões para a recusa ao atendimento daquele caso específico, posto que ao serviço cabe a responsabilidade e o dever de atender, pelo Estado, o direito concedido à mulher de abortar em determinadas condições previstas na lei. A tese da justificação proposta por Diniz desmistifica a objeção de consciência como direito inquestionável e absoluto por parte do médico que o declara. Os dados de estudos em estabelecimentos de aborto legal dão conta do problema que a objeção seletiva gera. Em estudo em 2005, por Andalaft Neto et al (2012) foram entrevistados gestores de 1.395 serviços que atendiam mulheres e crianças vítimas de violência sexual no Brasil. Desses estabelecimentos 835 declararam estar preparados para realização do aborto legal. Os resultados do estudo mostram que desses estabelecimentos, apenas 30,6% declararam fazer Interrupção da Gestação (IG) por estupro, mas se perguntados quantos procedimentos foram realizados nos últimos 10 a 14 meses esse percentual cai para 5,6. A IG por risco de vida para a mãe, 37% dos estabelecimentos declararam realizar, mas somente 4,8% fizeram pelo menos 1 procedimento nos últimos 12 a 14 meses. E por má-formação congênita 26%

dos estabelecimentos declararam fazer, mas 5,5% realizaram pelo menos um nos últimos 12 a 14 meses (ANDALAFT NETO et al, 2012). O que chama atenção nesses dados é a distância entre o que é declarado e o que é feito. Todos os hospitais e prontos-socorros (874) fazem atendimento a mulheres e crianças vítimas de violência, mas a grande maioria (69,4%) não faz IG por estupro, mesmo com todas as condições para fazê-lo.

Madeiro e Diniz (2016) realizaram pesquisa com 37 serviços de aborto legal. Dados de pesquisa mostram que nesses serviços foram atendidas 5.075 mulheres em busca do aborto, mas somente 2.442 realizaram a interrupção da gravidez.

Para a interrupção da gravidez por estupro, houve relato de solicitação de autorização por escrito da mulher em 34 serviços (34/92%), BO (5/14%), laudo do IML (3/8%), alvará judicial (3/8%), parecer do Comitê de Ética institucional (4/11%) e, ainda, despacho do Ministério Público (3/8%). [...] A recusa em realizar o aborto por parte dos médicos, frequentemente justificada como barreira moral ou religiosa, foi apresentada pelos próprios profissionais como um dos principais problemas no funcionamento dos serviços. (MADEIRO; DINIZ, 2016, p. 566)

Sabendo-se que a Portaria Ministerial no 1.508 de 1 de setembro de 2005 e a Norma Técnica de Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes não obriga a apresentação de Boletim de Ocorrência policial ou qualquer outro instrumento que exceda a declaração da mulher, a não realização do direito da mulher ao aborto seguro e legal parece ser uma ilegalidade com o uso indevido do estatuto da objeção de consciência. A importância da tese da justificação defendida por Diniz é um caminho razoável para que se possa conhecer as justificativas para as objeções de consciência em serviços de aborto legal que deveriam assegurar o direito ao aborto de mulheres e adolescentes vítimas de estupro.

Ao lado da não aceitação ao aborto legal, as mulheres que praticam aborto sem o enquadramento em um dos casos previsto na lei, mulheres que se arriscam a morrer para evitar o nascimento de mais um filho, se veem em condições muito precárias.

Um estudo qualitativo com 11 mulheres processadas judicialmente por aborto induzido nos anos 2000 mostrou que 80% delas iniciaram o aborto com misoprostol e que quase a metade foi denunciada à polícia pelos médicos que as atenderam nos hospitais. (BRASIL, 2009, p. 31)

Como se pretendeu exemplificar aqui, as zonas de atrito entre perspectivas religiosas e a perspectiva laica no campo da Bioética são inúmeras e diversificadas. A liberdade a que a primeira geração dos direitos humanos

propõe de religião, de pensamento, de estar e ser no mundo, é incompatível com os ditames da moral religiosa na imposição do sofrimento físico e mental a outros como no caso da impossibilidade das pessoas poderem determinar o momento de sua morte, ou se desejam ou não manter uma gravidez se por acaso o método contraceptivo falhou, ou quando a mulher vítima de estupro se vê mais uma vez violentada quando chega num serviço de saúde referência para aborto legal e se vê impedida pelo único profissional competente que alega objeção de consciência. O exemplo do aborto revela uma realidade gravíssima. Muitas mulheres morrem porque não querem ou não podem levar adiante um projeto de maternidade. Não é só a liberdade de escolha da mulher que está em jogo, é o direito à vida.

No documento Embates em torno do Estado laico (páginas 121-124)